INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
TERCEIRA PARTE
O ESPÍRITO E A IGREJA
CAPÍTULO SEGUNDO
Duas Questões Fundamentais do Artigo
sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja
2. "Ressurreição da carne"
a) Conteúdo da esperança neo-testamentária da ressurreição.
O artigo da ressurreição da carne
coloca-nos num estranho dilema. Redescobrimos a indivisibilidade do homem;
vivemos com intensidade nova a nossa corporeidade, experimentando-a como
maneira inevitável de realizar o ser único do homem. A partir deste ponto
estamos em condições de compreender de modo novo a mensagem bíblica que não
confere imortalidade à alma separada, mas ao homem inteiro. Deste sentimento surgiu,
no nosso século, sobretudo na teologia evangélica, uma forte oposição à
doutrina grega da imortalidade da alma que, injustamente, passou a ser
considerada como pensamento cristão. Na verdade, ela exprimiria um dualismo
nada cristão; a fé cristã saberia a respeito de uma ressurreição dos mortos
pelo poder de Deus, exclusivamente. Mas, já surgem as objecções: a doutrina
grega sobre a imortalidade pode ser problemática, mas não será ainda menos
realizável ainda para nós a afirmação bíblica? Unidade do homem, muito bem; mas
quem seria capaz de se imaginar numa ressurreição do corpo, dentro da nossa
hodierna cosmovisão? Uma ressurreição desta forma incluiria – como parece – um
novo céu e uma nova terra, exigiria corpos imortais, isentos da necessidade de
alimentar-se, postularia um estado da matéria totalmente mudado. Ora, tudo isto
não seria um absurdo completo, oposto frontalmente à nossa concepção da matéria
e ao seu modo de proceder, algo incuravelmente mitológico?
Creio que realmente só chegaremos a uma
resposta procurando cuidadosamente as exactas intenções e sentidos da doutrina
bíblica e re-examinando as relações da Bíblia com o mundo grego; pois o
encontro dos dois pensamentos alterou ambas as concepções, encobrindo os
sentidos originais tanto de uma como de outra, numa visão nova que é mister
remover primeiro para lhe alcançar o fundo. A esperança na ressurreição dos
mortos apresenta a forma básica da esperança na imortalidade; daí surge no Novo
Testamento, não propriamente como ideia complementar de uma imortalidade da
alma, antecedente e dela independente, mas como a doutrina essencial sobre o destino
do homem. Claro que, no judaísmo tardio, já existia uma doutrina da
imortalidade de colorido helenístico; e aí está uma das razões para explicar
por que desde muito cedo não mais se compreendeu a pretensão total do
pensamento da ressurreição, no mundo grego-romano. Pelo contrário, a concepção
grega da imortalidade da alma e a mensagem bíblica da ressurreição dos mortos
foram consideradas como meia resposta (semi-resposta) à questão sobre o destino
eterno do homem, somando-se ambas como mútuo aditivo. Ao que o pensamento grego
já sabia sobre a imortalidade da alma, veio a Bíblia acrescentar a revelação de
que no fim dos tempos também os corpos seriam ressuscitados para compartilhar
para sempre o destino da alma – condenação ou bem-aventurança.
Em contrapartida, cumpre dizer que
originariamente não se tratava propriamente de duas concepções complementares;
estamos antes face a dois modos de ver totalmente diversos, que não podem ser
adicionados, sem mais nem menos: cada um deles apresenta as suas próprias
concepções do homem, de Deus e do futuro; por isto, em si, só podemos
compreender os dois pontos de vista como tentativas em busca de uma resposta
total ao problema do destino humano. A concepção grega tem como base a doutrina
da coexistência de duas substâncias no homem, estranhas entre si, das quais uma
(o corpo) se desfaz, enquanto a outra (a alma) é imortal por si e, por isto,
continua existindo, independente de qualquer outro ser. Com a separação do
corpo, elemento estranho à sua natureza, a alma alcançaria toda a sua
individualidade. Pelo contrário, o pensamento bíblico supõe a unidade indivisa do
homem; por exemplo, a Escritura desconhece qualquer palavra que designe
exclusivamente o corpo (separado e distinto da alma) e, vice-versa, o vocábulo
"alma" denota, as mais das vezes, o homem inteiro, existente
corporalmente; os poucos tópicos onde transparece outro modo de ver,
conservam-se oscilando entre o pensamento grego e o hebraico, sem contudo abrir
mão do modo antigo de ver. De acordo com isto, a ressurreição dos mortos (não
dos corpos!), de que fala a Escritura, trata da salvação do homem uno, indiviso,
e não apenas do destino de uma metade do homem (talvez até secundária). Com
isto fica esclarecido também que o cerne da fé na ressurreição não consiste de
modo algum na ideia da devolução dos corpos, à qual, no entanto, a reduzimos em
nossa concepção. Isto vale, mesmo se um tal modo de descrever seja
continuamente utilizado na Bíblia. Mas, neste caso, qual seria propriamente o
conteúdo daquilo que a Bíblia com o código da ressurreição dos mortos pretende
anunciar aos homens como a sua esperança? Creio que se possa destacar este
conteúdo peculiar mais facilmente no cotejo com a concepção dualista da
filosofia grega:
1. A ideia da imortalidade anunciada pela Bíblia com o termo
"ressurreição" significa
imortalidade da "pessoa", da figura una, chamada homem.
Enquanto no grego o ente típico "homem" é um produto perecível que,
como tal, não sobrevive, mas entra por dois caminhos diferentes, de acordo com
a estrutura heterogénea de corpo e alma, na concepção da fé bíblica é exactamente
o homem que, como tal, sobrevive embora metamorfoseado.
