Tempo Comum
Semana II
Evangelho:
Mc 2, 23-28
23 Sucedeu também
que, caminhando Jesus em dia de sábado, por entre campos de trigo, os
discípulos começaram a colher espigas, enquanto caminhavam. 24 Os
fariseus diziam-Lhe: «Como é que fazem ao sábado o que não é permitido?». 25
Ele respondeu: «Nunca lestes o que fez David, quando se viu necessitado, e teve
fome, ele e os que com ele estavam? 26 Como entrou na casa de Deus,
sendo sumo-sacerdote Abiatar, e comeu os pães da proposição, dos quais não era
permitido comer, senão aos sacerdotes, e deu também aos que o acompanhavam?». 27
E acrescentou: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. 28
Por isso o Filho do Homem é Senhor também do sábado».
Comentário:
Nenhum pai impõe aos seus filhos regras de
conduta cuja não observância implica castigo severo sem qualquer outra
consideração.
Cumprir o que está determinado é o que se
espera, sem dúvida, mas sempre dentro do contexto e nas circunstâncias normais
e correntes.
(ama, comentário sobre MC 2,
23-28, Malta, 2015.01.20)
Leitura espiritual
Vida cristã
A caridade cristã no modo
de falar
«Se permanecerdes na Minha palavra, sereis
Meus verdadeiros discípulos; conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres»
[i].
Num
amplo diálogo com os judeus surge esta promessa do Senhor que, na sua
simplicidade e solenidade, atravessa os séculos: a verdade torna-nos livres.
Mas
também atravessam os séculos, as falsas promessas de quem era homicida desde o
princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando
diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira [ii].
«A
razão mais sublime da dignidade do homem − ensina o Concílio Vaticano II −
consiste na sua vocação à união com Deus. É desde o começo da sua existência
que o homem é convidado a dialogar com Deus» [iii].
Assim, pode dizer-se que a palavra − a necessidade de viver em diálogo, em
comunhão − é o mais próprio da pessoa. Na palavra comunica-se a própria pessoa:
quando falamos não emitimos apenas uma mensagem, mas em certo sentido damo-nos
a nós mesmos. E não só chegamos aos ouvidos dos demais, mas ao seu coração, ao
centro do seu ser. Por isso, a palavra tem uma dimensão de alguma maneira
sagrada. O seu uso recto beneficia e edifica as pessoas, enquanto as palavras
descuidadas maltratam os outros. Percebeu-o intensamente Alexandre
Soljenitsyne: as mentiras, dizia, não são palavras que dizemos e ficam
flutuando no ar, longe de nós, mas cada mentira corrompe-nos por dentro, até
consumir-nos as entranhas.
O exemplo dos primeiros
cristãos
Na
sua pregação, o Senhor convida a todos à transparência; a ser simples, a evitar
casuísticas que com frequência encobrem, ou pelo menos dão início à mentira:
dizei somente, sim, se é sim; não, se é não. Tudo o que passa além disto vem do
Maligno [iv].
Duríssimo contra a hipocrisia, o Senhor elogia calorosamente aqueles onde não
há duplicidade nem engano [v].
É próprio d´Ele um estilo, um modo de fazer, que penetrou profundamente entre
os primeiros cristãos: a epístola de Tiago expressa-se com acentos semelhantes:
Que o vosso sim, seja sim; que o vosso não, seja não. Assim não caireis ao
golpe do julgamento [vi].
S. Pedro fala-lhes de rejeitar toda a malícia, toda a astúcia, fingimentos,
invejas e toda a espécie de maledicência para poder aproximar-se de Deus, e
como crianças recém-nascidas desejar com ardor o leite espiritual [vii].
Essa
inocência cristã na palavra, no entanto, não se consegue com uma simples
intenção genérica, boazinha: a tensão entre a verdade e a mentira está presente
em todo o arco da nossa vida. A Escritura não se limita a enunciar os
princípios, mas assinala com detalhe os abusos da palavra, a incoerência entre
o que é, e o que se diz que é. Neste sentido é exemplar, e perene actualidade,
a admoestação de S. Tiago sobre a língua:
Se
alguém não cair por palavra, este é um homem perfeito, capaz de refrear todo o
seu corpo. Quando pomos o freio na boca dos cavalos, para que nos obedeçam,
dirigimos também todo o seu corpo. Vede também os navios: por grandes que sejam
e embora agitados por ventos impetuosos, são governados com um pequeno leme à
vontade do piloto. Assim também a língua é um pequeno membro, mas pode
gloriar-se de grandes coisas (...) Todas as espécies de feras selvagens, de
aves, de répteis e de peixes do mar se domam e têm sido domadas pela espécie
humana. A língua, porém, nenhum homem a pode domar [viii].
Esta
mesma preocupação em "refrear" a língua está muito presente nos
ensinamentos do Papa Francisco. Com a mesma insistência do Apóstolo, nunca perde
uma oportunidade de pedir aos cristãos que nos esforcemos em pôr freio à
palavra que destrói. O Papa sabe que o seu chamamento à renovação da vida dos
cristãos e da Igreja ficaria desvirtuada se não chegássemos a esse pequeno leme
que decide o itinerário da nave.
