Vol. 2
LIVRO IX
Depois de se referir, no livro anterior, ao repúdio do
culto dos demónios (que, realmente, com muitos argumentos, eles próprios se
apresentam com os espíritos maus) vai Agostinho agora, neste livro, ao encontro
dos que alegam que há diferença entre demónios bons e demónios maus. Rebatida
esta diferença, demonstra que só a Cristo pode caber o papel de mediador para a
vida eterna.
CAPÍTULO I
A que ponto chegou a
questão e que é que falta para tratar.
A respeito dos deuses, há quem julgue que uns são bons e
outros maus. Mas também há quem, fazendo deles o melhor conceito, lhes atribua
honra e glória tais que não se atreve a pensar que haja algum deus mau. Mas os
que afirmaram que havia deuses bons e deuses maus, também aos demónios deram o
nome de deuses; e às vezes, embora raramente, também deram o nom e de demónios
aos deuses — reconhecendo que o próprio Júpiter, de quem eles fazem o rei e
chefe dos outros deuses, foi alcunhado de demónio por Homero.
Mas os que dizem que todos os deuses são bons e muito
superiores aos homens que tem os por bons, com razão se perturbam com os feitos
dos demónios; e, com o não podem negar esses feitos nem podem admitir que
possam ser cometidos por deuses — que, na sua opinião, são todos bons —, são
obrigados a estabelecer diferenças entre os deuses e os demónios. De modo que
atribuem aos demónios e não aos deuses tudo o que com razão lhes desagrada nas
obras e nos sentimentos depravados em que se revela o poder dos espíritos
ocultos. Estão, porém, convencidos de que os demónios estão de tal forma
colocados entre os deuses e os homens, que são eles que transmitem os pedidos
dos homens e lhes trazem os favores dos deuses, já que nenhum deus se pode
misturar com os homens. E esta a opinião dos platónicos, os mais eminentes e
reputados filósofos, com os quais, devido ao seu alto valor, me pareceu
conveniente discutir esta questão: se o culto da multidão de deuses tem algum a
utilidade para se obter a vida feliz que nos espera depois da morte.
No livro precedente, indagámos por que convénio os
demónios (que se comprazem com o que os homens bons e prudentes reprovam e
condenam, isto é, com as ficções sacrílegas, torpes e criminosas atribuídas
pelos poetas, não a qualquer homem mas aos próprios deuses, e com a condenável
violência das artes mágicas) poderiam eles, como vizinhos e amigos, conciliar
os homens bons com os deuses maus — e constatámos que eram disso totalmente incapazes.
CAPÍTULO II
Entre os demónios,
que são inferiores aos deuses, haverá alguns bons sob cuja protecção possa a
alma humana alcançar a verdadeira felicidade?
Por conseguinte, com o prometemos no fim do livro
precedente, trataremos neste livro da diferença existente (a admitir que algum
a existe), não entre os deuses, todos considerados bons, nem entre os deuses e
os demónios, — aqueles separados dos homens por vastíssimos espaços, e estes colocados
entre os deuses e os homens—, mas da diferença que há entre os próprios
demónios: assunto este que respeita à presente questão.
Diz-se geralmente que há bons e maus demónios. Quer esta
opinião seja dos platónicos quer seja de quaisquer outros, não se pode
negligenciar a sua discussão. Convém que ninguém pense que se deve ater aos demónios
pretensamente bons, com o desejo e o cuidado de, por seu intermédio, alcançar a
benevolência dos deuses que considera bons, tendo em mira gozar, depois da
morte, da sua sociedade; e, desta forma apanhado na rede dos espíritos
malignos, vítima dos seus enganos, se arredaria para muito longe do verdadeiro
Deus só com o qual, só no qual, só pelo qual a alma humana, isto é, a alma
racional e intelectual é feliz.
CAPÍTULO III
Atribuições dos
demónios segundo Apuleio, que, embora lhes não negue a razão, não lhes atribui
qualquer virtude.
Qual é então a diferença entre bons e maus demónios? O
platónico Apuleio, tão minucioso acerca dos seus corpos aéreos quando deles
fala em termos gerais, emudece acerca das virtudes de que seriam dotados, caso
fossem bons. Ficou, pois, mudo acerca da causa da felicidade; não pôde, porém
, esconder os indícios da sua miséria: de facto, com o confessa, a sua mente,
que faz deles seres racionais, longe de estar impregnada e armada de virtude
para não ceder a qualquer paixão irracional, encontra-se, também ela, com o os
espíritos insensatos, de certo modo sacudida por violentas e tempestuosas
perturbações. Tais são as suas palavras sobre o caso:
É
quase sempre desta espécie de demónios que falam os poetas quando, não muito
longe da verdade, imaginam deuses hostis ou favoráveis a certos homens,
concedendo a prosperidade e o sucesso a uns e a adversidade e a aflição a
outros. Ei-los, pois, sujeitos à compaixão e à indignação, à angústia e à
alegria; mostram todos os aspectos das paixões humanas, baloiçados como nós nas
ondas dos pensamentos pelos mesmos movimentos do coração e as mesmas agitações
do espírito. Estas perturbações e tempestades estão muito longe da
tranquilidade dos deuses celestes [i].
Há nestas palavras lugar para a dúvida de que não são as
regiões inferiores da alma dos demónios, mas as suas próprias mentes, pelas
quais eles são racionais, que, segundo Apuleio, se perturbam como um mar em
fúria pela tempestade das paixões? Não são mesmo comparáveis aos homens sábios
que a estas perturbações da alma, mesmo quando as suportam como uma condição
desta vida, opõem uma imperturbável razão, sem nada aprovarem, cedendo-lhes, e
sem nada fazerem que se afaste do caminho da sabedoria e da lei da justiça. Mas
é aos mortais insensatos e iníquos que eles, não no corpo, mas nos costumes,
são semelhantes (para não dizermos piores, pois o seu mal é mais antigo e, por
um a justa pena, incurável). Flutuam à mercê das agitações do espírito, com o
aquele diz, sem que parte algum a da sua alma possa encontrar apoio na verdade
e na justiça, graças às quais se resiste à turbulência das depravadas paixões.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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