12/03/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

Livro XI

CAPÍTULO XXII

Em que difere a ciência dos demónios da dos santos anjos.

Para os anjos bons, toda a ciência das coisas corporais e temporais é, portanto, vil, não porque delas sejam ignaros, mas porque a caridade de Deus, que as santifica, é que lhes é cara. Efectivamente, a sua beleza, não apenas incorpórea, mas imutável e inefável, inflamando-os de um santo amor, faz-lhes desprezar tudo o que está abaixo dela, tudo o que não é ela, sem a si próprios se exceptuarem, gozam, enquanto são bons, do bem que os torna bons! E conhecem com mais certeza as coisas temporais porque percebem as causas principais no Verbo de Deus por quem o m undo foi feito. Nessas causas, algumas coisas são aprovadas, reprovadas outras, e ordenadas todas.

Os demónios, esses é que não contemplam na sabedoria de Deus as causas eternas e, de certo modo, principais dos sucessos temporais; mas, por experiência de certos sinais, para nós ocultos, prevêem muito mais coisas futuras do que os homens; e às vezes também dão a saber antecipadamente as suas intenções. Enfim — os homens enganam-
-se muitas vezes, mas os anjos bons, nunca. Um a coisa é de
facto conjecturar o temporal pelo temporal, o mutável pelo mutável e introduzir formas mutáveis e temporais de vontade e de poder nessas previsões — o que em certa medida é permitido aos demónios; outra coisa é prever, nas leis eternas e imutáveis de Deus, que «vivem» na sua sabedoria, a sequência mutável dos acontecimentos, e conhecer,  pela participação do espírito de Deus, a sua vontade tão absolutamente certa como universalmente poderosa — privilégio justamente concedido aos santos anjos. É por isso que eles são, não somente eternos, mas também bem-aventurados. E o bem que os torna felizes é Deus, seu criador: gozam indefectivelmente da sua participação e contemplação.


CAPÍTULO XXIII

O nome de deuses é falsamente atribuído aos deuses dos gentios, mas, segundo a autoridade das Sagradas Escrituras, convém tanto aos santos anjos como aos homens justos.

Se os platónicos preferem chamar-lhes deuses em vez de demónios e contá-los entre aqueles deuses que, segundo Platão, seu chefe e mestre, foram formados pelo Deus supremo — pois, como queiram: não vamos discutir com eles por causa de palavras. De facto, se dizem que são imortais, mas produzidos pelo Deus supremo e bem-aventurados, não por si próprios, mas por se unirem àquele que
os fez, — dizem o mesmo que nós, chamem-lhes eles
como chamarem. Que é esta a opinião dos platónicos, senão de todos pelo menos dos melhores, pode ver-se nos seus escritos.
E, mesmo a propósito do nome e deste jeito de se chamar deuses às criaturas imortais e bem-aventuradas, quase não há entre eles e nós qualquer divergência, pois lê-se também nas Sagradas Escrituras:

Deus, senhor dos deuses, falou
[i];
e noutra passagem:
Dai graças ao Deus dos deuses [ii];
e ainda noutra passagem:
O grande Rei está acima de todos os deuses [iii].
Mas aquele dito

Ele é terrível acima de todos os deuses
[iv],
tem uma sequência que mostra o significado das palavras; lê-se, efectivamente:
Porque todos os deuses das nações são demónios, mas o
Senhor fez os céus
[v].

Portanto, a frase:

Ele é terrível acima de todos os deuses [vi],

designa os deuses das Nações, isto é, aqueles que as nações
(gentes) têm por deuses e que são demónios. Precisamente porque Ele é terrível (terribilis) é que eles, sob o domínio do temor ao Senhor, diziam:

Vieste para nos destruir?
[vii]

Mas a expressão o Deus dos deuses (Deus deorum) não significa «o Deus dos demónios»; e a frase ele é o grande rei acima
de todos os deuses (Rex magnus super omnes deos) não se traduz
por ele é o grande Rei acima de todos os demónios! Nas Escrituras, até os homens do povo de Deus se chamam deuses:

Eu disse-vos: sois deuses, todos filhos do Altíssimo [viii].