Todos
agradecemos a franqueza com que fala o Sucessor de Pedro, embora haja o risco
de que pensemos, apressadamente, que fala para os demais, e passemos a página
sem nos perguntarmos em que medida os nossos hábitos actuais, ou as formas
socialmente aceites de se comportar nesta área, estão de acordo com o
Evangelho. O Catecismo da Igreja Católica [ix]
o Magistério do Papa Francisco oferecem muitas pistas para reflexão.
A mentira, idioma da
hipocrisia
Com
que delicadeza nos esforçamos por amar e dizer sempre a verdade, em evitar
completamente a mentira? Porque não podemos esquecer a gravidade da mentira que
«é uma autêntica violência feita a outrem. Este é atingido na sua capacidade de
conhecer, a qual é condição de todo o juízo e de toda a decisão. A mentira
contém em gérmen a divisão dos espíritos e todos os males que a mesma suscita.
É funesta para toda a sociedade: destrói pela base a confiança entre os homens
e retalha o tecido das relações sociais» [x].
O
Papa falou com energia da linguagem da hipocrisia, próprio de quem não ama a
verdade. Eles amam-se apenas a si mesmos, e, deste modo, procuram enganar,
envolver o outro no seu engano, na sua mentira. Têm um coração mentiroso; não
podem dizer a verdade [xi].
Como S. Pedro, apela para a inocência das crianças, ao leite espiritual [xii]
não adulterado: uma criança não é hipócrita, porque não está corrompida. Quando
Jesus nos diz, que o vosso modo de falar seja: "sim, sim", "não,
não", com alma de criança, diz-nos o contrário do que dizem os corruptos
(...). Peçamos hoje ao Senhor para que o nosso modo de falar seja o da
simplicidade, o das crianças; falar como filhos de Deus: portanto falar na
verdade do amor [xiii].
A murmuração: aprender a
morder a própria língua
No
sermão da montanha, Jesus leva até à radicalidade o quinto mandamento do
Decálogo: Ouvistes o que foi dito aos
antigos: Não matarás, mas quem matar será castigado pelo juízo do tribunal. Mas
eu vos digo: todo aquele que se irar contra seu irmão será castigado pelos
juízes (...) Aquele que lhe disser:
Louco, será condenado ao fogo da geena [xiv].
As
palavras do Senhor são duras, mas é que, quem entra na vida cristã, o que
aceita seguir este caminho, tem exigências superiores aos outros. Não tem
vantagens superiores. Não! Exigências superiores [xv].
A murmuração e o insulto não se reduzem a uma brincadeira inocente: matam o
irmão. Escreve S. Josemaria: «Sabes o mal que podes ocasionar atirando para
longe uma pedra com os olhos vendados? Também não sabes o prejuízo que podes
causar, às vezes grave, quando lanças frases de murmuração, que te parecem
levíssimas por teres os olhos vendados pela falta de escrúpulo ou pela exaltação»
[xvi].
Então
quando há algo negativo no coração contra alguém, e o expressa com um insulto,
com uma maldição ou com cólera, há algo de errado, e têm que se converter têm
que mudar [xvii].
Quem
pensasse, que de qualquer maneira, é justificável falar mal de alguém, porque
"merece", o Papa faz-lhe esta recomendação. Vai e reza por ele. Vai e
faz penitência por ela. E depois, se for necessário, fala a essa pessoa que
pode resolver o problema. Mas não o digas a todos (...) Paulo foi um grande
pecador. E diz de si mesmo: primeiro eu era um perseguidor, um blasfemo, um
violento. Mas tiveram misericórdia comigo. Talvez nenhum de nós blasfeme. Mas
se algum de nós murmura, é certamente um perseguidor e um violento [xviii].
Devemos
também ter em conta o efeito devastador que tem esta conduta na vida familiar,
social e eclesial; trata-se de uma chuva fina que parece inocente, mas corrói
tudo: Que cada um se pergunte hoje: faço crescer a unidade na família, na
paróquia, na comunidade, ou sou um falador, uma faladora? Sou motivo de
divisão, de mal-estar? Vós não sabeis o dano que fazem à Igreja, às paróquias,
às comunidades, as bisbilhotices! Fazem dano! As bisbilhotices ferem. Um
cristão, antes de murmurar, deve morder a língua [xix].
A difamação e a
necessidade de reparar
É
bom ter presente que não basta que algo seja ou pareça verdadeiro para que se
possa divulgar sem mais considerações. «O direito à comunicação da verdade, não
é absoluto. Cada um deve conformar a sua vida com o preceito evangélico do amor
fraterno, mas este requer, em situações concretas, que avaliemos se convém ou
não revelar a verdade a quem a pede» [xx].
Muitas
vezes, o suposto interesse informativo (tanto do emissor como do receptor) é na
realidade o disfarce de uma curiosidade desrespeitosa, que deriva com
frequência em bisbilhotices ou boatos, em insinuações e afirmações caluniosas
sobre pessoas e instituições, que se propagam depois sem que haja muitas
possibilidades de as rectificar.
