Vol. 2
LIVRO XII
CAPÍTULO XXI
Impiedade dos que afirmam que as almas que já participaram da verdadeira e suma beatitude devem voltar ciclicamente aos mesmos trabalhos e às mesmas misérias.
Depois de toda uma vida cheia de tantas e tão grandes calamidades se é que se lhe pode chamar vida em vez de morte — e tanto mais perigosa quanto, por amor desta morte, chegamos a temer a morte que dela nos liberta), depois de tamanhos males, tão numerosos e tão horríveis,
expiados e chegados a seu termo esses males mercê da religião e da
sabedoria, chega-se finalmente à visão de Deus
e entra-se na bem-aventurança pela contemplação da luz incorpórea,
graças à participação na imutável imortalidade d’Aquele que ardentemente
desejamos possuir;
mas há que necessariamente abandonar um dia essa bem-aventurança e
aqueles que se arrancam daquela imortalidade, daquela verdade, daquela
felicidade atiram-se para a miséria infernal, para a torpe estupidez, para a execrável
miséria onde se perde a Deus, onde se detesta a verdade, onde a felicidade se
procura em imundas iniquidades
e isto acontece e voltará a acontecer em intervalos fixos de
séculos, da mesma maneira, sempre da mesma maneira, sem termo nem no passado
nem no futuro
e a razão destas eternas idas e voltas em círculos definidos,
através das nossas falsas beatitudes e das nossas reais misérias, alternadas
sim, mas intermináveis no seu incessante retorno, a razão disto é permitir que
Deus conheça as suas obras, porque Ele não pode cessar de actuar nem, pela sua
ciência, explorar o infinito,
— quais serão, na verdade, os ouvidos piedosos que suportam uma
coisa destas? Quem poderá ouvi-lo? Quem poderá crê-lo? Quem poderá suportá-lo?
Se isso fosse verdade, seria mais prudente calá-lo; e até (para melhor dizer o
que pretendo) seria mais sensato ignorá-lo. Porque se lá, na outra vida, não
conservamos mais a recordação de tudo isto para assim sermos felizes, porquê
agravar cá na Terra a nossa miséria, conhecendo-a? Mas se é preciso conhecê-lo lá,
ignoremo-lo pelo menos cá, para que a expectativa do sumo bem nos torne mais felizes
que a sua posse. Cá, tem-se pelo menos a esperança de conseguir um a vida eterna
— e lá, descobre-se que essa felicidade não é eterna pois se fica a saber que
um dia se perderá.
Se, porém, disserem que ninguém
poderá alcançar aquela felicidade sem conhecer nesta vida aqueles ciclos em que
alternam a felicidade e a desgraça — com o é que afirmam que, quanto mais cada
um amar a Deus, tanta maior facilidade terá em chegar à felicidade ao mesmo
tempo que ensinam doutrinas que entorpecem esse amor? E quem não sentirá que o seu amor a Deus se debilita e se apaga ao pensar que terá de o abandonar irremediavelmente e ao sentir-se em oposição à sua vontade e à sua sabedoria? E isto precisam ente quando tinha chegado ao pleno conhecimento de Deus (tanto quanto disso é capaz) graças à própria perfeição que a bem-aventurança dá? Pois, se ninguém é capaz sequer de amar facilmente um amigo quando sabe que se há-de tornar seu inimigo! Oxalá não sejam verdadeiras estas doutrinas que nos ameaçam dum a verdadeira desgraça que jamais acabará e não será interrompida vezes e vezes sem fim a não ser por falsas felicidades! Que é que há de mais falso, de mais falaz que essa beatitude em que, em tamanha luz de verdade, ignoramos que nos havemos de tornar uns desgraçados ou, no mais alto da suma felicidade, não deixarem os de ter receio? Se lá temos que ignorar as nossas futuras tribulações — então cá a nossa miséria tem mais luz pois conhecemos a nossa futura felicidade. Mas se lá não ignoram os a desgraça que nos ameaça, a alma encontrará cá mais felicidade num a miséria que se abre para a beatitude do que numa beatitude que desembocará na miséria. Desta forma haverá uma esperança feliz no meio da infelicidade e no meio da felicidade uma esperança infeliz. Segue-se que, sofrendo cá dos males presentes, temendo lá os que nos ameaçam, temos mais possibilidades de sermos sempre infelizes do que de sermos felizes alguma vez.
tempo que ensinam doutrinas que entorpecem esse amor? E quem não sentirá que o seu amor a Deus se debilita e se apaga ao pensar que terá de o abandonar irremediavelmente e ao sentir-se em oposição à sua vontade e à sua sabedoria? E isto precisam ente quando tinha chegado ao pleno conhecimento de Deus (tanto quanto disso é capaz) graças à própria perfeição que a bem-aventurança dá? Pois, se ninguém é capaz sequer de amar facilmente um amigo quando sabe que se há-de tornar seu inimigo! Oxalá não sejam verdadeiras estas doutrinas que nos ameaçam dum a verdadeira desgraça que jamais acabará e não será interrompida vezes e vezes sem fim a não ser por falsas felicidades! Que é que há de mais falso, de mais falaz que essa beatitude em que, em tamanha luz de verdade, ignoramos que nos havemos de tornar uns desgraçados ou, no mais alto da suma felicidade, não deixarem os de ter receio? Se lá temos que ignorar as nossas futuras tribulações — então cá a nossa miséria tem mais luz pois conhecemos a nossa futura felicidade. Mas se lá não ignoram os a desgraça que nos ameaça, a alma encontrará cá mais felicidade num a miséria que se abre para a beatitude do que numa beatitude que desembocará na miséria. Desta forma haverá uma esperança feliz no meio da infelicidade e no meio da felicidade uma esperança infeliz. Segue-se que, sofrendo cá dos males presentes, temendo lá os que nos ameaçam, temos mais possibilidades de sermos sempre infelizes do que de sermos felizes alguma vez.
