EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
1.
A alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja. Apesar
dos numerosos sinais de crise no matrimónio – como foi observado pelos Padres
sinodais – «o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens,
e isto incentiva a Igreja». [i] Como resposta a este anseio, «o anúncio cristão sobre
a família é verdadeiramente uma boa notícia».[ii]
2.
O caminho sinodal permitiu analisar a situação das famílias no mundo actual,
alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância
do matrimónio e da família. Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas tratados
mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas
questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e
teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a
alcançar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação
ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo
desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à
atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou
deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas.
3.
Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as
discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de
intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de
doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de
interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem
dela. Assim há-de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa [iii], isto
é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver
tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar
soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De
facto, «as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...),
se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado». [iv]
4.
Em todo o caso, devo dizer que o caminho sinodal se revestiu duma grande beleza
e proporcionou muita luz. Agradeço tantas contribuições que me ajudaram a
considerar, em toda a sua amplitude, os problemas das famílias do mundo
inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres, que ouvi com atenção
constante, pareceu-me um precioso poliedro, formado por muitas preocupações
legítimas e questões honestas e sinceras. Por isso, considerei oportuno redigir
uma Exortação Apostólica pós-sinodal que recolha contribuições dos dois Sínodos
recentes sobre a família, acrescentando outras considerações que possam
orientar a reflexão, o diálogo ou a práxis pastoral, e simultaneamente ofereçam
coragem, estímulo e ajuda às famílias na sua doação e nas suas dificuldades.
5.
Esta Exortação adquire um significado especial no contexto deste Ano Jubilar da
Misericórdia, em primeiro lugar, porque a vejo como uma proposta para as
famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons do matrimónio e da família
e a manter um amor forte e cheio de valores como a generosidade, o compromisso,
a fidelidade e a paciência; em segundo lugar, porque se propõe encorajar todos
a serem sinais de misericórdia e proximidade para a vida familiar, onde esta
não se realize perfeitamente ou não se desenrole em paz e alegria.
6.
No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada
Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei a situação
actual das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois lembrarei
alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a
família, seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida
destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas
e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação dos
filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao discernimento
pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos
propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar.
7.
Devido à riqueza que os dois anos de reflexão do caminho sinodal ofereceram,
esta Exortação aborda, com diferentes estilos, muitos e variados temas. Isto
explica a sua inevitável extensão. Por isso, não aconselho uma leitura geral apressada.
Poderá ser de maior proveito, tanto para as famílias como para os agentes de
pastoral familiar, aprofundar pacientemente uma parte de cada vez ou procurar
nela aquilo de que precisam em cada circunstância concreta. É provável, por
exemplo, que os esposos se identifiquem mais com o quarto e quinto capí- tulo,
que os agentes pastorais tenham especial interesse pelo capítulo sexto, e que
todos se sintam muito interpelados pelo oitavo. Espero que cada um, através da
leitura, se sinta chamado a cuidar com amor da vida das famílias, porque elas
«não são um problema, são sobretudo uma oportunidade ».[v]
CAPÍTULO I
À LUZ DA PALAVRA
A
Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises
familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a família de Adão e
Eva, com o seu peso de violência mas também com a força da vida que continua [vi], até às últimas páginas onde aparecem as núpcias da
Esposa e do Cordeiro [vii]. As
duas casas de que fala Jesus, construí- das ora sobre a rocha ora sobre a areia
[viii], representam muitas situações familiares, criadas pela
liberdade de quantos habitam nelas, porque – como escreve o poeta – «toda a
casa é um candelabro».5 Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista,
através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais quer
judaica quer cristã: «Felizes os que obedecem ao Senhor e andam nos seus
caminhos. Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás
contente. A tua esposa será como videira fecunda na intimidade do teu lar; [ix] os teus filhos serão como rebentos de oliveira ao
redor da tua mesa. Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor. O
Senhor te abençoe do monte Sião! Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida, e chegues a ver os filhos dos teus filhos. Paz a
Israel!» [x].
Tu e a tua esposa
9.
Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada ao redor
da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo pai e a
mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio
primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador,
desde o princípio, fê-los homem e mulher?» [xi]. E retoma o mandato do livro do Génesis: «Por esse
motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois
serão uma só carne» [xii].
10.