Por
esse motivo, em tais casos, a reparação é um dever de consciência. Assim o
recorda o Catecismo: «Qualquer falta cometida contra a justiça e contra a
verdade implica o dever da reparação, mesmo que o seu autor tenha sido
perdoado. Quando for impossível reparar publicamente um mal, deve-se fazê-lo em
segredo; se aquele que foi lesado não pode ser indemnizado diretamente, deve
dar-se-lhe uma satisfação moral, em nome da caridade. Este dever de reparação
diz respeito também às faltas cometidas contra a reputação alheia. A reparação,
moral e às vezes material, deve ser avaliada segundo a medida do prejuízo causado
e obriga em consciência» [xxi].
Vale
a pena rever, portanto, a nossa atitude ante a ligeireza com que se costuma
tratar em conversas e comentários − também entre os cristãos – a intimidade e a
fama dos outros, talvez alegando como justificação que um ou uma se está
limitando a repetir o que dizem as notícias ou os rumores! Os mexericos ferem,
são bofetadas na fama de uma pessoa, são bofetadas no coração de uma pessoa [xxii].
Também podemos pensar no nosso modo de reagir ante a facilidade com que se
aceita como coisa normal criticar as pessoas (desde a vizinha de cima, até ao
político ou ao futebolista que vai à televisão), por palavra ou por escrito, de
forma amarga ou malévola, sem compreensão, chegando com grande naturalidade até
à calúnia e ao insulto, sem a menor possibilidade de que a crítica seja
construtiva para ninguém.
Que
procuramos?
Que
ganham os demais, quando difundimos essas notícias ou rumores, sem saber
exatamente o que há de verdade? Porque, de facto, até mesmo a informação
verdadeira que sabemos sobre os outros deve ser analisada com prudência e
ponderação, para não difamar nem escandalizar ou provocar outros danos [xxiii].
Facilmente deixamos que adormeça a nossa sensibilidade para rejeitar tal
comportamento, ou advertir que talvez estejamos caindo também nele. E se o sal
perde o sabor, com que lhe será restituído o sabor? [xxiv].
Os cristãos que têm a missão e a graça para a levar a cabo, para manter no
mundo o ar livre e limpo da verdade. «Hoje, quando o ambiente está cheio de
desobediência, de murmuração, de engano, de enredo, temos de amar mais do que
nunca a obediência, a sinceridade, a lealdade, a simplicidade: e tudo isto, com
sentido sobrenatural, far-nos-á mais humanos» [xxv].
Para conseguir a paz
Senhor,
desarmai a língua e as mãos, renovai os corações e as mentes, para que a
palavra que nos leva ao encontro seja sempre «irmão» [xxvi].
[xxvii]
A
verdade que nos torna livres [xxviii]
não consiste simplesmente na posse ou na transmissão de manifestos e
informações que correspondem à realidade das coisas. É algo mais profundo: a
verdade que fundamenta a sinceridade e a lealdade para com os outros, em todas
as suas formas, é que todos os homens somos irmãos, filhos do mesmo Pai.
Jesus
Cristo mostrou-nos com a sua vida, veritatem
faciens in caritate [xxix],
esta harmonia fundamental entre a verdade e o amor. Por isso, a verdade que
liberta e traz paz, está nessa manifestação eminente do amor de Deus para com
os homens, que é a Cruz redentora: Como queria eu que, por um momento, todos os
homens e mulheres de boa vontade olhassem para a Cruz! Na Cruz podemos ver a
resposta de Deus: ali à violência não se respondeu com violência, à morte não
se respondeu com a linguagem da morte. No silêncio da Cruz cala-se o fragor das
armas e fala a linguagem da reconciliação, do perdão, do diálogo, da paz [xxx].
r. valdés e c. ayxelà
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Jo 8, 31-32
[ii] Jo 8, 44
[iii] Gaudium et Spes, 19
[iv] Mt 5, 37
[v] cfr. Jo 1, 47
[vi] Tg 5, 12
[vii] 1 Pe 2, 1-2
[viii] Tg 3, 2-8
[ix] cfr. n. 2464 e ss.)
[x] Catecismo, n. 2486
[xi] Homilia, 4-VI-2013
[xii] 1 Pe 2, 2
[xiii] Homilia, 4-VI-2013
[xiv] Mt 5, 21-22
[xv] Homilia, 13-VI-2013
[xvi] Caminho, 455
[xvii] Homilia, 13-VI-2013
[xviii] Homilia, 13-IX-2013
[xix] Homilia, 25-IX-2013
[xx] Catecismo, n. 2488
[xxi] Catecismo, n. 2487
[xxii] Homilia, 12-IX-2014
[xxiii] cfr. Catecismo, n.
2477 e 2479
[xxiv] Mt 5, 13
[xxv] S. Josemaria, Forja,
n. 530
[xxvi] Discurso, 8-VI-2014
[xxvii] No encontro com os
presidentes de Israel e da Palestina para pedir a paz, o Papa pronunciou uma
oração que, na parte final, rezava assim:
[xxviii] cfr. Jo 8, 31-32
[xxix] cfr. Ef 4, 15
[xxx] Homilia, 7-XI-2014
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