Vol. 1
LIVRO
VII
CAPÍTULO III
Não há qualquer motivo
assinalável na escolha dos deuses, pois que muitos deuses inferiores exercem
funções mais elevadas do que as dos escolhidos.
Qual
teria sido então a causa que obrigou tantos deuses escolhidos a essas tarefas
mesquinhas, ao passo que um Vitumno e um Sentino,
os
superam na partilha das grandezas? Com efeito, é Jano, deus escolhido, quem
abre o acesso e, por assim dizer, a porta ao sémen; é Saturno, deus escolhido,
quem fornece o próprio sémen; é Libero, deus escolhido, quem facilita a emissão
nos homens, como Libera, que é a própria Ceres ou Vénus, o facilita às
mulheres; é Juno, deusa escolhida (e não sozinha, mas com Mena, filha de
Júpiter), quem assegura o fluxo menstrual para que se desenvolva o que foi
concebido. E é um obscuro e desconhecido Vitumno quem confere a vida; um
obscuro e desconhecido Sentino quem confere a sensibilidade — dois benefícios
tão acima de tantos outros como estes estão abaixo da inteligência e da razão.
De facto, assim como os seres dotados de razão e de inteligência estão acima
dos que, desprovidos de razão e de inteligência, vivem e sentem como gado—assim
também os seres dotados de vida e de sensibilidade estão com razão acima dos
que não vivem nem sentem. Consequentemente, Vitumno, o despenseiro da vida, e
Sentino, o despenseiro da sensibilidade, mereceriam ocupar um lugar entre os
deuses escolhidos mais do que Jano, o introdutor do sémen, mais do que Saturno
que o concede e difunde, mais do que Libero e do que Libera, que o movimentam e
emitem — sémen que, aliás, não merece ser considerado se não atinge a vida e a
sensibilidade. E não são estes dois dons de eleição que provêm dos deuses
escolhidos, mas de alguns deuses ignorados e, perante a grandeza dos outros,
desprezados.
Haverá
quem responda: Jano tem poder sobre todos os começos e é por isso que está
certo que lhe atribuem os preliminares da concepção; Saturno dispõe de todos os
sémenes e por isso também a inseminação do homem não pode passar sem o seu
concurso; Libero e Libera presidem a todas as emissões seminais, razão por que
dirigem todos os actos concernentes à reprodução do homem; Juno preside a todas
as purificações e a todos os partos, e por isso não deixa de assistir às
purificações das mulheres e aos nascimentos dos homens. Mas, nesse caso,
respondam, pois é isso que se pretende, acerca de Vitumno e de Sentino: têm
eles também poder sobre todo o ser vivo e sensível? Se concordam que assim é,
reparem a que alto posto devem ser guindados. Realmente, nascer duma semente, é
nascer na terra e da terra, ao passo que viver e sentir pertence também, na sua
opinião, aos deuses siderais. Mas, se disserem que a Vitumno e a Sentino
pertencem apenas os atributos que se desenvolvem na carne e se apoiam nos
sentidos — porque é que o Deus, mercê do qual tudo vive e sente, não há-de ser
ele quem dispensa à carne a vida e a sensibilidade e quem, pela sua acção
universal, concede também este dom aos recém-nascidos? Que necessidade há de
Viturno e de Sentino?
Será que aquele que preside a toda a vida e a
toda a sensibilidade lhes confiou, como que a criados, estes domínios da carne
tidos por muito distantes e muito baixos? Têm estes deuses escolhidos tanta
falta de criadagem que nem têm a quem confiar estes cuidados, mas são
constrangidos, apesar de toda a sua nobreza que lhes valeu o serem escolhidos,
a trabalharem na companhia de deuses obscuros? Assim, Juno, deusa escolhida, a
rainha, «a esposa e irmã de Júpiter», tem ela própria que ser Interduca para as
crianças, e cumpre o seu serviço com duas das mais obscuras das deusas — Abeona
e Adeona. Junta-se-lhes a deusa Mente, encarregada de incutir nas crianças um
espírito recto — e não a colocam entre os deuses escolhidos, como se o homem
pudesse receber alguma coisa de maior importância! Mas Juno é lá admitida na
qualidade de Interduca e de Domiduca, como se fosse grande coisa «andar no
caminho» e «dirigir-se para casa» sem espírito recto — benefício que depende de
uma deusa que, os que presidiram à escolha, não pensaram em colocar entre as
divindades escolhidas.
Seria,
porém, melhor tê-la preferido a Minerva, a quem, entre outras funções menores,
se atribui a memória das crianças. Quem é que, de facto, poderá duvidar de que
um espírito recto é muito superior à mais prodigiosa memória? Ninguém será mau
por ter um espírito recto, mas há gente péssima que tem uma admirável memória e
é tanto pior quanto menos capaz for de esquecer seus maus propósitos. E,
todavia, Minerva figura entre os deuses escolhidos, ao passo que a deusa Mente
se perde na multidão dos sem categoria. E que direi da Virtude e da Felicidade,
de que tanto falámos já no livro quarto? Admitem-nas como deusas mas não lhes
concedem lugar entre os deuses escolhidos; concederam-no, porém, a Marte e a
Orco, encarregados, o primeiro de ocasionar as mortes violentas, o segundo de
acolher em si os defuntos!
