EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS
FAMÍLIAS.
Alguns desafios
54.
Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, apesar das melhorias
notáveis registadas no reconhecimento dos direitos da mulher e na sua
participação no espaço público, ainda há muito que avançar nalguns países. Não
se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco a violência
vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os maus-tratos
familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um sinal de força
masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal, física e sexual,
perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a própria natureza da
união conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher nalgumas culturas,
mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares
onde as decisões são tomadas. A história carrega os vestígios dos excessos das
culturas patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segunda classe,
mas recordemos também o «aluguer de
ventres» ou «a instrumentalização e comercialização do corpo feminino na
cultura mediática contemporânea».[i] Alguns consideram que muitos dos problemas actuais
ocorreram a partir da emancipação da mulher. Mas este argumento não é válido, «é falso, não é verdade! Trata-se de uma
forma de machismo».
43
A idêntica dignidade entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a
superação de velhas formas de discriminação e o desenvolvimento dum estilo de
reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem formas de feminismo que não
podemos considerar adequadas, de igual modo admiramos a obra do Espírito no
reconhecimento mais claro da dignidade da mulher e dos seus direitos.
55.
O homem «desempenha um papel igualmente
decisivo na vida da família, especialmente na protecção e sustentamento da
esposa e dos filhos. (...) Muitos homens estão conscientes da importância do
seu papel na família e vivem-no com as qualidades peculiares da índole
masculina. A ausência do pai penaliza gravemente a vida familiar, a educação
dos filhos e a sua integração na sociedade. Tal ausência pode ser física,
afectiva, cognitiva e espiritual. Esta carência priva os filhos dum modelo
adequado do comportamento paterno».[ii],[iii] Outro desafio surge de várias formas duma ideologia
genericamente chamada gender, que «nega a diferença e a reciprocidade natural
de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base
antropológica da família. Esta ideologia leva a projectos educativos e
directrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade
afectiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e
mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que
também muda com o tempo». [iv] Preocupa o facto de algumas ideologias deste tipo, que
pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem
impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças.
É preciso não esquecer que «sexo
biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir,
mas não separar».[v] Por outro lado, «a
revolução biotecnológica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade
de manipular o acto generativo, tornando-o independente da relação sexual entre
homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade
tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo
prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais».[vi] Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a
complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em
dois os aspectos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender
substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação
precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a
guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la
como ela foi criada.
57.
Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se
considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para
diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho. Partindo das reflexões
sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal, mas um interpelante
mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de alegrias, dramas e
sonhos. As realidades que nos preocupam, são desafios. Não caiamos na armadilha
de nos consumirmos em lamentações auto-defensivas, em vez de suscitar uma
criatividade missionária. Em todas as situações, «a Igreja sente a necessidade
de dizer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os grandes valores do
matrimónio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana
[vii]». Se constatamos muitas dificuldades, estas são – como
disseram os bispos da Colômbia – um apelo para «libertar em nós as energias da
esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos, acções transformadoras e imaginação
da caridade.[viii]
CAPÍTULO III
O OLHAR FIXO EM JESUS: A VOCAÇÃO DA
FAMÍLIA
58.
Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro
anúncio, que é o «mais belo, mais
importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário [ix] e «deve ocupar o centro da actividade evangelizadora».
[x] É o
anúncio principal, «aquele que sempre se
tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de
voltar a anunciar, duma forma ou doutra».[xi] Porque «nada há
de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que
esse anúncio» e «toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do
querigma».[xii]
O
nosso ensinamento sobre o matrimónio e a família não pode deixar de se inspirar
e transfigurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não quiser tornar-se
mera defesa duma doutrina fria e sem vida. Com efeito, o próprio mistério da
família cristã só se pode compreender plenamente à luz do amor infinito do Pai,
que se manifestou em Cristo entregue até ao fim e vivo entre nós. Por isso, quero
contemplar Cristo vivo que está presente em tantas histórias de amor e invocar
o fogo do Espírito sobre todas as famílias do mundo. Dentro deste quadro, o
presente capítulo recolhe uma síntese da doutrina da Igreja sobre o matrimónio
e a família. Também aqui citarei várias contribuições prestadas pelos Padres
sinodais nas suas considerações acerca da luz que a fé nos oferece. Eles
partiram do olhar de Jesus, dizendo que Ele «olhou para as mulheres e os homens que encontrou com amor e ternura,
acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar
as exigências do Reino de Deus». De igual modo nos acompanha, hoje, o
Senhor no nosso compromisso de viver e transmitir o Evangelho da família. Jesus
recupera e realiza plenamente o projecto divino. Contrariamente àqueles que
proibiam o matrimónio, o Novo Testamento ensina que «tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado».[xiii] O matrimónio é um «dom» do Senhor[xiv]. Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação positiva,
acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom divino: «Seja[xv] o matrimónio
honrado por todos e imaculado o leito conjugal»[xvi]. Este dom de Deus inclui a sexualidade: «Não vos recuseis um ao outro».[xvii]
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[i] Francisco, Catequese
(22 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
23/IV/2015), 16.
[ii] Idem, Catequese (29
de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 30/IV/2015),
16.
[viii] Conferência
Episcopal da Colômbia, A tiempos difíciles, colombianos nuevos (13 de Fevereiro
de 2003), 3.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.