Assim se pode entender com o Deus destes deuses o que foi
chamado o grande Rei acima de todos os deuses.

Todavia, quando nos perguntam: — Se aos homens se chama deuses por pertencerem ao povo de Deus, — a esse povo ao qual Deus fala por intermédio dos anjos ou dos homens —, não serão bem mais dignos deste nome os imortais que gozam da beatitude a que os homens aspiram chegar adorando Deus? — A isto só teremos que responder:
«Não é em vão que a Escritura Sagrada chama aos homens
deuses mais expressam ente do que a esses seres imortais e
bem-aventurados aos quais temos a promessa de nos tornarmos iguais ao ressuscitarmos — isto para que a nossa debilidade falha de fé não se atrevesse a divinizar algum deles devido à sua proeminência. No caso de um homem, isto é mais fácil de evitar. Mas convinha chamar mais claramente deuses aos homens do povo de Deus, para incutir neles a firme confiança de que o seu Deus é bem aquele do qual foi dito o Deus dos deuses, porque, embora se chame imortais e bem -aventurados a seres que estão no Céu, não se lhes chama, todavia, deuses dos deuses, isto é, deuses dos homens estabelecidos em povo de Deus, aos quais se disse:

Eu disse-vos: sois deuses, todos filhos do Altíssimo
[ix].

Foi a este propósito que o Apóstolo disse:

Embora haja os que se chamam deuses, quer no céu quer na terra, e de facto há muitos deuses e muitos senhores para nós, todavia, só há um Deus Pai, do qual provêm todas as coisas e no qual nós somos, e um só Senhor Jesus Cristo, por quem todas as coisas são e por quem nós somos
[x].

Não temos, portanto, de prosseguir na discussão acerca do nom e, pois, a questão está tão clara que exclui todo o escrúpulo da dúvida. É certo que lhes não agrada a nossa afirmação de que, do número dos seus imortais bem-aventurados, Deus enviou os anjos para anunciarem a vontade divina aos homens. Na opinião deles, este ministério é desempenhado, não por aqueles aos quais chamam
deuses, isto é, por seres imortais e bem-aventurados, mas por demónios, sem dúvida imortais, mas aos quais não ousam chamar bem-aventurados; ou, no máximo, imortais e felizes só no sentido de que são demónios bons, e não deuses colocados nas alturas ao abrigo de todo o contacto humano. Mesmo que isto pareça apenas uma questão de nome, é tão detestável o nom e de demónio, que temos o
dever de, por todos os meios, rejeitá-lo quando se trata dos santos anjos.

Agora, ao terminarmos este livro, fique bem assente o seguinte: seres imortais e bem-aventurados, qualquer que seja o seu nom e, mas, que foram feitos e criados, não são os intermediários úteis para conduzirem à imortal beatitude os infelizes mortais dos quais estão duplamente
separados. É que aos intermediários, pela sua imortalidade em com unhão com os superiores e pela sua miséria em comunhão com os inferiores — sendo desgraçados (miseri) precisam ente devido à sua malícia, é-lhes mais possível invejarem-nos esta felicidade (beatitudinem) que não possuem do que conseguirem-na para nós; também os amigos dos demónios não têm nenhuma razão para nos fazerem honrar com os deuses aqueles que devemos evitar como
enganadores.

Mas os bons, portanto, não apenas imortais, mas também bem-aventurados, que os pagãos julgam dignos de, com o nome de deuses, serem honrados com ritos e sacrifícios para se obter, após a morte, a vida bem-aventurada, — esses, qualquer que seja a sua natureza ou o seu nome, não aceitam tal homenagem religiosa senão em honra do
Deus único que os criou e os torna felizes (beati) pela participação do seu ser. É esta a questão que, com a sua ajuda, iremos examinar mais atentam ente no livro seguinte.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Salmo XXXV, 2.
[ii] Salmo XCIV, 3.
[iii] Salmo XCIV, 3.
[iv] Salmo XCIV, 4.
[v] Salmo XCIV, 5.
[vi] Salmo XCIV, 4.
[vii] Mc 1, 24.
[viii] Salmo LXXXI, 6.
[ix] Salmo LXXXI, 6.
[x] I Cor, VIII,5-6.

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