Vol. 1
LIVRO
VII
CAPÍTULO XVI
Acerca de Apoio e de Diana e
de outros deuses escolhidos, que pretenderam identificar com as partes do
Mundo.
Quanto
a Apoio, embora o tenham por adivinho e médico, para o colocarem em alguma
parte do Mundo disseram que ele é também o Sol; disseram da mesma forma que
Diana, sua irmã, era a Lua e presidia aos caminhos. (Daí pretenderem que ela
era virgem, porque um caminho nada gera). Ambos têm setas, porque estes dois
astros lançam do céu os seus raios sobre a Terra. Pretendem que Vulcano seja o
fogo do Mundo, Neptuno as águas do Mundo, Díspater, ou seja, o Orco, a parte
terrestre e mais baixa do Mundo. Fazem Libero e Ceres presidir às sementes —
ele às sementes masculinas e ela às sementes femininas, ou ele aos seus
elementos líquidos e ela aos seus elementos secos. E tudo isto se relaciona sem
dúvida com o Mundo, isto é, com Júpiter, que se chama precisamente «progenitor
e progenitora», porque expele de si e em si recebe todas as sementes. Pretendem
também, por vezes, que Ceres seja a Grande-Mãe que, dizem eles, mais não é que
a Terra. Esta apresentam-na ainda como sendo Juno, à qual atribuem as causas
segundas. E, todavia, foi a Júpiter que se conferiu o título de «progenitor e
progenitora dos deuses», porque, conforme julgam, Júpiter é a totalidade do
Mundo. E Minerva também, porque a fizeram presidir às artes humanas e, não
tendo encontrado estrela para a alojarem, identificaram-na com a zona superior
do éter ou mesmo com a Lua. Também Vesta: consideram-na a maior das deusas
porque ela é a própria Terra. Todavia, acharam que deviam atribuir-lhe os
elementos leves do fogo, aqueles de que os homens se utilizam, — mas não os
elementos violentos: esses atribuem-nos a Vulcano.
Assim,
para eles, todos estes deuses escolhidos mais não são que este Mundo: para uns,
o Mundo inteiro; para outros, suas partes; o Mundo inteiro como Júpiter; suas
partes, como Génio, a Grande-Mãe, o Sol e a Terra, ou antes Apoio e Diana. E,
ora fazem de várias coisas um só deus, ora de vários deuses uma só coisa. Um só
deus é várias coisas — é o caso de Júpiter. Efectivamente, o Mundo inteiro é
Júpiter, o Céu só por si é Júpiter, só por si um astro é Júpiter. Isto é o que
se julga; é o que se diz! E também o caso de Juno: Juno é a senhora das causas
segundas, Juno é o ar, Juno é a Terra e, se tivesse triunfado de Vénus, Juno
seria um astro. De maneira semelhante, Minerva é a zona superior do éter,
Minerva é igualmente a Lua, que se situa no limite inferior do éter. Mas também
fazem de vários deuses uma só coisa: Jano é o Mundo, e Júpiter também; Jano é a
Terra, a Grande-Mãe e Ceres também.
CAPÍTULO XVII
O próprio Varrão apresentou
como duvidosas as suas opiniões acerca dos deuses.
Acerca
do que resta, tal como acerca do que já foi relatado a título de exemplo, eles
nada explicam, mas, bem ao contrário, tudo complicam. Arrastados pelo ímpeto do
seu pensamento vagabundo, avançam e recuam, aos saltos, de lá para cá, de cá
para lá, ao ponto de o próprio Varrão achar melhor de tudo duvidar e nada
afirmar. Tendo terminado o primeiro dos três livros consagrados aos deuses
certos, escreve assim no princípio do segundo, consagrado aos deuses incertos:
Não
devo ser repreendido por este livrinho ter expendido opiniões duvidosas acerca
dos deuses. Quem julgar que é necessário e possível formular um juízo seguro,
formá-lo-á ele próprio depois de me ter ouvido. Por mim, mais facilmente me
levam a duvidar do que disse no meu primeiro livro, do que a condensar num
breve resumo tudo o que possa escrever neste.
