HAURIETIS AQUAS
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O CULTO DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
V
EXORTAÇÃO
À PRÁTICA
MAIS
PURA E MAIS EXTENSA DO CULTO
AO
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
2) Grande utilidade do
culto ao sagrado coração de Jesus nas actuais necessidades da Igreja
67.
Veneráveis irmãos, embora a devoção ao sagrado coração de Jesus tenha produzido
em toda parte frutos salutares de vida cristã, contudo ninguém ignora que a
Igreja militante na terra, e sobretudo a sociedade civil, ainda não alcançaram
o grau de perfeição que corresponde aos desejos de Jesus Cristo, esposo místico
da Igreja e Redentor do género humano. Não são poucos os filhos da Igreja que
com numerosas manchas e rugas deturpam o rosto materno que em si mesmos reflectem;
nem todos os cristãos brilham por santidade de costumes, à qual por vocação
divina são chamados; nem todos os pecadores que em má hora abandonaram a casa
paterna têm voltado para de novo vestir-se nela com "a veste
preciosa"[1]
e pôr no dedo o anel, símbolo de fidelidade para com o esposo de sua alma; nem
todos os infiéis se incorporaram ainda ao corpo místico de Cristo. Há mais.
Porque, se bem que nos encha de amarga dor o ver a fé definhar nos bons, e
contemplar como, pelo falaz atractivo dos bens terrenos, lhes decresce nas
almas e aos poucos se apaga o fogo da caridade divina, muito mais nos
atormentam as maquinações dos ímpios, que, agora mais do que nunca, parecem
incitados pelo inimigo infernal no seu ódio implacável e aberto contra Deus,
contra a Igreja e, sobretudo, contra aquele que representa na terra a pessoa do
divino Redentor e a sua caridade para com os homens, consoante a conhecidíssima
frase do doutor de Milão, "(Pedro) é interrogado sobre aquilo de que há
dúvida, mas não o duvida o Senhor; pergunta, não para saber, mas para ensinar
àquele que, na sua ascensão ao céu, ele nos deixava como vigário do seu
amor".[2]
68.
Certamente, o ódio contra Deus e contra os que legitimamente lhe fazem as vezes
é o maior crime que o homem pode cometer, criado como foi este à imagem e
semelhança de Deus, destinado a gozar da sua amizade perfeita e eterna no céu;
visto que pelo ódio a Deus o homem se afasta o mais possível do sumo Bem,
sente-se impelido a repelir de si e do seu próximo tudo quanto vem de Deus,
tudo quanto une com Deus, tudo quanto conduz a gozar de Deus, ou seja a
verdade, a virtude, a paz e a justiça.[3]
69.
Podendo, pois, observar que, por desgraça, cresce em algumas partes o número
dos que se jactam de ser inimigos do Senhor eterno, e que os falsos princípios
do "materialismo" se difundem teórica e praticamente; e ouvindo como
continuamente se exalta a licença desenfreada das paixões, como estranharmos
que em muitas almas se arrefeça a caridade, que é a suprema lei da religião
cristã, o fundamento mais firme da verdadeira e perfeita justiça, o manancial
mais abundante da paz e das castas delícias?
Já
o advertiu o nosso Salvador:
3) O culto ao sagrado
coração de Jesus, lábaro de salvação também para o mundo moderno
70.
À vista de tantos males que, hoje como nunca, transtornaram profundamente os
indivíduos, as famílias, as nações e o orbe inteiro, onde acharmos, veneráveis
irmãos, um remédio eficaz?
Poderemos
encontrar alguma devoção que se avantaje ao culto augustíssimo do coração de
Jesus, que corresponda melhor à índole própria da fé católica, que com mais
eficácia satisfaça as necessidades actuais da Igreja e do género humano?
