01/11/2018

Leitura espiritual

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LEGENDA MAIOR 

Vida de São Francisco de Assis)

SEGUNDA PARTE

CAPITULO 11

Conhecimento das Escrituras e espírito de profecia

1. Pelo exercício contínuo da oração e pela prática de alma que, sem haver adquirido pelo estudo o conhecimento dos santos livros, mas iluminado pelas luzes do alto, penetrava com espantosa acuidade ao mais profundo das Escrituras.
O seu espírito, livre de toda mancha, penetrava os mais ocultos mistérios, e onde não podia chegar a ciência adquirida, penetrava o afecto do discípulo amante. Lia às vezes os livros santos, e tudo o que a sua inteligência captava  a sua memória retinha tenazmente, pois o ouvido atento da sua alma percebia o que o coração amante repassava sem descanso. Alguns irmãos um dia pediram-lhe, para aqueles que haviam estudado, a permissão de se dedicarem aos estudos da Sagrada Escritura.
Respondeu: “Permito, contanto que não se esqueçam de se dedicar também à oração, como Cristo, que, como se lê, mais rezou do que estudou, e contanto que não estudem unicamente para saber como falar, mas para pôr em prática primeiro aquilo que tiverem aprendido e, depois de terem posto em prática, para ensinar aos outros aquilo que eles devem fazer.
Quero que os meus irmãos sejam discípulos do Evangelho e que os seus progressos no conhecimento da verdade sejam tais, que eles cresçam ao mesmo tempo na pureza da simplicidade.
Dessa forma não hão de separar aquilo que o Mestre uniu com sua palavra bendita: a simplicidade da pomba e a prudência da serpente”.

2. Encontrando-se na cidade de Sena, perguntou-lhe certo religioso, doutor em teologia, acerca de algumas questões difíceis de compreender e respondeu-lhe com tanta propriedade e descobriu tão claramente os mistérios da divina sabedoria, que aquele homem erudito muito se admirou e disse maravilhado aos circunstantes:
“Na verdade, a teologia desse santo Pai, adquirida com as asas da pureza e da contemplação, é mais clara e penetrante que a vista da águia elevada sobre as nuvens; por outro lado, a nossa ciência enfatuada arrasta-se como um vil animal pela terra”.
Efectivamente, embora leigo na arte da palavra, resolvia com muita ciência as dúvidas que lhe apresentavam e lançava luzes sobre os pontos obscuros.
Não admira, pois, que o santo tenha recebido de Deus a inteligência das Escrituras: toda sua actividade, imitação perfeita de Cristo, era exclusivamente a prática da verdade contida nas Escrituras. E toda a sua vida interior era total hospitalidade ao Espírito, intérprete das Escrituras, docilidade a seus ensinamentos.

3. Também brilhava nele o espírito de profecia, de modo que previa claramente as coisas futuras, penetrava os mais íntimos segredos do coração, via as coisas ausentes como se acontecessem diante de si e não poucas vezes se fazia presente de modo maravilhoso aos que se achavam muito distantes do lugar em que ele se encontrava.
Quando o exército cristão estava cercando Damieta, o homem de Deus já se achava munido não de armas mas da fé.
Chegou o dia da batalha em que os cristãos haviam decidido atacar a cidade. Ao saber dessa resolução, ficou muito contrariado e disse ao companheiro:
“O Senhor me mostrou que se os cristãos fizerem hoje o assalto à cidade, não se sairão bem; mas se eu disser tal coisa, hão-de considerar-me um louco, e se me calar, guardarei remorsos para sempre. Que te parece melhor?”
Respondeu o companheiro:
“Irmão, não te preocupes com o parecer dos homens; não é de hoje que te consideram um louco. Livra a tua consciência desse encargo e tem mais temor de Deus do que dos homens”.
A essas palavras o arauto de Cristo, cheio de coragem, enfrentou os cruzados e, preocupado com salvá-los do perigo, tentou impedir o ataque, anunciando a derrota. Os soldados desprezaram o vaticínio, endureceram o coração e não quiseram desistir da empresa. Avistaram-se os exércitos, travaram a batalha e as tropas cristãs viram-se obrigadas a bater em vergonhosa retirada, sendo para elas a luta não um triunfo, mas uma derrota completa.
Com tão tremenda desgraça ficou muito reduzido o exército cristão, pois entre mortos e prisioneiros ficaram fora de combate cerca de seis mil soldados.
Uma lição ficou bem patente, clara e imperativa: a sabedoria de um pobre não se trata com desprezo, pois a alma do justo costuma dizer a verdade algumas vezes bem melhor do que sete sentinelas postos no alto como atalaias” (Eclo 37,18).