Ora,
nesse terceiro livro acerca dos deuses escolhidos, após um preâmbulo que
considerou oportuno acerca da teologia natural, ao começar a tratar as futilidades
e loucuras desta teologia civil em que, longe de ser guiado pela verdade dos
factos, era antes embaraçado pela autoridade dos antepassados, diz:
Vou
tratar, neste livro, dos deuses públicos do Povo Romano, aos quais se dedicaram
templos e que assinalaram, honrando-os com estátuas. Mas, como Xenófanes de
Cólofon direi o que penso, mas não o que aprovo. É que é próprio do homem
emitir opiniões, mas o saber apenas a Deus pertence.
Por
isso, ao tentar dar-nos a conhecer as instituições criadas pelo homem,
promete-nos, titubeando, uma exposi ção, não de questões bem definidas e
firmemente assentes, mas de simples opiniões e de pontos de vista duvidosos.
Ele sabia muito bem que há um mundo, que há um Céu e uma Terra, um Céu
cintilante de estrelas, uma Terra útil de sementes e outras coisas semelhantes.
Acreditava de ânimo firme e seguro que este vasto conjunto e toda esta Natureza
são dirigidas e governadas por uma certa força invisível e superiormente
poderosa. Mas não podia afirmar, com o mesmo conhecimento e crença, que Jano é
o mundo, nem podia descobrir como é que Saturno, sendo pai de Júpiter, se tomou
seu súbdito; e outras coisas que tais.
CAPÍTULO XVIII
Qual a causa mais verosímil
da propagação dos erros do paganismo?
Tudo
isto se explica de forma mais verosímil admitindo que os deuses foram homens
que os pagãos por adulação quiseram divinizar, dedicando-lhes cerimónias e
solenidades conformes ao carácter, aos costumes, aos actos e às circunstâncias
de cada um. Estas honras, insinuando-se, pouco a pouco, na alma dos homens,
semelhantes a demónios e, ávidos de diversões, espalharam-se por toda a parte,
ornadas pelas mentiras dos poetas e as seduções dos espíritos falazes.
E,
de facto, que um jovem sem amor filial ou receando ser assassinado por um pai
sem amor paternal, tenha podido, ávido de reinar, expulsar seu pai do reino — é
coisa mais de acreditar do que a explicação que Varrão nos dá de que Saturno
foi vencido por Júpiter, o pai pelo filho, porque a causa, que está nas mãos de
Júpiter, é anterior à semente, que está nas mãos de Saturno. Se assim fosse,
jamais Saturno poderia ser anterior ou pai de Júpiter; a causa precede sempre a
semente e nunca é gerada por esta. Mas, nos seus esforços para justificarem com
pretensas interpretações naturais as fábulas menos consistentes e as acções
puramente humanas, mesmo os espíritos mais argutos sentem-se de tal forma
embaraçados que até nós nos sentimos constrangidos a deplorar os seus
desvarios.
CAPÍTULO XIX
Interpretações acerca do
culto prestado a Saturno.
Conforme
Varrão afirma, disseram que Saturno costumava devorar o que dele nascia, porque
as sementes voltam ao sítio donde nasceram. E o facto de, em vez de Júpiter,
lhe terem dado um torrão para devorar, significa, diz ele, que as sementes
começaram a ser enterradas pelas mãos dos homens antes de se descobrir a
utilidade de se lavrar a terra. Saturno devia, pois, designar a terra e não as
sementes, porque é a terra que, de certo modo, devora o que produziu, uma vez
que a ela voltam, para serem novamente recebidas no seu seio, as sementes que
dela nasceram.