Que
homenagem religiosa mais nobre, mais suave e mais salutar do que este culto que
se dirige todo à própria caridade de Deus?[5]
Por
último, que pode haver de mais eficaz do que a caridade de Cristo – que a
devoção ao sagrado coração promove e fomenta cada dia mais – para estimular os
cristãos a praticarem em sua vida a lei evangélica, sem a qual não é possível
haver entre os homens paz verdadeira, como claramente ensinam aquelas palavras
do Espírito Santo:
71.
Pelo que, seguindo o exemplo do nosso imediato antecessor, queremos lembrar de
novo a todos os nossos filhos em Cristo a exortação que, ao expirar o século
passado, Leão XIII, de feliz memória, dirigiu a todos os cristãos e a quantos
se sentiam sinceramente preocupados com a sua própria salvação e com a salvação
da sociedade civil:
"Vede
hoje ante vossos olhos um segundo lábaro consolador e divino: o sacratíssimo
coração de Jesus..., que brilha com refulgente esplendor por entre as chamas.
Nele devemos pôr toda a nossa confiança; a ele devemos suplicar e dele devemos
esperar a nossa salvação".[7]
72.
Também vivamente desejamos que todos os que se gloriam do nome de cristãos e
lutam activamente por estabelecer o reino de Jesus Cristo no mundo, considerem
a devoção ao Coração de Jesus como bandeira e manancial de unidade, de salvação
e de paz.
Ninguém
pense que esta devoção prejudique no que quer que seja as outras formas de
piedade com que, sob a direção da Igreja, o povo cristão venera o divino
Redentor.
Ao
contrário, uma fervorosa devoção ao coração de Jesus fomentará e promoverá,
sobretudo, o culto a santíssima cruz, não menos do que o amor ao augustíssimo
sacramento do altar. E, em realidade – como o evidenciam as revelações de Jesus
Cristo a Santa Gertrudes e a Santa. Margarida Maria – podemos afirmar que
ninguém chegará a sentir devidamente a respeito de Jesus Cristo crucificado se
não for penetrando nos arcanos do Seu coração:
Nem
será fácil entender o ímpeto do amor com que Jesus Cristo se deu a nós por
alimento espiritual se não é fomentando a devoção ao Coração Eucarístico de
Jesus; a qual – para nos valermos das palavras do nosso predecessor Leão XIII,
de feliz memória – nos recorda "aquele acto de amor supremo com que,
entornando todas as riquezas do Seu Coração, afim de prolongar a sua estada connosco
até à consumação dos séculos, o nosso Redentor instituiu o adorável sacramento
da Eucaristia".[8]
Certamente,
"não é pequena a parte que na Eucaristia teve o seu coração, sendo tão
grande o amor do seu coração com que ele no-la deu".[9]
73.
Finalmente, desejando ardentemente opor segura barreira as ímpias maquinações
dos inimigos de Deus e da Igreja, como também fazer as famílias e as nações
voltarem ao amor de Deus e do próximo, não duvidamos em propor a devoção ao
sagrado coração de Jesus como escola eficacíssima de caridade divina; dessa
caridade divina sobre a qual se há de construir o reino de Deus nas almas dos
indivíduos, na sociedade doméstica e nas nações, como sabiamente advertiu o
nosso mesmo predecessor, de piedosa memória: "Da caridade divina recebe o
reino de Jesus Cristo a sua força e a sua beleza; o seu fundamento e a sua
síntese é amar santa e ordenadamente. Donde necessariamente se segue o cumprir
integralmente os próprios deveres, o não violar os direitos alheios, o
considerar os bens naturais como inferiores aos sobrenaturais, e o antepor o
amor de Deus a todas as coisas".[10]
74.
