É necessária outra doutrina, além das disciplinas filosóficas?
QUANTO
AO PRIMEIRO ARTIGO, ASSIM SE PROCEDE: Parece desnecessária outra doutrina além
das disciplinas filosóficas.
1.
– Pois não se deve esforçar o homem por alcançar objetos que ultrapassem a
razão, segundo a Escritura (Ecle. 3, 22): Não procures saber coisas mais
dificultosas do que as que cabem na tua capacidade. Ora, o que é da alçada
racional ensina-se, com suficiência, nas disciplinas filosóficas; logo, parece
escusada outra doutrina além das disciplinas filosóficas.
2.
– Ademais, não há doutrina senão do ente, pois nada se sabe, senão o
verdadeiro, que no ente se converte. Ora, de todas as partes do ser trata a
filosofia, inclusive de Deus; por onde, um ramo filosófico se chama teologia ou
ciência divina, como está no Filósofo. Logo, não é preciso que haja outra
doutrina além das filosóficas.
EM
SENTIDO CONTRÁRIO, diz a segunda Carta a Timóteo (II Tm. 3, 16): Toda a
Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir na justiça. Porém, a Escritura, divinamente revelada,
não pertence às disciplinas filosóficas, adquiridas pela razão humana; por
onde, é útil haver outra ciência, divinamente revelada, além das filosóficas.
RESPONDO.
Para
a salvação do homem, é necessária uma doutrina conforme à revelação divina,
além das filosóficas, pesquisadas pela razão humana. Porque, primeiramente, o
homem é por Deus ordenado a um fim que lhe excede a compreensão racional,
segundo a Escritura (Is 64, 4): O olho não viu, exceto tu, ó Deus, o que tens
preparado para os que te esperam. Ora, o fim deve ser previamente conhecido
pelos homens, que para ele têm de ordenar as intenções e atos. De sorte que,
para a salvação do homem, foi preciso, por divina revelação, tornarem-se-lhe
conhecidas certas verdades superiores à razão.
Mas
também naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi
necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre
Deus, exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de
longo tempo e de mistura com muitos erros; se bem do conhecer essa verdade
depende toda a salvação humana, que em Deus consiste. Logo, para que mais
conveniente e segura adviesse aos homens a salvação, cumpria fossem, por divina
revelação, ensinados nas coisas divinas. Donde foi necessária uma doutrina
sagrada e revelada, além das filosóficas, racionalmente adquiridas.
QUANTO
AO 1º, portanto, deve dizer-seque embora se não possa inquirir pela razão o que
sobrepuja a ciência humana, pode-se entretanto recebê-lo por fé divinamente
revelada. Por isso, no lugar citado (Ecle. 3, 25), se acrescenta: Muitas coisas
te têm sido patenteadas que excedem o entendimento dos homens. E nisto consiste
a sagrada doutrina.
QUANTO
AO 2º, deve dizer-seque o meio de conhecer diverso induz a diversidade das
ciências. Assim, o astrônomo e o físico demonstram a mesma conclusão, p. ex.,
que a terra é redonda; se bem o astrônomo, por meio matemático, abstrato da
matéria; e o físico, considerando a mesma. Portanto, nada impede que os mesmos
assuntos, tratados nas disciplinas filosóficas, enquanto cognoscíveis pela
razão natural, também sejam objeto de outra ciência, enquanto conhecidos pela
revelação divina. Donde a teologia, atinente à sagrada doutrina, difere
genericamente daquela teologia que faz parte da filosofia.
São
Tomás de Aquino, Summa Theológica
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