Em seguida devemos tratar do
concernente à partida de Cristo, deste mundo. E primeiro, da sua paixão.
Segunda, da sua morte. Terceiro, da sua sepultura. Quarto, da descida aos infernos.
Sobre a paixão temos três considerações a fazer. Primeiro, da sua paixão em si
mesma. Segunda, da causa eficiente da paixão. Terceiro, do fruto da paixão.
Na primeira questão discutem-se doze
artigos:
Art. 1 — Se era necessário Cristo
sofrer pela libertação do género humano.
Art. 2 — Se era possível outro modo da
libertação humana que não fosse a paixão de Cristo.
Art. 3 — Se havia outro modo mais
conveniente da liberação humana do que pela paixão de Cristo.
Art. 4 — Se Cristo devia ter sofrido
na cruz.
Art. 5 — Se Cristo sofreu todos os
sofrimentos.
Art. 6 — Se a dor da paixão de Cristo
foi maior que todas as outras dores.
Art. 7 — Se Cristo sofreu em toda a
sua alma.
Art. 8 — Se a alma de Cristo, durante
o tempo da sua paixão, fruía totalmente o gozo da bem-aventurança.
Art. 9 — Se Cristo sofreu no tempo
conveniente.
Art. 10 — Se Cristo sofreu no lugar
conveniente.
Art. 11 — Se foi conveniente Cristo
ser crucificado com os ladrões.
Art. 12 — Se a paixão deve ser
atribuída à sua divindade.
Art.
1 — Se era necessário Cristo sofrer pela libertação do género humano.
O primeiro discute-se assim. Parece que não
era necessário Cristo sofrer pela libertação do género humano.
1. — Pois, só Deus podia liberar o género
humano, segundo a Escritura: Porventura
não sou eu o Senhor e não é assim que não há outro Deus senão eu? Deus justo e
salvador não no há fora de mim. Ora, Deus não está sujeito a nenhuma
necessidade, o que lhe repugnaria à omnipotência. Logo, não era necessário que
Cristo sofresse.
2. Demais. — O necessário opõe-se ao
voluntário. Ora, Cristo sofreu por vontade própria, como o diz a Escritura: Foi oferecido porque ele mesmo quis.
Logo, não foi necessário que sofresse.
3. Demais. — Como diz a Escritura, todos os caminhos do Senhor são misericórdia
e verdade. Ora, não era necessário que sofresse, por parte da misericórdia
divina, a qual, assim como distribui os seus dons gratuitamente, assim também
há-de gratuitamente perdoar as dívidas sem satisfação. Nem por parte da justiça
divina, pela qual o homem merecera a condenação eterna. Logo, parece que não
era necessário ter Cristo sofrido pela libertação dos homens.
4. Demais. — A natureza angélica é mais excelente que a humana, como ensina
Dionísio. Ora, Cristo não sofreu para reparar a natureza angélica, que tinha
pecado. Logo, parece que não lhe fora também necessário sofrer pela salvação do
género humano.
Mas, em contrário, o Evangelho: Como Moisés no deserto levantou a serpente,
assim importa que seja levantado o Filho do homem, para que todo o que crê nele
não pereça, mas tenha a vida eterna. O que se entende da exaltação na cruz.
Logo, parece que Cristo devia ter sofrido.
SOLUÇÃO. — Como o ensina o Filósofo, a palavra necessária é susceptível de muitas
acepções. — Numa, significa o que não pode por sua natureza, apresentar-se
de modo diferente. E, nesse sentido, é claro que não foi necessário Cristo ter sofrido,
nem da parte de Deus nem da do homem. — Noutra, o necessário é-o em virtude de
uma causa exterior. Se essa causa for eficiente ou motriz, produz a necessidade
de coacção; tal o caso de quem não pode andar por causa da violência do que o
detém. Se porém essa causa exterior geratriz da necessidade for o fim, o
necessário sê-lo-á pela suposição do fim; isto é, quando o fim de nenhum modo
pode ser atingido sem esse meio necessário, ou não o pode convenientemente,
senão recorrendo a tal meio. Logo, que Cristo sofresse não era necessário por
uma necessidade de coacção: nem por parte de Deus, que o determinou a sofrer,
nem por parte do próprio Cristo, que sofreu voluntariamente.
Necessário, porém o foi pela
necessidade de fim. O que podemos entender de três modos. — Primeiro,
relativamente a nós, que fomos liberados pela sua paixão, segundo o Evangelho: Importa que seja levantado o Filho do homem,
para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. —
Segundo, relativamente ao próprio Cristo, que pelas humilhações da paixão
mereceu a glória da exaltação. E a isso se refere o Evangelho quando pergunta: Porventura não importava que o Cristo
sofresse estas coisas e que assim entrasse na sua glória? — Terceiro,
relativamente a Deus, cuja determinação concernente à paixão de Cristo foi
profetizada nas Escrituras e prefigurada, nas observâncias do Velho Testamento.
E é o que diz o Evangelho: O Filho do
homem vai segundo o que está decretado. E mais adiante: É o que queriam dizer as palavras que eu vos
dizia quando ainda estava convosco, que era necessário que se cumprisse tudo o
que de mim estava escrito na lei de Moisés e nos profetas e nos salmos. E
ainda: Assim é que estava escrito que
importava que o Cristo padecesse e que ressurgisse dos mortos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
- A objecção colhe, quanto à necessidade imposta pela coacção, da parte de
Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A objecção
colhe, quanto à necessidade imposta pela coacção, da parte do homem Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Liberar o homem
pela paixão de Cristo, convinha tanto à misericórdia como à justiça de Cristo.
À justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez pelo pecado do género
humano; e assim o homem foi libertado pela justiça de Cristo. À misericórdia, por
seu lado, porque não podendo o homem por si mesmo satisfazer pelo pecado de
toda a natureza humana, como se disse, Deus lhe deu o seu Filho único como
reparador, segundo o Apóstolo: Tendo sido
justificados gratuitamente por sua graça, pela redenção que tem em Jesus
Cristo, ao qual propôs Deus para ser vítima de propiciação pela fé no seu
sangue. O que implicava uma misericórdia mais abundante que se tivesse
perdoado os pecados, sem satisfação. Donde o dizer o Apóstolo: Deus, que é rico em misericórdia, pela sua
extremada caridade, com que nos amou, ainda quando estávamos mortos pelos
pecados, nos deu vida juntamente em Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — O pecado do anjo
não era reparável, como o era o do homem, como resulta do que foi dito na
Primeira Parte.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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