A questão da eutanásia é tão velha como
a própria reflexão ética sobre o agir humano e representa, consabidamente, um
problema persistente na Bioética, para recorrer a uma designação proposta por
Volnei Garrafa. De tempos a tempos, porém, sofre uma agudização, tomando
sobretudo a forma mediática dos relatos emocionalmente tingidos de casos limite
(dois na Espanha, um na França, um no Reino Unido) que obrigariam a uma
renovação revolucionária do enquadramento legal da prática da eutanásia. Assim,
neste contexto, surge uma proposta de consulta popular, sob forma de referendo,
destinada a averiguar do sentido da opinião pública quanto à liceidade da morte
provocada deliberadamente pelo médico, dando satisfação a um pedido insistente
do seu doente, ao menos em situações ditas excepcionais. Perante esta a nosso
ver insólita proposição, entendemos dever tomar uma clara e breve posição:
1. A vida humana é um valor
constitucionalmente protegido: a lei fundamental afirma a sua inviolabilidade.
Por isso, matar, seja em que condições for, constitui um grave atentado, sempre
punível.
2. O símile com o abortamento provocado
não colhe: a prática deste não foi considerada inconstitucional, por não se
tratar, no entendimento maioritário dos membros do Tribunal Constitucional, de uma
vida humana plenamente realizada (a não concordância com esta interpretação,
que partilhamos com tantos outros, não põe em causa a validade da decisão do
Tribunal).
3. A experiência dos países (Holanda e
Bélgica) e do estado do Orégão, onde a eutanásia e/ou o suicídio assistido são
admitidos pela lei, é abundante e prova que a adopção de regras que deveriam
garantir a excepcionalidade da medida eutanasiante não evitou, em muitos casos,
que fossem mortos indivíduos incapazes ou comatosos, e também crianças, sem
pedido expresso nem consentimento e com base na solicitação apresentada por
familiares ou tutores (ou até instituições de acolhimento).
4. Essa mesma experiência provou que os
motivos invocados para a aplicação da eutanásia só muito excepcionalmente
diziam respeito a situações dolorosas, predominando largamente os de cariz
psicológico e social (cansaço de viver, solidão, falta de suporte emocional,
desejo de não sobrecarregar os familiares, etc.). Ora, todas estas situações
podem e devem ser corrigidas através da intervenção médica ou social.
5. De acordo com estes dados objectivos
está a larga experiência clínica de um de nós
(J.C.S.) que, em milhares de casos de
doença oncológica com desfecho fatal, só em situações raríssimas foi
confrontado com pedido de eutanásia; sempre foi possível dissuadir o(a) doente,
discutindo com ele(a) a situação, com respeito e compreensão, e traçando
estratégias que, adoptadas, lhes permitiram percorrer com serenidade a última
etapa da vida.
6. As dores intoleráveis, causadas por
exemplo por situações neuropáticas de origem tumoral ou outra, são hoje
tratáveis por terapias farmacológicas ou cirúrgicas e perfeitamente manejáveis
pelas Unidades de Dor e pelos já numerosos médicos com particular competência
nesta área fulcral, pelo que perde relevância a alegada existência de situações
dolorosas intratáveis.
7. A classe médica, no seu conjunto,
sempre recusou ser executora de pedidos de eutanásia, como se consigna no
Juramento de Hipócrates, farol da deontologia médica há mais de mil e 500 anos,
e no actual Código Deontológico, recentemente aprovado por unanimidade pelo
Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos.
8. Os nossos doentes terminais têm
direito a uma morte digna, medicamente assistida os cuidados paliativos, que
urge desenvolver e alargar a todo o país, facultando acesso a todos os que
deles necessitem, constituem uma solução para os raros casos de pedido de eutanásia
e a sua implementação constitui um imperativo ético e serviço público ao bem comum.
Por todas estas razões, concluímos que
não há necessidade ética de tornar lícita a eutanásia, nem de proceder a um
referendo, mas antes de proceder à urgente implementação de uma rede de
cuidados paliativos capaz de enfrentar os problemas de quem sofre, na fase
final de uma vida. Esta é a morte assistida a que todos temos direito:
assistida por médicos e outros
profissionais de saúde e, onde for possível, por familiares, amigos, ministros
da religião professada, pessoas capazes de compaixão e solicitude.
Estas posições, que convictamente
defendemos, classificam-nos, aos olhos de alguns, como velhos do Restelo, que
fazem todos os esforços para que nada mude; para outros seremos talvez jovens
turcos (nas ideias, não na idade) que tudo querem mudar (no tratamento da dor,
no relevo atribuído aos cuidados paliativos, na compreensão do estado terminal
pelos profissionais de saúde). Não importa, nem estamos dispostos a entrar em
polémicas pouco produtivas e eivadas de (des)considerações pessoais; preferimos
depor nesta causa nobre, com serenidade e convicção: a eutanásia não serve os
interesses de ninguém.
josé cardoso da silva, Médico oncologista, ex-Director
clínico do Instituto Português de Oncologia do Porto e ex-Presidente da Liga
Portuguesa contra o Cancro; walter
osswald, Professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade
do Porto. (Publicado no jornal “Notícias Médicas” em 2008.12.03)
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