Leitura espiritual
A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
II
CAPÍTULO V
Obscenidades com que os seus
adoradores honravam a mãe dos deuses.
De
forma nenhuma eu quereria ter por juízes nesta matéria os que mais procuram
divertir-se do que lutar contra os vícios de um comportamento depravadíssimo, —
mas o próprio Cipião Nasica, eleito pelo Senado como o melhor dos cidadãos, que
recebeu nas suas mãos a imagem desse demónio e a introduziu em Roma. Ele é que
nos diria se concordava em que à sua mãe, como recompensa dos seus méritos por
parte do Estado, se lhe prestassem honras divinas — como consta que os Gregos,
os Romanos e outros povos as tinham decretado em honra de alguns mortais cujos
benefícios tinham em alta estima e julgavam que com isso os tornavam imortais e
contados no número dos deuses [1].
Com certeza que Cipião havia de desejar para sua mãe a maior das felicidades
possíveis. Mas se em seguida lhe perguntassem se queria que entre as honras
divinas se celebrassem aquelas torpezas, — não clamaria ele que preferia ver sua
mãe prostrada sem sentidos, morta, a vê-la viva para, como deusa, ter de ouvir
complacentemente tais coisas? Longe vá o pensamento de que um senador do Povo
Romano dotado de uma mentalidade tal que proibiu a construção de um teatro
nesta cidade de varões fortes, quisesse para sua mãe um culto em que ela
aceitaria benevolamente, como deusa, sacrifícios cujos ritos a ofenderiam como
matrona. De maneira nenhuma ele acreditaria que a divinização transformaria em
seu contrário o pudor de uma mulher digna de louvor a ponto de os seus
adoradores a invocarem com honras quejandas. Porque, para as não ouvir quando
proferidas não interessa contra quem, no tempo em que ela vivia entre os
homens, teria tapado os ouvidos e pôr-se-ia em fuga sob pena de fazer corar com
vergonha dela os seus vizinhos, o seu marido e os seus filhos.
E,
assim, tal mãe dos deuses, a quem o homem mais perverso teria vergonha de ter
por mãe, escolheu o melhor varão, não para o ajudar e aconselhar mas para o
enganar com disfarces à maneira da mulher da qual está escrito «Mas a mulher apodera-se das preciosas almas
dos homens [2];
o que ela quis foi que aquela alma de tão elevado carácter, arrastada por um
pretenso testemunho divino, e na verdade a si mesma se considerando como a
melhor, não procurasse a piedade e a religião verdadeiras sem as quais a
soberba esvazia e derruba todo o génio, mesmo o mais digno de louvor. Como pois
escolheria essa deusa tão bom varão senão insidiosamente, quando procurava para
os seus ritos sagrados obscenidades tais que os melhores homens evitavam que
fossem mostradas aos seus convidados?
CAPÍTULO VI
Os deuses pagãos nunca
estabeleceram normas de conduta.
Pelo
mesmo motivo não tiveram esses deuses a menor preocupação com a vida e os
costumes das nações e suas gentes que os veneravam, mas, pelo contrário,
permitiram, sem proferirem qualquer das suas terríveis proibições, que fossem
atingidas por tão horrendos e detestáveis males, não só nos seus campos e
vinhas, nas suas casas e bens pecuniários e, por fim no seu próprio corpo que
está submetido à alma, mas também que fossem atingidas na própria alma, e
permitiram mesmo que elas se afundassem nesses males e se tomassem na pior
gente. Mas se o proibiam — pois que no-lo mostrem, que no-lo provem, e não nos venham
cochichar aos ouvidos não sei que débeis sussurros de pouquíssimos acerca de
uma misteriosa religião recebida dos antepassados em que se aprendia a rectidão
de vida e a guarda da castidade. Mostrem-nos os lugares e digam-nos quando
foram consagrados para essas reuniões;
— onde se não pratiquem cenas com palavras e
gestos obscenos dos histriões;
—
onde se não celebrem os Fugalia [3]
em que a toda a casta de torpezas é concedida permissão (e, na verdade, Fugalia
são— mas «fuga» do pudor e da honestidade);
—
onde estão os lugares destinados a ouvir os preceitos dos seus deuses para
reprimirem a avareza, destruírem a ambição;
—
onde os povos ouçam o que os deuses preceituam acerca da repressão da avareza,
da destruição da ambição, do refreamento da luxúria;
—
onde os desgraçados aprendam o que se deve saber como tão estrondosamente o
proclamou o vosso Pérsio ao dizer:
Aprendei ó míseros, e tomai
conhecimento das causas das coisas:
Que somos nós? nascemos para
ter que vida?