Quanto
ao torrão dado a Saturno em vez de Júpiter, que relação pode isto ter com o
facto de as sementes serem cobertas com terra pelas mãos do homem? Quererá isso
dizer que essa semente coberta de terra não seria por isso devorada como as
outras? Isto diz-se como querendo sugerir que quem apresentou o torrão,
escondeu a semente, como dizem que se tirou Júpiter a Saturno, oferecendo-lhe
um torrão — quando na realidade, cobrindo a semente de terra, se fez com que
essa semente fosse mais rapidamente devorada. Depois, neste caso, Júpiter é a
semente e não a causa da semente, como acima se referiu. Mas que mais podem
fazer os homens que, ao interpretarem inépcias, nada de sensato encontram para
nos dizer?
Saturno
tem uma foice por causa da agricultura
diz
Varrão. Com certeza, no seu reinado ainda não havia agricultura; e, se a sua
época se considera antiga, conforme a interpretação que Varrão dá destas
fábulas, é precisamente porque os homens primitivos viviam de sementes que a
terra espontaneamente produzia. Quanto à foice — será que talvez ele a tenha
recebido depois de ter perdido o ceptro, e assim, de rei preguiçoso que fora
nos antigos tempos, se tomou, sob o reinado de seu filho, obreiro diligente?
A
seguir Varrão diz que, se certos povos, como os Cartagineses, tinham o costume
de sacrificar crianças a Saturno, e outros, como os Gauleses, mesmo velhos, —
era porque de todas as sementes a melhor era a raça humana. Que necessidade
teremos de insistir sobre tão cruel inépcia? Notemos desde já e retenhamos que
estas interpretações não se referem ao verdadeiro Deus, natureza viva,
incorpórea e imutável, a quem se deve pedir a vida eternamente feliz, mas antes
que elas se mantêm confinadas às coisas corpóreas, temporais, mutáveis e
mortais. Diz Varrão:
Que
Saturno, segundo as fábulas, tenha castrado o Céu, seu pai, significa isto que
a semente divina está em poder de Saturno e não em poder do Céu.
E
isto porque, tanto quanto se possa compreender, nada no Céu nasce da semente.
Mas então vede: se Saturno é filho do Céu, ele é filho de Júpiter. Que Júpiter
é o Céu, inúmeros e precisos testemunhos o confirmam. E assim as opiniões que
não resultam da verdade se esboroam por si mesmas sem que haja ninguém a
abalá-las.
Diz
ainda Varrão que Saturno se chama Κρόνος, palavra grega que significa tempo,
porque sem tempo, acrescenta, nenhuma semente poderia ser fecundada. Diz-se
isto, e outras coisas mais, de Saturno e tudo se refere à semente. Mas, pelo
menos Saturno, com semelhante poder deveria bastar às sementes. Porque se
requisitam então ainda outros deuses, nomeadamente Libero e Libera, ou seja,
Ceres? A propósito destes deuses e da semente, repete Varrão muitas coisas,
como se nada tivesse já dito acerca de Saturno.
CAPÍTULO XX
Os mistérios de Ceres
Eleusina.
Entre
as cerimónias dedicadas a Ceres, apregoam-se as Eleusis, que tão famosas foram
entre os Atenienses. Varrão não dá delas qualquer explicação. Apenas se refere
ao trigo que Ceres descobriu e a Prosérpina que Ceres perdeu quando Orco a
raptou. Diz ele que Prosérpina representa a fecundidade das sementes; e, como
essa fecundidade faltou durante algum tempo e a terra se queixou da sua
esterilidade, apareceu a opinião de que a filha de Ceres, ou seja a própria
fecundidade, chamada Prosérpina (de proserpere—
propagar-se) fora raptada por Orco e retida nos infernos. Solenizou-se esta
desgraça com luto público; mas, quando reapareceu a fecundidade e Prosérpina
voltou, surgiu a alegria e foram instituídas cerimónias nessa ocasião.
Acrescenta Varrão que nesses mistérios se referem muitos factos relativos,
todos eles, à descoberta dos cereais.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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