21/06/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

TERCEIRA PARTE
O ESPÍRITO E A IGREJA
CAPÍTULO SEGUNDO

Duas Questões Fundamentais do Artigo sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja

2. "Ressurreição da carne"

a)   Conteúdo da esperança neo-testamentária da ressurreição.
O artigo da ressurreição da carne coloca-nos num estranho dilema. Redescobrimos a indivisibilidade do homem; vivemos com intensidade nova a nossa corporeidade, experimentando-a como maneira inevitável de realizar o ser único do homem. A partir deste ponto estamos em condições de compreender de modo novo a mensagem bíblica que não confere imortalidade à alma separada, mas ao homem inteiro. Deste sentimento surgiu, no nosso século, sobretudo na teologia evangélica, uma forte oposição à doutrina grega da imortalidade da alma que, injustamente, passou a ser considerada como pensamento cristão. Na verdade, ela exprimiria um dualismo nada cristão; a fé cristã saberia a respeito de uma ressurreição dos mortos pelo poder de Deus, exclusivamente. Mas, já surgem as objecções: a doutrina grega sobre a imortalidade pode ser problemática, mas não será ainda menos realizável ainda para nós a afirmação bíblica? Unidade do homem, muito bem; mas quem seria capaz de se imaginar numa ressurreição do corpo, dentro da nossa hodierna cosmovisão? Uma ressurreição desta forma incluiria – como parece – um novo céu e uma nova terra, exigiria corpos imortais, isentos da necessidade de alimentar-se, postularia um estado da matéria totalmente mudado. Ora, tudo isto não seria um absurdo completo, oposto frontalmente à nossa concepção da matéria e ao seu modo de proceder, algo incuravelmente mitológico?

Creio que realmente só chegaremos a uma resposta procurando cuidadosamente as exactas intenções e sentidos da doutrina bíblica e re-examinando as relações da Bíblia com o mundo grego; pois o encontro dos dois pensamentos alterou ambas as concepções, encobrindo os sentidos originais tanto de uma como de outra, numa visão nova que é mister remover primeiro para lhe alcançar o fundo. A esperança na ressurreição dos mortos apresenta a forma básica da esperança na imortalidade; daí surge no Novo Testamento, não propriamente como ideia complementar de uma imortalidade da alma, antecedente e dela independente, mas como a doutrina essencial sobre o destino do homem. Claro que, no judaísmo tardio, já existia uma doutrina da imortalidade de colorido helenístico; e aí está uma das razões para explicar por que desde muito cedo não mais se compreendeu a pretensão total do pensamento da ressurreição, no mundo grego-romano. Pelo contrário, a concepção grega da imortalidade da alma e a mensagem bíblica da ressurreição dos mortos foram consideradas como meia resposta (semi-resposta) à questão sobre o destino eterno do homem, somando-se ambas como mútuo aditivo. Ao que o pensamento grego já sabia sobre a imortalidade da alma, veio a Bíblia acrescentar a revelação de que no fim dos tempos também os corpos seriam ressuscitados para compartilhar para sempre o destino da alma – condenação ou bem-aventurança.

Em contrapartida, cumpre dizer que originariamente não se tratava propriamente de duas concepções complementares; estamos antes face a dois modos de ver totalmente diversos, que não podem ser adicionados, sem mais nem menos: cada um deles apresenta as suas próprias concepções do homem, de Deus e do futuro; por isto, em si, só podemos compreender os dois pontos de vista como tentativas em busca de uma resposta total ao problema do destino humano. A concepção grega tem como base a doutrina da coexistência de duas substâncias no homem, estranhas entre si, das quais uma (o corpo) se desfaz, enquanto a outra (a alma) é imortal por si e, por isto, continua existindo, independente de qualquer outro ser. Com a separação do corpo, elemento estranho à sua natureza, a alma alcançaria toda a sua individualidade. Pelo contrário, o pensamento bíblico supõe a unidade indivisa do homem; por exemplo, a Escritura desconhece qualquer palavra que designe exclusivamente o corpo (separado e distinto da alma) e, vice-versa, o vocábulo "alma" denota, as mais das vezes, o homem inteiro, existente corporalmente; os poucos tópicos onde transparece outro modo de ver, conservam-se oscilando entre o pensamento grego e o hebraico, sem contudo abrir mão do modo antigo de ver. De acordo com isto, a ressurreição dos mortos (não dos corpos!), de que fala a Escritura, trata da salvação do homem uno, indiviso, e não apenas do destino de uma metade do homem (talvez até secundária). Com isto fica esclarecido também que o cerne da fé na ressurreição não consiste de modo algum na ideia da devolução dos corpos, à qual, no entanto, a reduzimos em nossa concepção. Isto vale, mesmo se um tal modo de descrever seja continuamente utilizado na Bíblia. Mas, neste caso, qual seria propriamente o conteúdo daquilo que a Bíblia com o código da ressurreição dos mortos pretende anunciar aos homens como a sua esperança? Creio que se possa destacar este conteúdo peculiar mais facilmente no cotejo com a concepção dualista da filosofia grega:

1.    A ideia da imortalidade anunciada pela Bíblia com o termo
"ressurreição" significa imortalidade da "pessoa", da figura una, chamada homem. Enquanto no grego o ente típico "homem" é um produto perecível que, como tal, não sobrevive, mas entra por dois caminhos diferentes, de acordo com a estrutura heterogénea de corpo e alma, na concepção da fé bíblica é exactamente o homem que, como tal, sobrevive embora metamorfoseado.