Que lugar nos é concedido? e
por que suave viragem dobramos?
Desde que ponto e por onde o
nosso caminho dobrará suavemente o marco da meta?
Que medida impor ao
dinheiro? que é lícito desejar?
Qual a utilidade da moeda
acabada de fazer?
Quanto se deve dar à pátria
e aos amados parentes?
Que homem te ordena Deus que
sejas? Qual o teu lugar na humanidade [4]?
Digam
em que locais costumavam os deuses ensinar esses preceitos e por que povos seus
adoradores eram habitualmente ouvidos — tal qual como nós, que mostramos as
igrejas para isso construídas por onde quer que se difunda a religião cristã.
CAPÍTULO VII
Sem a autoridade divina, são
inúteis as descobertas filosóficas: o que os deuses fazem arrasta muito mais
facilmente os homens ao vício do que o que os homens discutem.
Será
que eles nos vão lembrar as escolas e as discussões dos filósofos? Primeiro que
tudo — elas não são romanas mas gregas. Ou então são já romanas porque a Grécia
se tornou província romana. De facto, não se ensinam lá os preceitos de Deus,
mas as descobertas de homens dotados de agudíssimo engenho, que se aplicaram a
descobrir pelo raciocínio:
o
que estava escondido na natureza das coisas;
o
que se deve desejar e o que se deve evitar nos costumes;
o que, como certeza, se tira por conexão das
próprias regras do raciocínio, ou o que não é consequente, ou ainda o que
repugnará.
E
alguns deles, na medida em que foram ajudados por Deus, descobriram coisas
importantes. Mas, na medida em que foram, como homens, limitados, erraram:
principalmente quando a divina Providência resistia justamente à sua soberba,
querendo mostrar, pelo seu exemplo, que o caminho da piedade parte da humildade
para se elevar às alturas. Surge daqui uma questão que teremos ocasião de, mais
tarde, aprofundarmos e discutirmos se Deus, o verdadeiro Senhor, o quiser.
Mas
se os filósofos descobriram alguma coisa que pode ser útil para levarmos uma
vida digna e conseguirmos a felicidade — quanto mais justo não seria que a eles
atribuissem honras divinas! Quanto melhor e mais honesto não seria que no
templo de Platão se lessem os seus livros do que nos templos dos demónios se
castrassem os Galos [5]
se consagrassem os invertidos, se mutilassem os loucos, e se assistisse a tudo
o que há de mais cruel e vergonhoso, de vergonhosamente cruel ou cruelmente
vergonhoso que é costume celebrar-se nas cerimónias de tais deuses!
Quão
preferível seria que, para se instruírem suficientemente os jovens na justiça,
se recitassem em público as leis dos deuses em vez de se louvarem em vão as
leis e as instituições dos antepassados. Na verdade, todos os adoradores de
tais deuses, logo que são tocados pela paixão, como diz Pérsio,
impregnados de ardente
veneno [6],
apegam-se
mais aos feitos de Júpiter do que aos ensinamentos de Platão ou às censuras de
Catão. Mostra-o aquele adolescente viciado, referido nas obras de Terêncio, que
olha para um certo quadro pintado numa parede
onde estava representado
Júpiter, dizem, a despejar no seio de Danae utrn como que chuva de ouro [7].
e
ele, encostando-se a uma tão alta autoridade, gaba-se de, na sua torpeza,
imitar esse deus: Mas que Deus!
aquele que sacode as
abóbodas do céu com soberano trovão! Eu, um homenzito, não faria isso? Pois já
o fiz e com que ganas [8].
CAPÍTULO VIII
Jogos cénicos pelos quais os
deuses se aplacam em vez de se ofenderem com as representações das suas
torpezas.
