«Porque estais a olhar para o céu?», perguntaram os
Anjos. «Esse Jesus que vistes subindo ao céu, do céu virá…» (Act 1, 11)
Começavam as saudades dos discípulos, mas também certamente o desejo de ir ter
com Ele quanto antes. Quando subiriam eles até ao Pai? Quando deixariam os
perigos desta vida revolta e chegariam, purificados, à presença eterna de Deus?
A que provas haviam ainda de sujeitar-se até ouvirem o que ouvia no fundo da
alma Inácio de Antioquia: «Vem ao Pai!»
Quantas vezes, ao longo dos anos de estudo, em vésperas
de exame, teremos sonhado com a passagem automática, sem a angústia de
submeter-nos às perguntas imprevisíveis do mestre ou do júri académico! Se mal
preparados, rogando boa sorte aos nossos santos; se bem preparados, temendo a
má disposição dos examinadores ou algum deslize da nossa parte… A só
perspectiva de repetir a cadeira, para passar de ano ou obter melhor nota, pode
tornar-se um pesadelo.
O que será então aproximar-nos do exame final desta
vida, com tantas lacunas na consciência, e sabendo que daremos estreita conta
de tudo o que Deus nos confiou para sua glória e para a eterna felicidade nossa
e dos nossos irmãos! Como lançaremos mão da sua infinita misericórdia, da
confissão contrita das nossas faltas, das indulgências que a Santa Madre Igreja
nos proporciona, da intercessão de Maria Santíssima!...
Façamo-lo desde já, mas reparemos que o Evangelho nos
revela um segredo capaz de nos tranquilizar, uma espécie de «passagem administrativa»:
«Não julgueis, e não sereis julgados»! (Mt 7,1) Não só seremos salvos, mas nem
sequer examinados! Teremos muitas fraquezas no nosso currículo, mas o Senhor
passá-los-á por alto – prometeu-o! – com essa breve condição: não julgarmos
ninguém.
É inevitável julgarmos as suas acções e as suas ideias,
pois é impossível suspendermos dentro de nós a distinção entre o bem e o mal, a
verdade e o erro. Mas o homem é o seu coração, as suas intenções, um mistério
que só Deus conhece e só Ele julga. Só Ele sabe o que há no coração do homem.
Mas é tão frequente a nossa insensatez, que, não só julgamos, mas criticamos,
acusamos e condenamos o próximo, que chegamos ao ponto de ver más intenções nos
mais nobres comportamentos: «pensa mal, e acertarás»…
«A língua é um fogo, um mundo de iniquidade!» (Tgo
3, 6), bem avisava S. Tiago. «Se alguém não peca pela palavra, este é um
homem perfeito» (Tgo 3, 2). Não nos esqueçamos de que quem julga os
outros, não só terá de sujeitar-se ao julgamento, mas «expõe-se a um juízo mais
severo» (Tgo 3, 1).
Não é fácil, de facto, cumprir a condição da nossa
«passagem administrativa», a não ser que vejamos sempre o próximo com o olhar
de Cristo, com bons olhos, com amor. O amor não é cego; pelo contrário, só com
amor se podem conhecer os outros. Por mais defeitos que tenham, «pensa bem, e
acertarás»: veremos neles uma profunda (e às vezes desesperada) aspiração ao
bem; veremos neles irmãos, que nos fazem falta; veremos neles o próprio Cristo,
que Se identificou até com os que estão, pelos seus crimes, na prisão. Quanto
mais havemos de respeitar a imensa maioria de gente honrada que nos rodeia na
família, no trabalho, na igreja, ou por essas ruas fora!
Vale a pena cortar a nossa língua venenosa. Vale a pena
cortar cerce a murmuração, a crítica impiedosa; vale a pena despir-nos dessa atitude
superior de juízes do mundo, ainda que nos chamem ingénuos ou disserem que
estamos a exagerar a gravidade de um vício tão comum, pois «qualquer palavra
inútil que tiverem proferido os homens», diz Cristo, «darão conta dela no dia
do juízo», e que há de mais inútil do que acusar e condenar quem não está
presente? «Porque pelas suas palavras (o
homem) será justificado ou condenado» (Mt 12, 36-37). Vale a
pena repudiar a maledicência, essa peste mais estendida, nefasta e cruel do que
a luxúria vergonhosa. A promessa é grandiosa: não seremos julgados.
Hugo de Azevedo
Fonte: celebração litúrgica nº 3 2011/12,
www.cliturgica.org
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