05/03/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO IX

Depois de se referir, no livro anterior, ao repúdio do culto dos demónios (que, realmente, com muitos argumentos, eles próprios se apresentam com os espíritos maus) vai Agostinho agora, neste livro, ao encontro dos que alegam que há diferença entre demónios bons e demónios maus. Rebatida esta diferença, demonstra que só a Cristo pode caber o papel de mediador para a vida eterna.

CAPÍTULO I

A que ponto chegou a questão e que é que falta para tratar.

A respeito dos deuses, há quem julgue que uns são bons e outros maus. Mas também há quem, fazendo deles o melhor conceito, lhes atribua honra e glória tais que não se atreve a pensar que haja algum deus mau. Mas os que afirmaram que havia deuses bons e deuses maus, também aos demónios deram o nome de deuses; e às vezes, embora raramente, também deram o nom e de demónios aos deuses — reconhecendo que o próprio Júpiter, de quem eles fazem o rei e chefe dos outros deuses, foi alcunhado de demónio por Homero.

Mas os que dizem que todos os deuses são bons e muito superiores aos homens que tem os por bons, com razão se perturbam com os feitos dos demónios; e, com o não podem negar esses feitos nem po­dem admitir que possam ser cometidos por deuses — que, na sua opinião, são todos bons —, são obrigados a estabelecer diferenças entre os deuses e os demónios. De modo que atribuem aos demónios e não aos deuses tudo o que com razão lhes desagrada nas obras e nos sentimentos depravados em que se revela o poder dos espíritos ocultos. Estão, porém, convencidos de que os demónios estão de tal forma colocados entre os deuses e os homens, que são eles que transmitem os pedidos dos homens e lhes trazem os favores dos deuses, já que nenhum deus se pode misturar com os homens. E esta a opinião dos platónicos, os mais eminentes e reputados filósofos, com os quais, devido ao seu alto valor, me pareceu conveniente discutir esta questão: se o culto da multidão de deuses tem algum a utilidade para se obter a vida feliz que nos espera depois da morte.

No livro precedente, indagámos por que convénio os demónios (que se comprazem com o que os homens bons e prudentes reprovam e condenam, isto é, com as ficções sacrílegas, torpes e criminosas atribuídas pelos poetas, não a qualquer homem mas aos próprios deuses, e com a condenável violência das artes mágicas) poderiam eles, como vizinhos e amigos, conciliar os homens bons com os deuses maus — e constatámos que eram disso totalmente incapazes.

CAPÍTULO II

Entre os demónios, que são inferiores aos deuses, haverá alguns bons sob cuja protecção possa a alma humana alcançar a verdadeira felicidade?

Por conseguinte, com o prometemos no fim do livro precedente, trataremos neste livro da diferença existente (a admitir que algum a existe), não entre os deuses, todos considerados bons, nem entre os deuses e os demónios, — aqueles separados dos homens por vastíssimos espaços, e estes colocados entre os deuses e os homens—, mas da diferença que há entre os próprios demónios: assunto este que respeita à presente questão.

Diz-se geralmente que há bons e maus demónios. Quer esta opinião seja dos platónicos quer seja de quaisquer outros, não se pode negligenciar a sua discussão. Convém que ninguém pense que se deve ater aos demónios pretensamente bons, com o desejo e o cuidado de, por seu intermédio, alcançar a benevolência dos deuses que considera bons, tendo em mira gozar, depois da morte, da sua sociedade; e, desta forma apanhado na rede dos espíritos malignos, vítima dos seus enganos, se arredaria para muito longe do verdadeiro Deus só com o qual, só no qual, só pelo qual a alma humana, isto é, a alma racional e intelectual é feliz.

CAPÍTULO III

Atribuições dos demónios segundo Apuleio, que, embora lhes não negue a razão, não lhes atribui qualquer virtude.

Qual é então a diferença entre bons e maus demónios? O platónico Apuleio, tão minucioso acerca dos seus corpos aéreos quando deles fala em termos gerais, emudece acerca das virtudes de que seriam dotados, caso fossem bons. Ficou, pois, mudo acerca da causa da feli­cidade; não pôde, porém , esconder os indícios da sua miséria: de facto, com o confessa, a sua mente, que faz deles seres racionais, longe de estar impregnada e armada de virtude para não ceder a qualquer paixão irracional, encontra-se, também ela, com o os espíritos insensatos, de certo modo sacudida por violentas e tempestuosas perturbações. Tais são as suas palavras sobre o caso:

É quase sempre desta espécie de demónios que falam os poetas quando, não muito longe da verdade, imaginam deuses hostis ou favoráveis a certos homens, concedendo a prosperidade e o sucesso a uns e a adversidade e a aflição a outros. Ei-los, pois, sujeitos à compaixão e à indignação, à angústia e à alegria; mostram todos os aspectos das paixões humanas, baloiçados como nós nas ondas dos pensamentos pelos mesmos movimentos do coração e as mesmas agitações do espírito. Estas perturbações e tempestades estão muito longe da tranquilidade dos deuses celestes [i].

Há nestas palavras lugar para a dúvida de que não são as regiões inferiores da alma dos demónios, mas as suas próprias mentes, pelas quais eles são racionais, que, segundo Apuleio, se perturbam como um mar em fúria pela tempestade das paixões? Não são mesmo comparáveis aos homens sábios que a estas perturbações da alma, mesmo quando as suportam como uma condição desta vida, opõem uma imperturbável razão, sem nada aprovarem, cedendo-lhes, e sem nada fazerem que se afaste do caminho da sabedoria e da lei da justiça. Mas é aos mortais insensatos e iníquos que eles, não no corpo, mas nos costumes, são semelhantes (para não dizermos piores, pois o seu mal é mais antigo e, por um a justa pena, incurável). Flutuam à mercê das agitações do espírito, com o aquele diz, sem que parte algum a da sua alma possa encontrar apoio na verdade e na justiça, graças às quais se resiste à turbulência das depravadas paixões.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Apuleio, De Deo Socratis, XII; ed. Thomas, p. 20.

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