LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis)
TERCEIRA
PARTE
ALGUNS
MILAGRES REALIZADOS APÔS A MORTE DE SÃO FRANCISCO
O
PODER DOS ESTIGMAS
CAPÍTULO
I
1. Cabendo-me narrar, para
honra e glória de Deus omnipotente e do bem-aventurado Pai Francisco, alguns
dos milagres aprovados, que sucederam após a sua glorificação no céu, julguei
necessário principiar com aquele que mais do que qualquer outro revela o poder
da cruz de Cristo e renova a sua glória.
Homem novo e celestial,
brilhou Francisco com um milagre novo e estupendo, ao ser distinguido com um
privilégio jamais concedido a criatura humana antes dele: a impressão dos sagrados
estigmas que conformava o seu corpo mortal ao do Crucificado.
Tudo o que se possa dizer
com a língua de um mortal a respeito desse prodígio estará sempre aquém daquilo
que exige o mérito do seu louvor.
Todo o esforço do santo,
em público como em particular, era pensar na cruz do Senhor.
E a fim de marcar
exteriormente o seu corpo com o sinal da cruz, que desde o principio da sua
entrega total ao Senhor levava impressa no coração, quis encerrar-se na própria
cruz, vestindo-se com o hábito de penitência feito em forma de cruz, para que,
assim como em seu espírito ele se havia revestido interiormente de Cristo,
assim também o seu corpo se fortificasse com as armas da cruz, e para que o
exército de Francisco iniciasse sob aquela gloriosa insígnia com que o invicto
chefe Cristo havia triunfado sobre os poderes infernais.
Com efeito, desde aquele
primeiro instante em que o santo decidiu militar sob o estandarte do
Crucificado, começaram a realizar-se nele os grandes mistérios da cruz, como
claramente pode compreender todo aquele que considere com atenção toda a sua
vida em que foi mudando completamente os seus pensamentos, acções e afectos e,
por impulso do seu amor ser fico, se transformou em imagem perfeita do
Crucificado por força das repetidas aparições da cruz.
A misericórdia divina
condescendeu, pois, com o seu servo Francisco, tal como faz com os demais que
de facto o amam, e imprimiu no corpo do santo o sinal da cruz, para que aquele
que havia sido prevenido com amor tão intenso ... cruz também se tornasse
admirável pela honra maravilhosa que a própria cruz havia de proporcionar.
2. A fim de afastar
qualquer sombra de dúvida e comprovar a autenticidade desse milagre estupendo e
incontestável, aí estão não só os testemunhos absolutamente dignos de fé
daqueles que viram e tocaram as chagas do santo, mas também as admiráveis
aparições e prodígios, ocorridos depois da sua morte.
O Papa Gregório IX, de
feliz memória, a quem o santo profetizara a eleição ... cátedra de São Pedro,
nutria no seu coração, antes de canonizar o porta-estandarte da cruz, algumas dúvidas
a respeito da chaga do lado.
Uma noite, porém, como ele
mesmo referia entre lágrimas, apareceu-me em sonhos o bem-aventurado Francisco,
mostrando na fisionomia certa amargura e repreendendo-o por causa da dúvida que
alimentava no seu coração, levantou o braço direito, descobriu a chaga e pediu-lhe
que chegasse com uma taça para nela receber o sangue que dela brotava.
O papa aproximou da chaga
a taça, a qual parecia encher-se até às bordas de sangue que corria em abundância.
Desde então nutriu tal
devoção a esse extraordinário milagre e sentiu tanto zelo por ele, que de
nenhum modo podia consentir que alguém se atrevesse a impugnar com temerária
ousadia aquelas chagas benditas sem repreendê-lo com grande severidade.
3. Certo Irmão, menor pela
profissão, pregador por ofício e eminentíssimo pelas famas das suas virtudes,
acreditava firmemente na realidade dos estigmas.
Mas procurando em si uma
explicação para esse milagre segundo a lógica humana, sentiu nascer em si uns
vislumbres de dúvida.
Sentindo-se abatido por
muitos dias com essa luta e incerteza por ter a sensualidade aumentado,
apareceu-lhe em sonho o bem-aventurado Francisco com os pés enlameados, humilde
e severo, paciente e irado. E disse-lhe:
“Que incertezas São essas
que te afligem e que dúvidas São estas que te molestam? Vê minhas mãos e meus
pés”.
Mas, embora visse as mãos
chagadas, não podia ver as chagas dos pés por causa do lodo que as cobria.
Então disse-lhe o seráfico
Pai: “Tira o lodo de meus pés e poderás contemplar a ferida produzida pelos
cravos”.
O Irmão tomou em suas mãos
os pés e parecia-lhe que realmente estava separando deles a lama e que estava
tocando com as próprias mãos os cravos.
Logo que despertou daquele
sonho, começou a chorar amargamente e purificou, não só com as suas lágrimas
copiosas mas também com a confissão pública de suas dúvidas, os primeiros afectos
da sua alma, de certa forma prejudicados pelo lodo da incredulidade.
4. Havia na cidade de Roma
uma senhora, nobre pela pureza do seus costumes e pelas suas raízes ancestrais.
Ela escolhera São
Francisco como seu advogado e tinha um quadro dele no seu quarto, onde orava a
Deus em segredo.