4. Noutra ocasião, após voltar dos países de além- mar, veio a Celano pregar e um cavaleiro que lhe tinha muita devoção convidou-o à sua mesa, com muita insistência.
Aceitou o convite e toda a família ficou muito contente com a chegada dos seus hóspedes, os pobres. Antes de sentar-se à mesa, o santo, como de costume, rezou e louvou a Deus, de pé, olhos voltados para o céu, mas quando terminou, chamou à parte aquele cavaleiro generoso e disse-lhe:
 “Irmão hóspede, eis-me aqui vencido pelos teus rogos: entrei em tua casa para comer; agora, porém, escuta e põe logo em prática os meus conselhos, porque não aqui mas em outro local muito em breve hás de comer. Faz portanto agora uma boa confissão dos teus pecados, acompanhada de uma verdadeira dor de tuas culpas e não deixes de manifestar tudo o que for matéria do sacramento. Deves saber que o Senhor te recompensará hoje mesmo a devoção com que convidaste e recebeste os seus pobres”.
O homem obedeceu imediatamente a estas palavras do santo, confessou todos os seus pecados ao irmão que o acompanhava e após “haver posto ordem em sua casa”, estava preparado da melhor forma possível a receber a morte.
Enfim, sentaram-se todos à mesa e os convivas começaram a comer, quando, de repente, o cavaleiro morreu, levado por uma morte repentina, como havia predito o homem de Deus. Tão generosa hospitalidade merecera-lhe a recompensa prometida pelo Verbo que é a Verdade:
Aquele que recebe um profeta receberá uma recompensa de profeta(cf. Mt 10,41).
A predição do santo valeu- lhe a preparação para uma morte súbita e fortalecido com as armas da penitência, conseguiu escapar à condenação eterna e entrar na pátria celeste.

5. No tempo em que o santo jazia doente em Rieti, trouxeram-lhe estendido sobre um leito um cónego de nome Gedeão, homem sensual e mundano, atingido de grave doença. O cónego pedia-lhe chorando, juntamente com os presentes, que o abençoasse com o sinal-da-cruz. Mas o santo replicou:
“Como poderei assinalar-te com a cruz, se até agora viveste segundo os instintos da carne, sem temer os juízos de Deus? Em vista das orações e devoção dos que intercedem por ti, marcar-te-ei com o sinal-da-cruz, em nome do Senhor. Mas sabe que te acontecerão coisas bem piores se voltares ao vómito depois de curado, pois os ingratos caem num estado pior que o primeiro!” Traçou o sinal-da-cruz sobre ele, e o homem que jazia paralítico levantou-se muito contente, prorrompendo em louvores ao Senhor, e exclamou como fora de si: “Já estou curado!”
Ouviram-se então nos seus ossos uns estalidos semelhantes aos que se percebem quando se partem com a mão gravetos secos. Mas por desgraça, não levou muito tempo, esqueceu-se de Deus e entregou-se de novo às desordens da sensualidade.
Uma noite, havendo ceado na casa de um outro cónego, aí ficara para passar a noite, quando o telhado desabou. Todos escaparam à morte, menos o infeliz que ficou sob os escombros.
Por um justo juízo de Deus, o último castigo desse homem foi pior que o primeiro, em razão de seu duplo pecado de ingratidão e de desprezo para com Deus.
É preciso mostrar-se sempre reconhecido pelos benefícios recebidos. A recaída no vício é uma dupla ofensa.
Outra vez, uma mulher nobre e muito piedosa aproximou-se do santo, contou-lhe da dor que a oprimia e pediu-lhe o remédio acertado. Tinha um marido extremamente cruel que a privava de tudo quanto pertencia ao serviço de Deus; e entristecida por tal desgraça, pedia instantemente a Francisco que fizesse uma oração por ele para conseguir que Deus, com a sua amorosa clemência, abrandasse o seu coração endurecido. Ao ouvir essas queixas da mulher, disse-lhe o santo:
“Vai em paz, filha, e fica certa de que muito em breve receberás de teu marido um grande consolo”. E logo acrescentou: “Diz ao teu marido, da parte de Deus e da minha parte, que agora é tempo de misericórdia e de perdão, mas que depois virá o tempo da justiça rigorosa”.
Recebida a bênção do santo, a mulher regressou à sua casa e encontrando-se com o seu marido, referiu-lhe o acontecido. De repente desceu o Espírito Santo sobre aquele homem e o transformou num homem novo, que com grande mansidão assim falou à mulher: “Amada esposa, entreguemos-nos desde agora ao serviço do Senhor e trabalhemos com empenho pela salvação de nossa alma”. Por sugestão da sua santa esposa, eles praticaram a castidade durante vários anos e no mesmo dia partiram para o Senhor.
Que maravilha a virtude profética do santo: o seu poder restituía a vida aos membros já secos e conseguia fazer chegar a piedade aos corações mais duros.
Por outro lado, a sua penetração estendia-se até aos acontecimentos do futuro e perscrutava o mistério das consciências, como um segundo Eliseu que herdara o duplo espírito do profeta Elias!

(cont)

São Boaventura
Revisão de versão portuguesa por AMA

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