Aqueles dois primeiros capítulos grandiosos do Génesis oferecem-nos a
representação do casal humano na sua realidade fundamental. Naquele trecho
inicial da Bíblia, sobressaem algumas afirmações decisivas. A primeira, citada
sinteticamente por Jesus, declara: «Deus criou o ser humano à sua imagem,
criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» [xiii]. Surpreendentemente, a «imagem de Deus» tem como
paralelo explicativo precisamente o casal «homem e mulher». Quererá isto
significar que o próprio Deus é sexuado ou tem a seu lado uma companheira
divina, como acreditavam algumas religiões antigas? Não, obviamente! Sabemos
com quanta clareza a Bíblia rejeitou como idolátricas tais crenças,
generalizadas entre os cananeus da Terra Santa. Preserva-se a transcendência de
Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o Criador, a fecundidade do casal
humano é «imagem» viva e eficaz, sinal visível do acto criador.
11.
O casal que ama e gera a vida é a verdadeira «escultura» viva (não a de pedra
ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e
salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o símbolo das realidades íntimas
de Deus [xiv]. Devido a isso a narrativa do Génesis, atendo-se à
chamada «tradição sacerdotal», aparece permeada por várias sequências
genealógicas [xv]: de facto, a capacidade que o casal humano tem de
gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Sob esta luz, a
relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o
mistério de Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus, contempla
o Pai, o Filho e o Espírito de amor. O Deus Trindade é comunhão de amor; e a
família, o seu reflexo vivente. A propósito, são elucidativas estas palavras de
São João Paulo II: «O nosso Deus, no seu mistério mais íntimo, não é solidão,
mas uma família, dado que tem em Si mesmo paternidade, filiação e a essência da
família, que é o amor. Este amor, na família divina, é o Espírito Santo» [xvi]. Concluindo, a família não é alheia à própria essência
divina.[xvii] Este aspecto trinitário do casal encontra uma nova
representação na teologia paulina, quando o Apóstolo relaciona o casal com o
«mistério» da união entre Cristo e a Igreja [xviii].
12.
Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio, alude a outra página do Génesis
– o capítulo 2 – onde aparece um retracto admirável do casal com detalhes
elucidativos. Escolhemos apenas dois. O primeiro é a inquietação vivida pelo
homem, que busca «uma auxiliar semelhante» [xix], capaz de resolver esta solidão que o perturba e que
não encontra remédio na proximidade dos animais e da criação inteira. A
expressão original hebraica faz-nos pensar numa relação directa, quase
«frontal» – olhos nos olhos –, num diálogo também sem palavras, porque, no
amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as palavras: é o
encontro com um rosto, um «tu» que reflecte o amor divino e constitui – como
diz um sábio bíblico – «o primeiro dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna
de apoio» [xx]. Ou como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos,
numa confissão estupenda de amor e doação na reciprocidade, «o meu amado é para
mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim» [xxi].
13.
Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a família. Este é um
segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão, que é também o homem de todos
os tempos e de todas as regiões do nosso planeta, juntamente com a sua esposa
dá origem a uma nova família, como afirma Jesus citando o Génesis: «Unir-se-á à
sua mulher e serão os dois um só» [xxii]. No original hebraico, o verbo «unir-se» indica uma
estreita sintonia, uma adesão física e interior, a ponto de se utilizar para
descrever a união com Deus, como canta o orante: «A minha alma está unida a Ti»
[xxiii]. Deste modo, evoca-se a união matrimonial não apenas
na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor.
O fruto desta união é «tornar-se uma só carne», quer no abraço físico, quer na
união dos corações e das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos dois e,
em si mesmo, há-de levar as duas «carnes», unindo-as genética e espiritualmente.
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[i] III Assembleia
Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Relatio Synodi (18 de Outubro de
2014), 2.
[ii] 2
XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Relatio Finalis (24 de
Outubro de 2015),
[iv] Francisco, Discurso
no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de
Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015),
9; cf. Pont. Comissão Bíblica, Fé e cultura à luz da Bíblia. Actas da Sessão Plenária
de 1979 da Pontifícia Comissão Bíblica (Turim 1981); Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 44; João
Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), 52: AAS 83
(1991), 300; Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
69.117: AAS 105 (2013), 1049.1068-1069.
[v] Francisco,
Discurso no Encontro com as Famílias, em Santiago de Cuba (22 de Setembro de
2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 14.
[xvi] Homilia na
Eucaristia celebrada em Puebla de los Ángeles (28 de Janeiro de 1979), 2: AAS
71 (1979), 184.
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