Certo dia ao orar, olhou
ela com atenção a imagem do santo e não viu nenhum sinal dos estigmas.
Ficou surpreendida e
contrariada.
Na verdade não havia
motivo nenhum para ficar surpresa, pois o artista havia omitido as chagas.
Por alguns dias esteve ela
ponderando qual teria sido a razão daquela omissão.
Um dia, porém, os estigmas
apareceram de repente no quadro, tal como aparecem em outras pinturas do santo.
Ficou atemorizada e imediatamente
chamou a filha, que também era muito religiosa, e perguntou-lhe se os estigmas
realmente estavam no quadro anteriormente.
Ela respondeu que não e
jurou que os estigmas tinham sido omitidos e que agora aí estavam.
No entanto, muitas vezes
acontece que o coração humano arma uma cilada para si mesmo, pondo em dúvida a
verdade.
E foi o que lhe aconteceu
a ela: começou com incertezas e vacilações, duvidando se a imagem já não
estaria com as chagas desde o início.
Mas o poder de Deus
acrescentou mais um milagre, para que não ficasse desprezado o primeiro.
De repente desapareceram
aquelas chagas, ficando o quadro desprovido de tão singular privilégio, para
que pelo prodígio seguinte ficasse o anterior perfeitamente confirmado.
5. Aconteceu também na
cidade de Lérida, na Catalunha, que certo homem chamado João, muito devoto de
São Francisco, andava por um caminho ao anoitecer, quando lhe saíram ao
encontro uns homens com intenção de matá-lo, não precisamente a ele, que não tinha
inimigos, mas a um outro que lhe era muito parecido e costumava andar em sua companhia.
Aproximando-se um dos
homens que estavam ocultos, pensando ser seu inimigo, causou-lhe tão graves ferimentos,
que o deixou sem esperança alguma de recuperar a saúde, pois ao primeiro golpe
que lhe deu, quase lhe cortou o braço pela altura do ombro, e o outro golpe lhe
causou tão profunda ferida no peito, que o ar que por ali escapava bastou para apagar
a luz de seis velas que ardiam juntas.
Os médicos estavam
convencidos de que ele não poderia salvar-se porque, tendo gangrenado, a ferida
exalava um mau cheiro tão intolerável, que a própria esposa mal aguentava.
Nem havia remédio humano
que pudesse aliviar-lhe a dor.
Então recorreu a São
Francisco pedindo a sua intercessão tão fervorosamente quanto pôde.
E mesmo quando atacado,
recomendara-se a ele e ... Santíssima Virgem.
Enquanto estava deitado
sozinho no seu leito de dor, perfeitamente consciente e repetindo o nome de
Francisco continuamente, entrou pela janela um homem vestido do hábito
franciscano e se pôs a seu lado.
Assim lhe pareceu. A visão
lhe falou, chamando-o pelo nome:
“Tiveste confiança em mim
e por isso Deus te há-de curar”.
Quando o homem lhe
perguntou quem era ele, disse que era Francisco e logo se inclinou para ele e
desatou-lhe as feridas.
Em seguida, parecia
untá-las com unguento.
Logo que sentiu o suave
contacto daquelas mãos, que por virtude das chagas do Senhor tinham força para
restituir a saúde, desapareceu a gangrena, sua carne ficou sã e cicatrizaram-se
as feridas, voltando ao estado de perfeita saúde de que anteriormente gozava.
Depois disso desapareceu
São Francisco.
Ao perceber que tinha sido
curado, João chamou a esposa e prorrompeu alegre em louvores a Deus e a seu
santo servo Francisco.
Ela veio correndo e ao ver
de pé seu marido, que supunha ter que enterrar no dia seguinte, ficou
amedrontada, e com os seus clamores chamou a atenção de toda a vizinhança.
Quando as pessoas da família
chegaram, tentaram reconduzir João para a cama, pensando que estivesse louco,
mas ele não quis ouvir a ninguém; procurando explicar-lhes que estava curado.
Tão grande foi o pavor que os dominou, que ficaram como fora de si,
parecendo-lhes estar vendo um fantasma, pois aquele a quem há pouco haviam contemplado
cheio de chagas e mais ou menos já corrompido, apresentava-se a eles agora
alegre e completamente restabelecido. “Não temais”, disse-lhes. “Não penseis
que estais vendo fantasma. São Francisco acaba de sair daqui e foi ele quem
curou todas as minhas chagas com o contacto de suas santas mãos”.
Divulgada a fama desse milagre,
reuniu-se todo o povoado e, reconhecendo nesse estupendo prodígio a virtude das
santas chagas de Francisco, ficaram todos cheios de admiração e alegria e com
grandes manifestações aclamavam e bendiziam o porta-estandarte de Cristo.
Francisco levou os
estigmas de Cristo, que por nós morreu em sua grande misericórdia e ressuscitou
milagrosamente dos mortos e pelo poder de suas chagas curou o género humano que
tinha sido ferido e estava semimorto.
Era justo, portanto, que
aquele que morrera para este mundo e vivia com Cristo curasse um homem ferido
aparecendo-lhe milagrosamente e tocando-o com suas mãos.
(cont)
São
Boaventura
Revisão
da versão portuguesa por AMA
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