2. Trata-se de uma imortalidade "dialógica" (= re-suscitamento!) isto é: imortalidade não resulta simplesmente da evidência de não poder morrer aquilo que é indivisível, mas da acção salvadora do amante que possui poder para tanto: o homem não pode acabar totalmente, por ser conhecido e amado por Deus. Todo amor quer eternidade – o amor de Deus não só a deseja, como a realiza e é. De facto, a ideia bíblica da ressurreição nasceu da seguinte motivação dialógica: o orante sabe, pela fé, que Deus restaurará o direito (Job 19,25 ss; Sl 73,23 ss); a fé está convencida de que serão participantes do cumprimento da promessa os que sofreram pela causa de Deus (2Mac 7,9ss). A imortalidade concebida pela Bíblia não é fruto da própria capacidade do que, por si, é indestrutível, mas da participação no diálogo com o Criador; por esta razão ela deve chamar-se ressurreição. O Criador tem em mira não só a alma, mas o homem a realizar-se no meio da corporeidade da história, conferindo-lhe imortalidade; por esta razão, ela deve chamar-se ressurreição dos mortos, ou seja, dos homens. Cumpre notar que na expressão "ressurreição da carne" a palavra "carne" significa o mesmo que "mundo humano" (no sentido dialéctico da expressão, por exemplo: "toda a carne verá a salvação de Deus", etc.); também no Credo o vocábulo não denota uma corporeidade isolada da alma.

3. A ressurreição é esperada no "último dia", no fim da história, na comunidade de todos os homens: o que demonstra o carácter comum-humano da imortalidade do homem, relacionado com a humanidade inteira, da qual, para a qual e com a qual cada indivíduo viveu, tornando-se, por isto, feliz ou infeliz. Este nexo flui por si mesmo do carácter humano-total da ideia bíblica da imortalidade na filosofia grega. O corpo e também a história são plenamente extrínsecos à alma; esta continua existindo libertada de corpo e da história, sem necessitar de outro ser. Pelo contrário a co-humanidade é constitutiva para o homem imaginado como unidade; esta dimensão não pode ser excluída, no caso em que o homem deva sobreviver. Assim, sob o ponto de vista bíblico, parece resolvida a questão muito debatida, sobre a possibilidade de uma comunidade dos homens entre si, após a morte; ela só pode surgir com a predominância do elemento grego no início: ali onde se acredita na "comunhão dos santos", está superada a ideia da alma separada (anima separata dos escolásticos).

Todos estes pensamentos só puderam desenvolver-se plenamente na concretização neo-testamentária da esperança bíblica – o Antigo Testamento afinal deixa em suspenso a pergunta sobre o futuro do homem. Só em Cristo, homem que "é um com o Pai", homem pelo qual o ser humano entra na eternidade de Deus, se revela definitivamente o futuro do homem. Somente nele, o "segundo Adão", encontra cabal resposta a interrogação que o próprio homem é. Cristo é o homem completo; neste sentido está presente nele a pergunta que somos nós, homens. Mas ele é, ao mesmo tempo, fala de Deus a nós, "palavra de Deus". O diálogo entre Deus e homem, com seus altos e baixos desde o raiar da história, entrou numa nova fase em Cristo: nele a palavra de Deus tornou-se "carne", entrando realmente na nossa existência. Ora, se o diálogo de Deus com o homem denota vida, se é verdade que o parceiro dialogante de Deus tem vida justamente por ser conversado por quem vive eternamente: significa que Cristo, como fala de Deus a nós, é "a ressurreição e a vida" (Jo 11,25). Significa, ainda, que a entrada em Cristo, isto é, a fé, se torna – no seu sentido qualificado – uma entrada no ser conhecido e no ser amado por Deus, que é imortalidade: "Quem crê no Filho, tem vida eterna" (Jo 3,15s; 3,36; 5,24). Somente nesta perspectiva se pode compreender a mentalidade do quarto Evangelho que, apresentando a história de Lázaro, quer esclarecer o leitor sobre a ressurreição, que não é apenas um acontecimento distante no fim dos dias, mas acontece agora pela fé. Quem crê, está dialogando com Deus que é vida e sobrevive à morte. Com isto coincidem também a linha "dialógica" relacionada directamente com Deus e a linha co-humana do conceito bíblico de imortalidade. Em Cristo homem com efeito, encontramos Deus; mas encontramos não menos, nele, a comunidade dos outros, cujo caminho para Deus passa através dele e por isto passa de uns a outros. A orientação para Deus é, simultaneamente, orientação para a comunidade dos homens e somente a aceitação desta comunidade denota aproximação a Deus, que não existe fora de Cristo, nem ao lado da relação da história humana inteira e da sua tarefa humana.

Agora cai um raio de luz sobre a questão muito debatida no tempo patrístico e, novamente, desde Lutero: o problema do "estádio intermédio" entre morte e ressurreição: a existência com Cristo, iniciada na fé, é vida de ressurreição iniciada e, por isto, sobrevivência à morte (Flp 1,23; 2Cor 5,8; 1Tess 5,10). O diálogo da fé já é vida agora e não pode ser destruído pela morte. Portanto, na perspectiva do Novo Testamento, é insustentável a ideia do sono da morte, objecto de repetidos estudos de teólogos luteranos e trazida à baila ultimamente pelo Catecismo Holandês. Nem mesmo ela se justifica pela frequente ocorrência do termo "dormir" no Novo Testamento. A tendência espiritual do Novo Testamento opõe-se fundamentalmente e em todos os seus livros a semelhante interpretação que, aliás, também dificilmente encontraria cobertura no pensamento judaico sobre a vida após a morte.

(cont)

joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.


(Revisão da versão portuguesa por ama)

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