Na
realidade estas coisas não são proferidas nas cerimónias dos deuses mas nas
fábulas dos poetas. Não quero afirmar que esses mistérios sejam mais
vergonhosos do que as representações teatrais. O que digo é que os Romanos não
introduziram esses mesmos jogos, em que reinam as ficções dos poetas, nas
solenidades dos seus deuses em virtude de um ingénuo dever (— é a história que
convence quem isto nega) — mas têm sido os próprios deuses que têm exigido
severamente, e até de certo modo sob coacção, que se celebrem e se consagrem em
sua honra. No primeiro livro toquei de passagem neste assunto em breve
referência. Efectivamente nos primórdios, tendo- -se agravado uma peste, foram
decretados jogos cénicos em Roma por decisão dos pontífices. Quem é que na
verdade, ao ordenar a sua vida, não escolhe para si as acções representadas em
cena com garantia da autoridade divina, de preferência às normas amiúde
escritas nas leis promulgadas pelo génio humano?
Se
os poetas mentirosamente nos apresentaram um Júpiter adúltero, os deuses, se
por ventura castos, deveriam irritar-se e vingar-se, não pela negligência na
representação mas por os humanos terem representado tais atrocidades que eram
pura ficção. E as mais toleráveis destas representações cénicas são as comédias
e as tragédias, isto é, as fábulas dos poetas para serem representadas nos
espectáculos com muitas cenas vergonhosas — mas pelo menos sem as frases
obscenas de muitas outras composições como as que fazem parte dos estudos
chamados honestos e liberais que os meninos são obrigados pelos velhos a ler e
a aprender.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[1]
Segundo
o filósofo grego Evémero, os deuses mais não são que poderosos reis que os seus
súbditos divinizaram após a morte por lisonja ou por reconhecimento para com os
seus méritos. É possível que Santo Agostinho tenha tomado conhecimento do
Evemerismo através de Cícero que aceita esta explicação historicista do
fenómeno mítico pelo menos em relação a Hércules, Castor, Pallus e Liber (v. De natura deorum, II, 24). Embora esta
explicação não encontrasse aceitação entre os gregos (Calímaco, Eratóstenes,
Estrabão, Plutarco), foi, porém defendida pelos romanos (Énio, Evhemerus, sive Sacra Historia) e pelos apologistas
judeus (Livro da Sabedoria XIV, 15 segs.) e cristãos (Lactânio Div. Inst. XI, 45-48 e 63-65. Santo Agostinho. De Civ. Dei, IV, 27; VIII, 26; XVIII, 5, 14,
19). V. A. Mandouze, Saint Augustin
et la religion romaine in Rech. Augustin. J. Paris, 1958, p. 157 e segs; G.
Nemety, Evhemeri reliquiae, Budap.,
1889.
[3]
Fugalia
era o nome que se dava às festas comemorativas da expulsão dos reis, a seguir
às Terminalia, ambas em Fevereiro. O nome deriva na realidade do verbo fugio,
com o significado de fugir, de raiz comum com o verbo grego φεύγω e o subst.
φυγή (fuga).
[4]
Discite,
o tniseri, et causas agnoscite rerum, Quid sumus, et quidnam victuri gignimur,
ordo Quis datus, aut metae qua mollis flexus et unde, Quis modus argenti, quid fas
optare, quid asper Utile nummus habet, patriae carisque propinquis Quantum
largiri deceat; quem te Deus esse Jussit, et humana qua parte locatus es in re.
Persio, Sat. Ill, 66-72 (in Perse Satires, Texte établi et traduit par A.
Castault, Belles-Lettres Paris, 1920
[5]
Os
Galos eram sacerdotes de Cibele que se mutilavam no decorrer das cerimónias
orgiásticas. Eram combatidos tanto pelos satíricos pagãos (Pérsio, Juvenal,
Marcial) como pelos apologetas cristãos (Justino Apol. I, 27; Minúcio Félix —
Oct. X X IV , 4; Lactâncio — Div.Just. I, 21, 16; Jerónimo — In Oseam I, 4).
[7] ubi
inerant pictura haec, Jovem quo pacto Danaae misisse aiunt quondam in gremium
imbrem aureum. Terêncio, Eunuq, 584-585.
[8] A
t quem deum! qui templa caeli summo sonitu concutit. Ego homuncio id non
facerem? Eço vero illud feci ac libens. Id. Ib. 590.
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