Nestes
insignificantes trabalhos, minuciosamente repartidos por uma caterva de deuses,
vemos que os deuses escolhidos trabalham como trabalha o Senado com a plebe, e
encontramos funções, mais importantes e melhores que as dos chamados deuses
escolhidos, desempenhadas por certos deuses que não foram considerados dignos
de qualquer escolha. Resta concluir que, se eles se encontram entre os deuses
principais e escolhidos, tal não resulta dos cargos mais elevados que
desempenham no mundo, mas apenas da sorte de serem mais conhecidos do povo. Aí
está porque o próprio Varrão afirma que a certos deuses-pais e a certas
deusas-mães aconteceu como acontece aos homens — caírem na obscuridade. Se,
portanto, não se devia meter a Felicidade na categoria dos deuses escolhidos,
porque não há dúvida de que esta honra se deve, não ao mérito, mas à sorte, —
dever-se-ia então colocar a Fortuna, pelo menos entre estes deuses ou até acima
deles, pois que, segundo se diz, ela dispensa os seus favores a cada um, não
segundo a ordem da razão, mas segundo o capricho da sorte. Ela é que deveria,
entre os deuses escolhidos, ocupar o primeiro lugar, pois que é principalmente
entre estes que ela mostra o seu poder. Constatámos que não é devido às suas
eminentes virtudes nem por causa de uma felicidade merecida que eles foram
postos à parte, mas, conforme o sentimento dos seus próprios adoradores, pelo
poder arbitrário da fortuna. Também o eloquente Salústio pensava, com certeza,
nestes deuses quando dizia:
Com
certeza que a fortuna é senhora soberana; é ela que, mais conforme o seu
capricho do que conforme a justiça, assegura a todos os seres a notoriedade ou
a obscuridade [ii].
Efectivamente,
não é possível encontrar razões para se enaltecer Vénus e rebaixar a Virtude,
quando ambas são colocadas na categoria das deusas sem que se possam comparar
os seus méritos.
Mas,
se se julga mais digno de honra o que é mais procurado pela maioria, — porque é
que a deusa Minerva é tão celebrada e a deusa Pecúnia mantida na obscuridade? É
que, realmente, entre os homens, são mais os aliciados pela avareza que os
seduzidos pela ciência; e entre os próprios artistas, raras vezes se encontra
um que, no seu ofí cio, não tenha em vista ganhar dinheiro, e cada um aprecia
sempre mais o fim que se propõe do que o que apenas é um meio para o conseguir.
Se foi, portanto, o juízo de uma multidão estulta que presidiu a esta
distinção, porque é que a deusa Pecúnia não obteve a preferência sobre Minerva,
já que a maioria dos artistas trabalha na mira do dinheiro (pecunia)? Se, porém, esta distinção se
deve a um reduzido número de sábios, porque é que a Virtude não foi preferida a
Vénus, já que a razão a coloca tão acima destas? Pelo menos, como já disse, a
Fortuna, soberana universal na opinião dos que lhe atribuem maior influência,
tudo pode tomar glorioso ou obscuro, mais conforme ao capricho do que à
verdade. E se, mesmo entre os deuses, ela tem uma importância que pode tomar
glorioso ou obscuro quem ela quiser, deveria ocupar o primeiro lugar entre os
deuses escolhidos, já que sobre os deuses é tão grande o seu poder. Será que a
Fortuna não conseguiu essa honra porque ela própria (é caso para pensar) sofreu
uma fortuna adversa? Nesse caso, ela, que nobilita os outros, mas a si não pode
nobilitar, é de si própria adversária!
CAPÍTULO IV
Está-se melhor com os deuses
inferiores, que de nenhuma infâmia estão manchados, do que com os escolhidos,
cujas torpezas são tão celebradas.
Um
homem ávido de renome e de glória não deixará de felicitar os deuses escolhidos
e de lhes chamar afortunados, desde que não repare que mais pelos ultrajes do
que pelas honras foram eles escolhidos. Efectivamente, a obscuridade que
envolve a turbamulta dos deuses ínfimos protegeu-os da ignomínia. Rimo-nos, na
verdade, por os vermos classificados em conformidade com as tarefas que a
opinião humana inventou e lhes atribuiu: à maneira de subalternos cobradores de
impostos ou de artífices do bairro operário, em que o menor dos vasos, para se
dar por acabado, passa por numerosas mãos até que o mestre lhe ponha sozinho
termo. Pensaram, contudo, que não se podia tirar melhor rendimento da multidão
dos trabalhadores senão fazendo com que cada um aprendesse, depressa e com
facilidade, apenas uma parte da tarefa, para os não obrigar, à custa de muito tempo
e canseiras, a serem todos perfeitos no trabalho todo. Todavia, entre os deuses
não escolhidos mal se encontrará um cuja reputação se tenha perdido em
consequência de algum crime, ao passo que entre os escolhidos a custo se
encontrará algum que não tenha sofrido o ferrete de alguma insigne infâmia. Os
grandes desceram até às humildes tarefas dos pequenos; estes não foram
guindados até aos sublimes crimes daqueles.
É
verdade que, acerca de Jano, nada me ocorre a respeito da probidade. E talvez
assim seja: teria levado uma vida mais afastada de crimes e torpezas. Acolheu
benigno Saturno fugitivo; partilhou o seu reino com o seu hóspede, embora cada
um tenha fundado a sua cidade — o Janículo e Satúmia. Mas essas pessoas,
gulosas de tudo o que pode manchar o culto dos deuses, achando demasiado
honrosa a vida de Jano, desfiguram-no na monstruosa fealdade da sua estátua,
que o representa, ora com duas, ora com quatro frontes, como que duplicado.
Será que quiseram, já que a maioria dos deuses escolhidos perdeu a cara à força
de impudor no crime, que Jano aparecesse com tantas mais frontes quanto mais
inocente era?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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