26/04/2014

Tratado dos vícios e pecados 71

Questão 85: Dos efeitos do pecado e, primeiro, da corrupção do bem da natureza.

Art. 2 — Se a natureza humana pode ser privada totalmente do seu bem pelo pecado.

(I, q. 48, a. 4; II Sent., dist. VI, a. 4, ad 3; dist. XXXIV, a. 5; De Malo, q. 2, a. 12; III Cont. Gent., cap. XII).

O segundo discute-se assim. — Parece que a natureza humana pode ser privada totalmente do seu bem pelo pecado.

1. — Pois, o bem da natureza humana é finito, por também ela o ser. Ora, o finito exaure-se todo diminuindo continuamente. E como o bem da natureza pode diminuir continuamente pelo pecado, conclui-se que pode de todo exaurir-se.

2. Demais. — Em seres da mesma natureza o todo e as partes têm a mesma essência, como se dá com o ar, a água, a carne e com todos os corpos de partes semelhantes. Ora, o bem da natureza é totalmente uniforme. Logo, como pode ser privada de uma de suas partes pelo pecado, pode também o ser, totalmente por ele.

3. Demais. — O bem da natureza, diminuído pelo pecado, consiste em ser capaz da virtude. Ora, em alguns casos essa capacidade fica totalmente destruída pelo pecado, como se dá com os condenados, que não podem readquirir a virtude, como o cego não pode recuperar a vista. Logo, o pecado pode privar totalmente do bem da natureza.

Mas, em contrário, diz Agostinho, que o mal só pode existir no bem. Ora, o mal da culpa não pode existir no bem da virtude ou da graça, por lhe ser contrário. Logo, há-de existir no bem da natureza, e portanto não priva totalmente dele.

Como já dissemos (a. 1), o bem da natureza, diminuído pelo pecado, é a inclinação natural para a virtude, a qual convém ao homem só por ser ele racional; pois por isso é que pode agir de conformidade com a razão, e portanto virtuosamente. Ora, o pecado não pode privá-lo totalmente de ser racional, pois então já não seria capaz de pecar. Logo, não é possível ser privado totalmente do referido bem.

Alguns porém, para explicar como esse bem pode sofrer continuamente detrimento pelo pecado, recorreram a um exemplo onde se mostra o finito diminuindo infinitamente sem nunca se desvanecer de todo. Pois, como diz o Filósofo, se subtrairmos continuamente uma mesma quantidade, de uma grandeza finita, esta há-de desaparecer totalmente. Assim, se de uma quantidade finita qualquer subtrairmos sempre a medida de um palmo. Se porém, a subtracção se der na mesma proporção e não segundo uma mesma quantidade, a grandeza poderá diminuir infinitamente. Assim, se uma quantidade for dividida em duas partes, e se da metade subtrairmos a metade, poderemos proceder ao infinito; de modo a sempre ser menor o tirado depois que o tirado antes. — Mas isto não se dá no caso vertente. Pois, um pecado qualquer não diminui menos o bem da natureza, que o precedente; antes, e talvez, mais, sendo mais grave.

E portanto, devemos dizer, de modo diverso, que a inclinação, no caso vertente, deve entender-se como um termo médio entre dois extremos. Pois, tem sua raiz na natureza racional; e tende para o bem da virtude, como para o termo e o fim. De dois modos, pois, podemos explicar a diminuição: em relação à raiz e em relação ao termo. Do primeiro modo, ela não fica diminuída pelo pecado, por este não diminuir a natureza, em si mesma, como já dissemos (a. 1). Mas diminui do segundo modo, encontrando um obstáculo que a impeça de atingir o termo. Pois, se ficasse diminuída, do primeiro modo, poderia então e forçosamente eliminar-se totalmente, uma vez desaparecida totalmente a natureza racional. Mas, ficando diminuída, pelo obstáculo que se lhe opõe à consecução do termo, é claro que é susceptível de diminuir infinitamente, por poderem os obstáculos emergir ao infinito, sendo o homem capaz de acrescentar infinitamente pecado a pecado. Não poderá porém a inclinação desvanecer-se de todo, por sempre lhe permanecer a raiz. Tal se dá com um corpo diáfano, que, por ser tal tem inclinação a receber a luz; mas essa inclinação ou capacidade diminui com a sobreveniência das nuvens, embora sempre lhes permaneça na raiz da natureza.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A objecção colhe tratando-se de diminuição por subtracção. Mas no caso vertente, a diminuição dá-se por um obstáculo aposto, que não elimina nem diminui a raiz da inclinação, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A inclinação natural é, de facto, totalmente uniforme. Mas diz respeito ao princípio e ao termo; e, segundo essa diversidade, ora diminui, ora não.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Mesmo nos condenados permanece a inclinação para a virtude; de contrário não sofreriam o remorso da consciência. E se essa inclinação não se actualiza é por lhes faltar a graça, conforme o exige a justiça. Assim também o cego conserva a aptidão para ver, na raiz própria da natureza, por ser um animal a que a visão é natural. Mas, esta não se actualiza, por lhe faltar a causa adequada, que formaria o órgão necessário para ver.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.