O
quarto discute-se assim. — Parece que os anjos conhecem as cogitações dos
corações.
1.
— Pois, Gregório diz, a propósito da passagem da Escritura (Job 28) — Não se
lhe igualará o ouro, ou o cristal – que, então, isto é, na beatitude dos
ressurgidos, um será conhecido de outro como a si mesmo; e, como se trata do
intelecto de cada um, a consciência é simultâneamente penetrada 1. Ora, os ressuscitados serão semelhantes
aos anjos, como diz a Escritura (Mt 22, 30). Logo, um anjo pode ver
o que está na consciência do outro.
2.
Demais. — As figuras estão para os corpos como as espécies inteligíveis para o
intelecto. Ora, o corpo, vê a figura. Logo, vê a substância intelectual, a
vista foca a espécie inteligível que está nela. Portanto, como um anjo vê
outro, e mesmo a alma, resulta que pode conhecer-lhes o pensamento.
3.
Demais. — As coisas que estão no nosso intelecto são mais semelhantes ao anjo,
que as existentes na fantasia; pois aquelas são inteligidas em acto, estas,
porém, só em potência, ora, as existentes na fantasia podem ser conhecidas pelo
anjo, como seres corporais, pois, a fantasia é uma virtude do corpo. Logo,
resulta que o anjo pode conhecer as cogitações do intelecto.
Mas,
em contrário, o que é próprio de Deus não convém aos anjos. Ora, é próprio de
Deus conhecer as cogitações dos corações, segundo a Escritura (Jr 17):
Depravado é o coração do homem, e impenetrável: quem o conhecerá? Eu sou o
Senhor que esquadrinha os corações. Logo, os anjos não conhecem os segredos dos
corações.
A cogitação do coração pode ser conhecida de duplo modo. — De um modo, pelo
seu efeito. E assim pode ser conhecida, não só pelo anjo, mas também pelo
homem; e tanto mais sutilmente quanto tal efeito for mais oculto. Pois, às
vezes, uma cogitação é conhecida, não só pelo acto exterior, mas também pela
mutação do vulto; assim como também os médicos podem conhecer certos afectos da
alma, pelo pulso. E tanto mais os anjos, ou os demónios, quanto mais sutilmente
compreendem tais mutações corporais ocultas. Por isso Agostinho diz que, por
vezes, compreendem muito facilmente as disposições humanas, não só as
exteriorizadas pela voz, mas ainda as concebidas no pensamento, por serem
sinais expressos no corpo pela alma 2;
embora também diga que não se pode afirmar como isso se realiza.
De
outro modo, as cogitações podem ser conhecidas, enquanto existentes no
intelecto, e os afectos, enquanto na vontade. E, assim, só Deus pode conhecer
as cogitações dos corações e os afectos das vontades. Sendo a razão disto que a
vontade da criatura racional só de Deus depende e só ele pode agir sobre ela,
da qual é o objecto principal e o fim último; o que a seguir se demonstrará 3. Portanto, as coisas existentes na vontade
ou que só dela dependem são conhecidas apenas de Deus. Ora, é manifesto que só
da vontade depende que alguém considere alguma coisa actualmente; pois, quem
tem o hábito da ciência, ou espécies inteligíveis em si existentes, usa deles
quando quiser. E por isso, diz a Escritura (1 Cor 2, 11): Ninguém
conhece as coisas que são do homem, senão o espírito do homem, que nele mesmo
reside.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA PERGUNTA. — Actualmente o pensamento de um homem não é
conhecido por outro, por duplo impedimento: pela crassidão do corpo, ou pela
vontade que esconde os seus segredos. Ora, o primeiro obstáculo desaparecerá na
ressurreição e não existe nos anjos. Mas o segundo permanecerá depois dela e
existe actualmente nos anjos. E contudo, a claridade do corpo representará a
qualidade da inteligência, quanto à quantidade da graça e da glória. Assim que
um poderá ver a inteligência do outro.
RESPOSTA
À SEGUNDA. — Embora um anjo veja as espécies inteligíveis de outro, por ser
proporcionado à nobreza das substâncias o modo das espécies inteligíveis, na
sua maior e menor universalidade; todavia não se segue que um conheça, como
outro, pensando actualmente, uma dessas espécies inteligíveis.
RESPOSTA
À TERCEIRA. — O apetite dos brutos não é senhor do seu acto, mas segue a
impressão de outra causa, corporal ou espiritual. Como, pois, os anjos conhecem
as coisas corpóreas e as disposições delas, pode, por aí, conhecer o que está
no apetite e na apreensão fantástica dos brutos e também dos homens, enquanto,
nestes, o apetite sensitivo se actualiza por alguma impressão corpórea, como
sempre acontece com os brutos. Contudo não resulta daí necessariamente, que os
anjos conheçam o movimento do apetite sensitivo e a apreensão da fantasia no
homem, enquanto movidos pela vontade e pela razão; pois, a parte inferior da
alma participa, de certo modo, da razão, como obediente à que impera, segundo
diz Aristóteles 4. E, por isso,
não se segue que o anjo, conhecendo o que está no apetite sensitivo ou na
fantasia do homem, conheça o que está na cogitação ou na vontade; porque o
intelecto e a vontade não dependem do apetite sensitivo e da fantasia, antes,
pode usar destes de diversos modos.
(Nota:
Revisão da tradução para português por AMA)
S.TOMÁS
DE AQUINO, Suma Teológica,
______________________________
Notas
:
1.
Moralibus, lib. XVIII, cap. XLVIII.
2.
De divinatione daemonum (cap. V).
3.
Q. 105, a. 4; Ia IIae, q. 9, a. 6.
4.
I Ethic. (lect. XX).
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