26/04/2016

Tratado da vida de Cristo 97

Questão 46: Da Paixão de Cristo

Em seguida devemos tratar do concernente à partida de Cristo, deste mundo. E primeiro, da sua paixão. Segunda, da sua morte. Terceiro, da sua sepultura. Quarto, da descida aos infernos. Sobre a paixão temos três considerações a fazer. Primeiro, da sua paixão em si mesma. Segunda, da causa eficiente da paixão. Terceiro, do fruto da paixão.


Na primeira questão discutem-se doze artigos:


Art. 1 — Se era necessário Cristo sofrer pela libertação do género humano.
Art. 2 — Se era possível outro modo da libertação humana que não fosse a paixão de Cristo.
Art. 3 — Se havia outro modo mais conveniente da liberação humana do que pela paixão de Cristo.
Art. 4 — Se Cristo devia ter sofrido na cruz.
Art. 5 — Se Cristo sofreu todos os sofrimentos.
Art. 6 — Se a dor da paixão de Cristo foi maior que todas as outras dores.
Art. 7 — Se Cristo sofreu em toda a sua alma.
Art. 8 — Se a alma de Cristo, durante o tempo da sua paixão, fruía totalmente o gozo da bem-aventurança.
Art. 9 — Se Cristo sofreu no tempo conveniente.
Art. 10 — Se Cristo sofreu no lugar conveniente.
Art. 11 — Se foi conveniente Cristo ser crucificado com os ladrões.
Art. 12 — Se a paixão deve ser atribuída à sua divindade.

Art. 1 — Se era necessário Cristo sofrer pela libertação do género humano.

 O primeiro discute-se assim. Parece que não era necessário Cristo sofrer pela libertação do género humano.

1. — Pois, só Deus podia liberar o género humano, segundo a Escritura: Porventura não sou eu o Senhor e não é assim que não há outro Deus senão eu? Deus justo e salvador não no há fora de mim. Ora, Deus não está sujeito a nenhuma necessidade, o que lhe repugnaria à omnipotência. Logo, não era necessário que Cristo sofresse.

2. Demais. — O necessário opõe-se ao voluntário. Ora, Cristo sofreu por vontade própria, como o diz a Escritura: Foi oferecido porque ele mesmo quis. Logo, não foi necessário que sofresse.

3. Demais. — Como diz a Escritura, todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade. Ora, não era necessário que sofresse, por parte da misericórdia divina, a qual, assim como distribui os seus dons gratuitamente, assim também há-de gratuitamente perdoar as dívidas sem satisfação. Nem por parte da justiça divina, pela qual o homem merecera a condenação eterna. Logo, parece que não era necessário ter Cristo sofrido pela libertação dos homens.

4. Demais. — A natureza angélica é mais excelente que a humana, como ensina Dionísio. Ora, Cristo não sofreu para reparar a natureza angélica, que tinha pecado. Logo, parece que não lhe fora também necessário sofrer pela salvação do género humano.

Mas, em contrário, o Evangelho: Como Moisés no deserto levantou a serpente, assim importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. O que se entende da exaltação na cruz. Logo, parece que Cristo devia ter sofrido.

SOLUÇÃO. — Como o ensina o Filósofo, a palavra necessária é susceptível de muitas acepções. — Numa, significa o que não pode por sua natureza, apresentar-se de modo diferente. E, nesse sentido, é claro que não foi necessário Cristo ter sofrido, nem da parte de Deus nem da do homem. — Noutra, o necessário é-o em virtude de uma causa exterior. Se essa causa for eficiente ou motriz, produz a necessidade de coacção; tal o caso de quem não pode andar por causa da violência do que o detém. Se porém essa causa exterior geratriz da necessidade for o fim, o necessário sê-lo-á pela suposição do fim; isto é, quando o fim de nenhum modo pode ser atingido sem esse meio necessário, ou não o pode convenientemente, senão recorrendo a tal meio. Logo, que Cristo sofresse não era necessário por uma necessidade de coacção: nem por parte de Deus, que o determinou a sofrer, nem por parte do próprio Cristo, que sofreu voluntariamente.

Necessário, porém o foi pela necessidade de fim. O que podemos entender de três modos. — Primeiro, relativamente a nós, que fomos liberados pela sua paixão, segundo o Evangelho: Importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. — Segundo, relativamente ao próprio Cristo, que pelas humilhações da paixão mereceu a glória da exaltação. E a isso se refere o Evangelho quando pergunta: Porventura não importava que o Cristo sofresse estas coisas e que assim entrasse na sua glória? — Terceiro, relativamente a Deus, cuja determinação concernente à paixão de Cristo foi profetizada nas Escrituras e prefigurada, nas observâncias do Velho Testamento. E é o que diz o Evangelho: O Filho do homem vai segundo o que está decretado. E mais adiante: É o que queriam dizer as palavras que eu vos dizia quando ainda estava convosco, que era necessário que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés e nos profetas e nos salmos. E ainda: Assim é que estava escrito que importava que o Cristo padecesse e que ressurgisse dos mortos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. - A objecção colhe, quanto à necessidade imposta pela coacção, da parte de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objecção colhe, quanto à necessidade imposta pela coacção, da parte do homem Cristo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Liberar o homem pela paixão de Cristo, convinha tanto à misericórdia como à justiça de Cristo. À justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez pelo pecado do género humano; e assim o homem foi libertado pela justiça de Cristo. À misericórdia, por seu lado, porque não podendo o homem por si mesmo satisfazer pelo pecado de toda a natureza humana, como se disse, Deus lhe deu o seu Filho único como reparador, segundo o Apóstolo: Tendo sido justificados gratuitamente por sua graça, pela redenção que tem em Jesus Cristo, ao qual propôs Deus para ser vítima de propiciação pela fé no seu sangue. O que implicava uma misericórdia mais abundante que se tivesse perdoado os pecados, sem satisfação. Donde o dizer o Apóstolo: Deus, que é rico em misericórdia, pela sua extremada caridade, com que nos amou, ainda quando estávamos mortos pelos pecados, nos deu vida juntamente em Cristo.

RESPOSTA À QUARTA. — O pecado do anjo não era reparável, como o era o do homem, como resulta do que foi dito na Primeira Parte.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.



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