DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
A TODA A HUMANIDADE
III. A PESSOA HUMANA NO
DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
b) A salvação cristã: para
todos os homens e do homem todo
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A salvação que, por iniciativa de Deus Pai, é oferecida em Jesus Cristo e é actualizada
e difundida por obra do Espírito Santo, é salvação para todos os homens e do
homem todo: é salvação universal e integral.
Diz
respeito à pessoa humana em todas as suas dimensões: pessoal e social,
espiritual e corpórea, histórica e transcendente.
Começa
a realizar-se já na história, porque tudo o que é criado é bom e querido por
Deus e porque o Filho de Deus se fez um de nós [i].
O
seu cumprimento, porém, encontra-se no futuro que Deus nos reserva, quando
formos chamados, com toda a criação [ii],
a participar da ressurreição de Cristo e da comunhão eterna de vida com o Pai,
na alegria do Espírito Santo.
Esta
perspectiva indica precisamente o erro e o engano das visões puramente
imanentistas do sentido da história e das pretensões de auto-salvação do homem.
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A salvação que Deus oferece aos Seus filhos requer a sua livre resposta e
adesão.
Nisso
consiste a fé, «pela qual o homem se entrega livre e totalmente a Deus» [iii],
respondendo ao Amor preveniente e sobreabundante de Deus [iv]
com o amor concreto aos irmãos e com firme esperança, «porque é fiel Aquele
cuja promessa aguardamos» [v].
O
plano divino de salvação, na verdade, não coloca a criatura humana num estado
de mera passividade o de menoridade em relação ao seu Criador, porque a relação
com Deus, que Jesus Cristo nos manifesta e no qual nos introduz gratuitamente
por obra do Espírito Santo, é uma relação de filiação: a mesma que Jesus vive
em relação ao Pai [vi].
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A universalidade e a integralidade da salvação, doada em Jesus Cristo, tornam
incindível o nexo entre a relação que a pessoa é chamada a ter com Deus e a
responsabilidade ética para com o próximo, no concreto das situações
históricas. Isto intui-se, ainda que confusamente e não sem erros, na universal
procura humana de verdade e de sentido, mas torna-se estrutura fundamental da
Aliança de Deus com Israel, como testemunham, por exemplo, as tábuas da Lei e a
pregação profética.
Tal
nexo é expresso com clareza e em perfeita síntese no ensinamento de Jesus
Cristo e confirmado definitivamente pelo testemunho supremo do dom da Sua vida,
em obediência à vontade do Pai e por amor aos irmãos.
Ao
escriba que lhe pergunta:
«Qual
é o primeiro de todos os mandamentos?»[vii],
Jesus responde: «O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor
nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração,
de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. Eis aqui
o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que
estes não existe» [viii].
No
coração da pessoa humana se entrelaçam indissoluvelmente a relação com Deus,
reconhecido como Criador e Pai, fonte e termo da vida e da salvação, e a
abertura ao amor concreto pelo homem, que deve ser tratado como um outro “eu”,
ainda que seja um inimigo [ix].
Na dimensão interior e espiritual do homem radicam-se, no fim e ao cabo, o
empenho pela justiça e pela solidariedade, pela edificação de uma vida social,
económica e política conforme com o desígnio de Deus.
c) O discípulo de Cristo
qual nova criatura
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A vida pessoal e social assim como o agir humano no mundo são sempre insidiados
pelo pecado, mas Jesus Cristo, «padecendo por nós, não nos deu simplesmente o
exemplo para seguirmos os Seus passos, mas rasgou um caminho novo: se o
seguirmos, a vida e a morte tornam-se santas e adquirem um sentido diferente» [x].
O
discípulo de Cristo adere, na fé e mediante os sacramentos, ao mistério pascal
de Jesus, de sorte que o seu homem velho, com as suas más inclinações, é
crucificado com Cristo.
