24/02/2015

Tratado do verbo encarnado 130

Questão 21: Da oração de Cristo

Art. 2 — Se a Cristo, considerado na sua sensibilidade, convinha orar.

O segundo discute-se assim. — Parece que a Cristo, considerado na sua sensibilidade, convinha orar.

1. — Pois, diz a Escritura, da pessoa de Cristo: O meu coração e a minha carne se regozijaram no Deus vivo. Ora, a sensibilidade significa um desejo da carne. Logo, a sensibilidade de Cristo podia ascender para o Deus vivo, regozijando-se e, pela mesma razão, orando.

2. Demais. — Reza quem deseja o que pede. Mas, Cristo pediu o que desejava a sua sensibilidade, quando disse – Passe de mim este cálice, como se lê no Evangelho. Logo Cristo, na sua sensibilidade, orou.

3. Demais. — É mais unir-se a Deus em pessoa, que ascender a ele pela oração. Ora, a sensibilidade foi assumida por Deus na unidade de pessoa, assim como qualquer outra parte da natureza humana. Logo, com maior razão, podia ascender a Deus pela oração.

Mas, em contrário, o Apóstolo diz que o Filho de Deus, pela natureza que assumiu, fez-se semelhante aos homens. Ora, os outros homens não oram pela sensibilidade. Logo, também Cristo não orou pela sensibilidade.

Orar, mediante a sensibilidade, podemos entendê-la de dois modos.

Primeiro, de modo que a própria oração seja um acto sensível. E deste modo, Cristo não orou sensivelmente, pois, a sua sensibilidade foi da mesma natureza e da mesma espécie que a nossa. Ora, em nós a sensibilidade não pode orar, por duas razões. — Primeiro, porque o movimento da sensibilidade não pode transcender o sensível, e portanto, não pode subir até Deus, como o exige a oração. — Segundo, porque a oração implica uma certa ordem consistente em desejarmos alguma coisa, como devendo ser realizada por Deus, o que é próprio só da razão. Donde, a oração é um acto de razão.

Noutro sentido, dizemos que alguém ora mediante a sensibilidade, porque quando faz a sua oração propõe a Deus o objecto do desejo da sua sensibilidade. E neste sentido Cristo orou mediante a sua sensibilidade: enquanto a sua oração exprimia o afecto da sensibilidade, como se fosse advogado desta. E para assim nos dar uma tríplice instrução. Primeiro, para mostrar que assumiu verdadeiramente a natureza humana, com todos os seus afectos naturais. Segundo, para mostrar que é lícito ao homem, pelo seu afecto natural, querer o que Deus não quer. Terceiro, para mostrar que o homem deve sujeitar o seu afecto próprio à vontade divina. Donde o dizer Agostinho: Cristo, enquanto homem, mostra uma certa vontade particularmente humana, quando diz — Passe de mim este cálice, pois, essa era uma vontade humana, a querer uma causa propriamente particular. Mas como quer, com coração recto, ser homem e ser dirigido para Deus, acrescenta — Contudo, não se faça a minha vontade, senão a tua, como se dissesse — considera-te em mim pois, posso querer algo como próprio, embora Deus queira de outro modo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A carne regozija-se em Deus vivo, não pelo acto pelo qual ascende para o Deus vivo, mas pelo redundar nela o coração, isto é, enquanto o apetite sensitivo segue o movimento racional.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora a sensibilidade quisesse o que a razão pedia, pedi-lo, contudo, nas suas orações, não era próprio da sensibilidade, mas, da razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A união, na pessoa, funda-se no ser pessoal, implicado em qualquer parte da natureza humana. Mas, a ascensão da oração é mediante um acto só próprio da razão, como se disse. Logo, a comparação não colhe.


Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.

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