2. Trata-se de uma imortalidade
"dialógica" (= re-suscitamento!) isto é: imortalidade não
resulta simplesmente da evidência de não poder morrer aquilo que é indivisível,
mas da acção salvadora do amante que possui poder para tanto: o homem não pode
acabar totalmente, por ser conhecido e amado por Deus. Todo amor quer
eternidade – o amor de Deus não só a deseja, como a realiza e é. De facto, a ideia
bíblica da ressurreição nasceu da seguinte motivação dialógica: o orante sabe,
pela fé, que Deus restaurará o direito (Job 19,25 ss; Sl 73,23
ss); a fé está convencida de que serão participantes do cumprimento da promessa
os que sofreram pela causa de Deus (2Mac 7,9ss). A imortalidade
concebida pela Bíblia não é fruto da própria capacidade do que, por si, é
indestrutível, mas da participação no diálogo com o Criador; por esta razão ela
deve chamar-se ressurreição. O Criador tem em mira não só a alma, mas o homem a
realizar-se no meio da corporeidade da história, conferindo-lhe imortalidade;
por esta razão, ela deve chamar-se ressurreição dos mortos, ou seja, dos
homens. Cumpre notar que na expressão "ressurreição da carne" a
palavra "carne" significa o mesmo que "mundo humano" (no
sentido dialéctico da expressão, por exemplo: "toda a carne verá a salvação
de Deus", etc.); também no Credo o vocábulo não denota uma corporeidade
isolada da alma.
3. A ressurreição é esperada no
"último dia", no fim da história, na comunidade de todos os homens: o
que demonstra o carácter comum-humano da imortalidade do homem, relacionado com
a humanidade inteira, da qual, para a qual e com a qual cada indivíduo viveu,
tornando-se, por isto, feliz ou infeliz. Este nexo flui por si mesmo do carácter
humano-total da ideia bíblica da imortalidade na filosofia grega. O corpo e
também a história são plenamente extrínsecos à alma; esta continua existindo
libertada de corpo e da história, sem necessitar de outro ser. Pelo contrário a
co-humanidade é constitutiva para o homem imaginado como unidade; esta dimensão
não pode ser excluída, no caso em que o homem deva sobreviver. Assim, sob o
ponto de vista bíblico, parece resolvida a questão muito debatida, sobre a
possibilidade de uma comunidade dos homens entre si, após a morte; ela só pode
surgir com a predominância do elemento grego no início: ali onde se acredita na
"comunhão dos santos", está superada a ideia da alma separada (anima
separata dos escolásticos).
Todos estes pensamentos só puderam
desenvolver-se plenamente na concretização neo-testamentária da esperança
bíblica – o Antigo Testamento afinal deixa em suspenso a pergunta sobre o
futuro do homem. Só em Cristo, homem que "é um com o Pai", homem pelo
qual o ser humano entra na eternidade de Deus, se revela definitivamente o
futuro do homem. Somente nele, o "segundo Adão", encontra cabal
resposta a interrogação que o próprio homem é. Cristo é o homem completo; neste
sentido está presente nele a pergunta que somos nós, homens. Mas ele é, ao
mesmo tempo, fala de Deus a nós, "palavra de Deus". O diálogo entre
Deus e homem, com seus altos e baixos desde o raiar da história, entrou numa
nova fase em Cristo: nele a palavra de Deus tornou-se "carne",
entrando realmente na nossa existência. Ora, se o diálogo de Deus com o homem
denota vida, se é verdade que o parceiro dialogante de Deus tem vida justamente
por ser conversado por quem vive eternamente: significa que Cristo, como fala
de Deus a nós, é "a ressurreição e a vida" (Jo 11,25).
Significa, ainda, que a entrada em Cristo, isto é, a fé, se torna – no seu
sentido qualificado – uma entrada no ser conhecido e no ser amado por Deus, que
é imortalidade: "Quem crê no Filho, tem vida eterna" (Jo 3,15s;
3,36; 5,24). Somente nesta perspectiva se pode compreender a mentalidade do
quarto Evangelho que, apresentando a história de Lázaro, quer esclarecer o
leitor sobre a ressurreição, que não é apenas um acontecimento distante no fim
dos dias, mas acontece agora pela fé. Quem crê, está dialogando com Deus que é
vida e sobrevive à morte. Com isto coincidem também a linha
"dialógica" relacionada directamente com Deus e a linha co-humana do
conceito bíblico de imortalidade. Em Cristo homem com efeito, encontramos Deus;
mas encontramos não menos, nele, a comunidade dos outros, cujo caminho para
Deus passa através dele e por isto passa de uns a outros. A orientação para
Deus é, simultaneamente, orientação para a comunidade dos homens e somente a aceitação
desta comunidade denota aproximação a Deus, que não existe fora de Cristo, nem
ao lado da relação da história humana inteira e da sua tarefa humana.
Agora cai um raio de luz sobre a
questão muito debatida no tempo patrístico e, novamente, desde Lutero: o
problema do "estádio intermédio" entre morte e ressurreição: a
existência com Cristo, iniciada na fé, é vida de ressurreição iniciada e, por
isto, sobrevivência à morte (Flp 1,23; 2Cor 5,8; 1Tess 5,10).
O diálogo da fé já é vida agora e não pode ser destruído pela morte. Portanto,
na perspectiva do Novo Testamento, é insustentável a ideia do sono da morte,
objecto de repetidos estudos de teólogos luteranos e trazida à baila
ultimamente pelo Catecismo Holandês. Nem mesmo ela se justifica pela
frequente ocorrência do termo "dormir" no Novo Testamento. A
tendência espiritual do Novo Testamento opõe-se fundamentalmente e em todos os
seus livros a semelhante interpretação que, aliás, também dificilmente
encontraria cobertura no pensamento judaico sobre a vida após a morte.
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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