Qual
nova criatura fica então habilitado na graça a caminhar em «uma vida nova» [xi].
Tal
caminho, porém, «vale não apenas para os que creem em Cristo, mas para todos os
homens de boa vontade, no coração dos quais, invisivelmente, opera a graça.
Na
verdade, se Cristo morreu por todos e vocação última do homem é realmente uma
só, a saber divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos,
de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de sermos associados ao
mistério pascal» [xii].
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A transformação interior da pessoa humana, na sua progressiva conformação a
Cristo, é pressuposto essencial de uma real renovação das suas relações com as
outras pessoas:
«É
preciso, então, apelar às capacidades espirituais e morais da pessoa e à
exigência permanente de sua conversão interior, a fim de obter mudanças sociais
que estejam realmente a seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do
coração não elimina absolutamente, antes impõe, a obrigação de trazer às
instituições e às condições de vida, quando estas provocam o pecado, o
saneamento conveniente, para que sejam conformes às normas da justiça e
favoreçam o bem, em vez de lhe colocar obstáculos» [xiii].
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Não é possível amar o próximo como a si mesmo e perseverar nesta atitude sem a
firme e constante determinação de empenhar-se em prol do bem de todos e de cada
um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos [xiv].
Segundo
o ensinamento conciliar, «também àqueles que pensam e agem de modo diferente do
nosso em matéria social, política e, inclusivamente, religiosa, deve
estender-se o respeito e a caridade; quanto nos esforçamos para penetrar intimamente
com benevolência e amor, nos seus modos de ver, mais fácil se tornará um
diálogo com eles» [xv].
Nesse
caminho é necessária a graça, que Deus oferece ao homem para ajudá-lo a superar
os falhanços, para arrancá-lo da voragem da mentira e da violência, para
sustentá-lo e incentivá-lo a tecer de novo, com espírito sempre renovado e
disponível, a rede das relações verdadeiras e sinceras com os seus semelhantes [xvi].
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Também a relação com o universo criado e as diversas actividades que o homem
dedica ao seu cuidado e transformação, quotidianamente ameaçadas pela soberba e
amor desordenado de si, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e
ressurreição de Cristo:
«Resgatado
por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar,
com efeito, as coisas criadas por Deus. Pois de Deus as recebe: vê-as como
brotando da Sua mão e como tais as respeita. Dando graças por elas ao
Benfeitor, e usando e gozando das criaturas em espírito de pobreza e liberdade,
é então que entra deveras na posse do mundo, como quem nada tem e é dono de
tudo: com efeito “tudo é vosso: vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” [xvii]»
[xviii].
d) Transcendência da
salvação e autonomia das realidades terrestres
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Jesus Cristo é o Filho de Deus humanado no qual e graças ao qual o mundo e o
homem haurem a sua autêntica e plena verdade.
O
mistério da infinita proximidade de Deus em relação ao homem – realizado na
Encarnação de Jesus Cristo, levado até ao abandono na cruz e à morte – mostra
que quanto mais o humano é visto à luz do desígnio de Deus e vivido em comunhão
com Ele, tanto mais ele é potenciado e libertado na sua identidade e na mesma
liberdade que lhe é própria. A participação na vida filial de Cristo, tornada
possível pela Encarnação e pelo dom pascal do Espírito, longe de mortificar,
tem o efeito de fazer desabrochar a autêntica e autónoma consistência e
identidade dos seres humanos, em todas as suas expressões.
Esta
perspectiva orienta para uma visão mais correcta das realidades terrestres e da
sua autonomia, que é bem sublinhada pelo ensinamento do Concílio Vaticano II:
«Se
por autonomia das realidades terrestres se entende que as coisas criadas e as
próprias sociedades têm as suas leis e os seus valores próprios, que o homem
gradualmente deve descobrir, utilizar e organizar, tal exigência de autonomia é
plenamente legítima... corresponde à vontade do Criador. Com efeito, é pela
virtude da própria criação que todas as coisas estão dotadas de consistência,
verdade, bondade, de leis próprias e de uma ordem que o homem deve respeitar, e
reconhecer os métodos próprios de cada uma das ciências ou técnicas» [xix].
