Navegando pela minha cidade
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Para se encontrar com facilidade a especiaria culinária mais cara do mundo é preciso ir à Rua Cimo de Vila que desce, quase a pique como se fosse uma cascata, da Praça da Batalha até ao entroncamento das ruas do Cativo e Chã. Todos estes nomes são de uma ruralidade antiga; talvez a cidade ainda não chegasse completamente até ali há duzentos ou trezentos anos.
A especiaria mais cara do mundo é o açafrão. Trata-se de estigmas de flores e para se ter um quilo são necessárias mais de cem mil. Assim, um quilo de Spanish Saffron na Rua Cimo de Vila, é vendido por três mil e quinhentos euros. E foi lá que o fui comprar. Claro que é vendido em caixinhas de plástico com um grama por três euros e cinquenta cêntimos e comercializado por indianos que o compram à P.&B (FOODS) LTD – PLANETREES ROAD - BRADFORD – ENGLAND.
Um pouco mais abaixo desta lojeca de especiarias exóticas encontra-se a CASA CROCODILO – Há mais de meio século – vende solas e cabedais. Hoje as lojas comerciais vendem produtos com Certificados de Origem e de Qualidade que ninguém controla, como muito menos se controla a intensa e obscena exploração de crianças e adultos que em regime de escravatura manufacturam tais produtos na Índia, na China e em outros países asiáticos. Esta, que vende solas e cabedais há mais de meio século, tem um Certificado de Origem e de Qualidade genuíno e que não engana ninguém: um enorme crocodilo embalsamado com cinco metros de comprimento, de boca aberta e duas fileiras de terríveis dentes brancos, sobrevoa e impõe-se a qualquer cliente. Pendurado do tecto e vindo, há mais de cinquenta anos da Amazónia, atesta com a sua imponente presença a melhor qualidade das solas e dos cabedais.
Quase em frente o SUPER RÁPIDO – MANUEL SAPATEIRO – anuncia a sua qualidade em verso:
P’RA CALÇADO CONSERTAR
CASACOS, CARTEIRAS,PINTAR
ESTE RÁPIDO, É O PRIMEIRO
NÃO DECIDA NO ESCURO!...
QUER UM TRABALHO SEGURO?
VENHA AO “MANEL SAPATEIRO”!!!
O que é extraordinário é a coincidência do último e recentíssimo Prémio Literário Correntes d’ Escritas (22 de Fevereiro 2011) ter sido atribuído a Pedro Tamen pela sua obra de poesia O Livro do Sapateiro[1]. Como o próprio disse é a metáfora do poeta que escreve para os outros, os outros que não conhece, com a obscura esperança de que aquilo sirva…como o sapato que vai encaixar num pé desconhecido[2].
Mais a menos a meio da rua, do lado esquerdo no sentido descendente ergue-se uma magnífica fachada rococó em granito da Igreja da Ordem do Terço (séc. XVIII). O enorme portão verde estava fechado. Porque vinha a pensar nos certificados de origem e no crocodilo gigantesco recordei, ao chegar aquele templo fechado, que “Deus não tem necessidade de pôr uma marca de origem nas coisas, porque todas elas têm uma só origem”[3]. Nas escadas de acesso à Igreja cerca de trinta homens e algumas mulheres conversavam e parecia que esperavam que a porta se abrisse. A enorme porta do templo não se abriu, mas às onze horas em ponto abriu-se uma pequena porta lateral em que ainda nem tinha reparado. Silenciosamente aquelas pessoas foram entrando e, por último, entrei eu atrás delas. Subi um lanço de escadas e encontrei-me numa sala com mesas e cadeiras onde já vários homens comiam uma sopa e um prato de arroz com carne. Atrás de um balcão uma senhora de bata branca ia dando os tabuleiros com esta refeição. A sala era branca. Um pequeno crucifixo pontuava uma das paredes. O silêncio, o respeito e atenção na refeição eram tais que me pareceu que ali havia algo de sagrado. E havia. Ali não se escrevia para os outros, ali servia-se e alimentava-se os outros. Ali fazia-se poesia sacra.
Por me sentir como que um ateu numa Igreja retirei-me devagarinho, para nada profanar com a minha presença. Já cá fora, na loja em frente perguntei ao dono que estava à porta: “Sabe-me dizer se ali também servem jantares? Qualquer pessoa pode ir ali almoçar?” O dono da loja olhou para mim serenamente e com enorme delicadeza respondeu: O senhor vá lá se precisa, olhe que não é vergonha; por estar limpo não tenha vergonha de lá ir; ninguém pergunta nada.
Afonso Cabral
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