Mas tudo isto é falso. Proclama-o a
piedade, demonstra-o a Verdade (esta, com efeito, promete-nos sinceramente a
verdadeira felicidade cuja segurança é garantida para sempre e não deve ser
interrompida por desgraça alguma). Sigamos, pois, o verdadeiro caminho que para
nós é Cristo, com Ele, com o guia e Salvador, afastemos a nossa inteligência e
o caminho da nossa fé do vão e inepto ciclo dos ímpios. O platónico Porfírio
não quis seguir a opinião dos seus, acerca destes ciclos de infindas e
alternantes idas e voltas das almas, impressionado pela vacuidade da hipótese
ou respeitando já os tempos cristãos. Com o já contei no livro décimo, preferiu
sustentar que a alma é enviada para o Mundo para conhecer os males para que, um a vez libertada e purificada,
regresse ao Pai sem ter que voltar a sofrer tais provas. Quanto mais não
devemos nós detestar e evitar estas falsidades inimigas da fé cristã!
Mas uma vez suprimidos estes ciclos
ilusórios, já nada nos obriga a crer que o género humano não teve começo no tempo
sob o pretexto de que, graças a eles, nada de novo acontece no Universo que não
tenha sido no passado e que não tenha de ser no futuro. Porque se a alma, livre
de ter que voltar às desgraças, é libertada como nunca antes o fora, produz-se
então nela algo que antes jamais tivera lugar, e algo de muito importante, quero
dizer, um a felicidade que jamais acabará, porque é eterna. Mas se numa
natureza imortal se verifica uma tão grande novidade que não é repetida nem tem
que ser repetida em ciclo nenhum — porque é que se pretende negar esta
possibilidade nos seres mortais? Se disserem que a alma não é a sede de um a
beatitude nova porque ela apenas volta de novo ao estado que sempre fora o seu
— então a sua libertação torna-se nova pois que é libertada duma desgraça em
que jamais se tinha encontrado; a própria desgraça é nela uma novidade, não
suportada antes.
Se esta novidade escapa ao governo
da Divina Providência e mais não é que efeito do acaso — que acontece a esses
ciclos determinados e mensurados nos quais nada de novo se produz, nos quais
tudo o que foi se repete? Mas se esta novidade não é excluída da ordem
providencial, quer a alma tenha sido dada ao corpo, quer neste tenha ela caído)
— em tal caso podem surgir novidades que antes não tinham surgido e, todavia,
não derrogam a ordem do Universo. E se a imprudência da alma lhe pôde causar um
a nova desgraça que a Divina Providência previu para a incluir também na ordem
do Universo e, não sem previsão, dela libertar a alma — por que vã temeridade
ousaremos negar à Divindade o poder de criar as novas coisas, novas não para
Deus, mas para o Mundo, jamais criadas antes e nunca excluídas da sua previsão?
Dir-se-á que as almas libertadas já
não voltarão ao seu estado de desgraça — mas isso nada traz de novo ao mundo
porque, primeiro umas e depois outras, sempre foram libertadas, são-no e
sê-lo-ão. Têm pelo menos que concordar que há novas almas para quem a desgraça
é nova e nova a libertação. Dirão talvez que as almas são antigas e, no seu
passado, eternas: delas provêm, todos os dias, novos homens e, se viverem com
sabedoria, serão libertadas do corpo desses homens para jamais voltarem ao estado
de desgraça e, por consequência, dirão, são em número infinito. Efectivamente,
por muito grande que seja o número de almas, não seria suficiente para
abastecer o infinito número de séculos precedentes para que deles provenham
incessantemente homens cujas almas incessantemente seriam libertadas da mortalidade
para jamais a esta regressarem.
Não saberão também explicar, como é
que, nos seres criados, que, no seu entender, têm que ser finitos em número
para que Deus os possa conhecer, é infinito o número de almas.
É por isso que são rejeitados esses
ciclos em que, segundo se julgava, a alma terá necessariamente de voltar às
mesmas desgraças. Que é que há de mais conforme com a religião do que crer que
a Deus não é impossível fazer novos seres que nunca antes fizera — e, numa
presciência inefável, não mudar de vontade? Mas se o número das almas libertadas que já não voltarão ao seu estado de desgraça, poderá aumentar
sempre — pergunte-se àqueles cujos subtis raciocínios mais não pretendem que
excluir a infinidade das Coisas! Quanto a nós, concluímos a nossa demonstração
por esta alternativa:
Ou esse número pode aumentar sempre
— e então porque negar a possibilidade de que seja criado o que nunca ainda
fora criado, já que o número das almas libertadas que antes não existiam, não
somente não foi produzido uma vez por todas, mas também o número de almas não
cessa de aumentar?
ou então é preciso que um certo
número de almas libertadas e que já não regressarão à desgraça, seja fixado e
que não aumente doravante: — então, não há dúvida, também esse número, seja ele
qual for, não existia no passado porque não poderia, com certeza, crescer e
chegar ao seu termo se não tivesse tido um começo que antes não existia. Para
que este existisse, foi, portanto, criado um homem antes que nenhum outro tenha
existido.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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