A fim de que a devoção ao coração augustíssimo de Jesus produza frutos mais
copiosos na família cristã e mesmo em toda a humanidade, procurem os fiéis unir
a ela estreitamente a devoção ao coração imaculado da Mãe de Deus. Foi vontade
de Deus que, na obra da redenção humana, a santíssima virgem Maria estivesse
inseparavelmente unida a Jesus Cristo; tanto que a nossa salvação é fruto da
caridade de Jesus Cristo e dos seus padecimentos, aos quais foram intimamente
associados o amor e as dores de sua Mãe. Por isso, convém que o povo cristão,
que de Jesus Cristo, por intermédio de Maria, recebeu a vida divina, depois de
prestar ao sagrado coração o devido culto, renda também ao amantíssimo coração
de sua Mãe celestial os correspondentes obséquios de piedade, de amor, de
agradecimento e de reparação. Em harmonia com esse sapientíssimo e suavíssimo
desígnio da divina Providência, nós mesmo, por ato solene, dedicamos e
consagramos a santa Igreja e o mundo inteiro ao coração imaculado da santíssima
Virgem Maria.([11])
4) Convite para celebrar
dignamente o primeiro centenário da festa do Sagrado Coração de Jesus na Igreja
universal
75.
Completando-se felizmente este ano, como antes indicamos, o primeiro século da
instituição da festa do Sagrado Coração de Jesus em toda a Igreja, instituição
promovida pelo nosso predecessor Pio IX, de feliz memória, é vivo desejo nosso,
veneráveis irmãos, que o povo cristão celebre este centenário solenemente em
toda parte, com actos públicos de adoração, de acção de graças e de reparação
ao coração divino de Jesus. Com especial fervor serão, sem dúvida, celebradas
estas solenes manifestações de alegria cristã e de cristã piedade – em união de
caridade e em comunhão de orações com todos os demais fiéis naquela nação em
que por desígnio de Deus, nasceu a santa Virgem que foi promotora e propagadora
infatigável desta devoção.
76.
Entrementes, animado de doce esperança, e já pressagiando os frutos espirituais
que da devoção ao sagrado coração de Jesus hão-de transbordar copiosamente na
Igreja se esta devoção, conforme explicamos, for entendida rectamente e
praticada com fervor, a Deus suplicamos que, com o poderoso auxílio da sua
graça, queira atender estes nossos vivos desejos, e fazer que, com a ajuda
divina, as celebrações deste ano aumentem cada vez mais a devoção dos fiéis ao Sagrado Coração de Jesus, e assim se estenda mais por todo o mundo o seu
império e reino suave; esse "reino de verdade e de vida, reino de
santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz".([12])
77.
Como penhor destes dons celestiais, concedemo-vos de todo o coração a bênção
apostólica, tanto a vós pessoalmente, veneráveis irmãos, como ao clero e a
todos os fiéis confiados à vossa solicitude pastoral, e em especial àqueles que
de propósito fomentam e promovem a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no dia 15 de Maio de 1956, ano XVIII do nosso
pontificado.
PIO PP. XII.
(Revisão da versão
portuguesa por AMA)
Notas:
[1] Lc 15,22
[2] S.
Ambrósio, Exposit. in Evang. sec. Lucam, t. X, n.175: PL
15,1942.
[3] Cf. s. Tomás, Summa Teol., II-II, q. 34, a. 2; ed. Leon.
t. VIII,1895, p 274
[4] Mt 24;12
[5] Cf. Enc. Miserentissimus Redemptor: AAS 20(1928),
p.166.
[6] Is 32,17
[7] Enc. Annum sacrum: Acta Leonis,
19(1900,) p. 79; Enc. Miserentissimus Redemptor: AAS 20(1928), p.167.
[8]
Carta
Apost. quibus Archisodalitas a Corde Eucharístico lesu ad S. Joachim de Urbe
erigitur". (17 de fevereiro de 1903): Acta Leonis, 22(1903), p. 307s; cf.
Enc. Mirae caritatis, (22 de maio de 1902): Acta Leonis, 22(1903), p.116.
[9] S. Alberto Magno, De Eucharistia,
dist. VI, tr. l, c. l: Opera Omnia, ed. Borguet, vol. 38, Paris,1890, p. 358.
[10] Enc. Tametsi: Acta Leonis, 20(1900),
p. 303.
[11] Cf. AAS 34(1942),
p. 345a.
[12] Do
Missal Rom. Prefácio de Cristo Rei.
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