11/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XV


CAPÍTULO IX

Acerca da longevidade dos homens antes do Dilúvio e da sua maior corpulência.

Em face do exposto ninguém de bom senso poderá duvidar de que Caim poderia fundar não só uma cidade, mas mesmo uma grande cidade quando a vida dos mortais se estendia por tão longo tempo. A não ser que algum infiel levante a questão do número de anos vividos pelos homens segundo foi escrito pelas nossas autoridades, recusando-se a acreditar nisso.

Também não acreditam que as dimensões dos corpos tenham sido então muito maiores do que agora são. Todavia, Vergílio, o mais ilustre dos seus poetas, a propósito de uma descomunal pedra que delimitava um campo e que um homem forte daqueles tempos, enquanto com batia, arrancou, transportou a correr, deu o balanço e arremessou, refere: 

Apenas doze homens escolhidos, tais como a terra os produz agora, a poderiam levar às costas [i]

para dar a entender que outrora a terra costumava produzir corpos mais avantajados — quanto mais ainda em tempos mais próximos das origens, antes do tão famoso e célebre Dilúvio!

Mas muitas vezes sepulcros postos a descoberto pela vetustez, pela violência das torrentes ou por outros acidentes convencem os incrédulos da grandeza dos corpos, porque lá aparecem ou de lá caem ossos de incrível tamanho. Eu mesmo vi — e não só eu, mas outros comigo - na praia de Útica um molar humano tão grande que, se o partissem em pequenos pedaços do tamanho dos nossos dentes, parece que poderia fazer-se um cento deles. Creio que pertenceu a algum gigante. E que, além de serem então muito maiores que os nossos os corpos de todos, os dos gigantes em muito se avantajavam aos demais. Como depois e até nos nossos tempos não faltaram, embora raros, homens que excederam as medidas da maior parte. Plínio Segundo, homem doutíssimo, atesta que, à medida que o Mundo avança em idade, vai a natureza produzindo corpos cada vez mais pequenos. Recorda ele que também Homero em seus versos se lamentou disso muitas vezes.
Não zomba destas coisas com o de ficções poéticas, mas recolhe-as como factos históricos, como um narrador das maravilhas da natureza. Na verdade, como disse, as ossadas que muitas vezes se descobrem, pois que duram de há muito, revelam, a séculos delas muito distantes, a grande corpulência dos antigos.

Agora, porém, não se pode demonstrar com documentos deste género a longevidade dos homens que viveram naqueles tempos. Nem por isso se deve recusar a fé nesta história sagrada. Não acreditar nessas narrativas seria tanto mais insensato quanto é certo vermos que se cumprem as predições. Mas afirma também o mesmo Plí­nio que ainda existe um país onde as pessoas vivem duzentos anos. Se, portanto, ainda hoje se constata, em lugares desconhecidos de nós, esta duração das vidas humanas de que não temos a experiência — porque não havia de ser assim em tempos também de nós desconhecidos? Se é de acreditar que o que aqui não está, algures existe — porque é que se não há-de acreditar que o que agora não e, outrora foi?

CAPÍTULO X

Das diferenças entre os textos hebreus e os nossos que parece não estarem de acordo quanto ao número de anos dos
patriarcas.

Embora pareça haver a este propósito alguma diferença entre os textos hebreus e os nossos acerca do número de anos (ignoro por que razão tal aconteceu) — não é, porém, tão grande que não concordem em que os ditos homens alcançavam avançada idade. O próprio primeiro
homem, Adão, tinha antes de gerar seu filho Set duzentos e trinta anos segundo os nossos textos ou, segundo o hebreu, cento e trinta. Mas, depois de o ter gerado, lê-se nos nossos que viveu setecentos e nos deles oitocentos anos. E assim concorda a soma nuns e noutros. Da mesma maneira para as gerações seguintes, antes de ser gerado aquele que se menciona com o gerado, encontra-se no hebreu que seu pai viveu cem anos a menos — mas depois do nascimento o nosso texto dá-lhe cem anos a menos que no hebreu. De uma parte e de outra está, pois, de acordo a totalidade. Mas na sexta geração já em nada diferem ambos os códices. Na sétima, porém, (quando se relata que o que nasceu, Enoc, não morreu mas foi arrebatado porque aprouve a Deus), há a mesma diferença de cem que nas cinco gerações precedentes antes de gerar aquele que lá é mencionado com o seu filho, mas na soma há concordância — pois nos dois textos, antes de ser arrebatado, viveu trezentos e sessenta e cinco anos.

A oitava geração apresenta, é certo, uma divergência, mas menor e diferente das outras. Matusalém, filho de Henoc, viveu, segundo os códices hebreus, não cem anos a menos, mas vinte anos a mais, antes de gerar aquele que na ordem se lhe segue; mas nos nossos códices vê-se que se acrescentam estes vinte anos depois de o ter gerado e nos dois códices a soma é novamente igual. Só na nona geração, isto é, nos anos de Lamech, filho de Matusalém e pai de Noé, é que a soma do total difere, mas não muito. Referem os códices hebreus que ele viveu vinte e quatro anos mais do que referem os nossos, pois antes de gerar seu filho Noé, nos hebreus tem seis menos que nos nossos  — e, depois de o ter gerado, contam -se nos deles mais trinta anos que nos nossos. Daí que, se tirarmos aqueles seis, ficam-nos os vinte e quatro, como se disse.




(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Vergílio, Eneida, XII, 899-900.

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