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Não há conflictuosidade entre Deus e o homem, mas uma relação de amor na qual o
mundo e os frutos do agir do homem no mundo são objecto de dom recíproco entre
o Pai e os filhos, e dos filhos entre si, em Cristo Jesus: n’Ele e graças a
Ele, o mundo e o homem alcançam o seu significado autêntico e originário.
Em
uma visão universal do amor de Deus que abraça tudo o que é, o próprio Deus se
nos revelou em Cristo como Pai e Doador de vida, e o homem nos é revelado como
aquele que, em Cristo, tudo recebe de Deus como dom, em humildade e liberdade,
e tudo possui verdadeiramente como seu, quando conhece e vive tudo como coisa
de Deus, por Deus originada e a Deus destinada.
A
este propósito, o Concílio Vaticano II ensina:
«Se
por autonomia do temporal se entende que as coisas criadas não dependem de Deus
e que o homem pode usá-las de tal maneira que as não refira ao Criador, não há
ninguém que acredite em Deus, que não perceba quão falsas são tais afirmações.
Na
verdade, a criatura sem o Criador perde o sentido» [xx].
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A pessoa humana, em si mesma e na sua vocação, transcende o horizonte do
universo criado, da sociedade e da história: o seu fim último é o próprio Deus [xxi],
que se revelou aos homens para convidá-los e recebê-los na comunhão com Ele [xxii].
«O
homem não se pode doar a um projecto somente humano da realidade, nem a um
ideal abstracto ou a falsas utopias. Enquanto pessoa, consegue doar-se a uma
outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o
único que pode acolher plenamente o seu dom» [xxiii].
Por
isso «alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a
experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana,
orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que,
nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais
difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade
inter-humana» [xxiv].
[i] Cf. Concílio
Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes,
22: AAS 58 (1966) 1043
[ii] cf. Rm 8
[iii] Concílio Vaticano
II, Const. dogm. Dei Verbum, 5: AAS
58 (1966) 819.
[iv] cf. 1 Jo 4, 10
[v] Hb 10, 23
[vi] cf. Jo 15-17; Gal
4, 6-7
[vii] Mc 12, 28
[viii] Mc 12, 29-31
[ix] cf. Mt 5, 43-44
[xi] Rom 6, 4
[xii] Concílio Vaticano
II, Const. past. Gaudium et spes, 22:
AAS 58 (1966) 1043.
[xiii] Catecismo da Igreja
Católica, 1888.
[xiv] Cf. João Paulo II, Carta encicl. Sollicitudo rei socialis,
38: AAS 80 (1988) 565-566
[xv]Concílio Vaticano
II, Const. past. Gaudium et spes, 28:
AAS 58 (1966) 1048.
[xvi] Cf. Catecismo da
Igreja Católica, 1889.
[xvii] 1 Cor 3, 22-23
[xviii] Concílio Vaticano
II, Const. past. Gaudium et spes, 37:
AAS 58 (1966) 1055.
[xix] Concílio Vaticano
II, Const. past. Gaudium et spes, 36: AAS 58 (1966) 1054; cf. Id.,
Decr. Apostolicam actuositatem, 7: AAS 58 (1966)
843-844.
[xx] Concílio Vaticano
II, Const. past. Gaudium et spes, 36:
AAS 58 (1966) 1054.
[xxi] Cf. Catecismo da
Igreja Católica, 2244.
[xxii] Cf. Concílio
Vaticano II, Const. dogm. Dei verbum,
2: AAS 58 (1966) 818.
[xxiii] João Paulo II, Carta encicl. Centesimus annus, 41: AAS
83 (1991) 844.
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