LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis)
SEGUNDA PARTE
Capítulo 10
Zelo
na oração e poder de sua prece
4. E o homem de Deus,
estando só e em paz, fazia ecoar os bosques com os seus gemidos, regava o chão
com as suas lágrimas, batia no peito e como se sentisse oculto, bem abrigado na
câmara mais secreta do palácio, falava a seu Senhor, respondia ao seu Juiz,
suplicava ao Pai, entretinha-se com o Amigo.
Aí também muitas vezes
seus irmãos que o observavam piamente ouviram-no interceder com repetidas
súplicas diante da divina clemência em favor dos pecadores e chorar em altas
vozes como se estivesse presenciando a dolorosa paixão do Senhor.
Uma noite também o viram
na solidão orar com os braços estendidos em forma de cruz, estando o seu corpo
elevado da terra e envolto numa nuvem resplandecente, como se essa luz viesse a
ser testemunha da admirável claridade de que gozava então Francisco na sua
mente.
Aí também, como atestam provas
seguras, lhe eram revelados os mistérios ocultos da sabedoria divina que ele
não divulgava externamente a não ser na medida em que era impelido a isso por
amor a Cristo ou pelo bem que poderiam proporcionar aos outros.
Dizia a respeito:
“As vezes perde-se um
tesouro inestimável por uma vantagem medíocre, e é culpa nossa se Aquele que
no-lo deu já não se mostra tão generoso”.
Ao voltar de suas orações,
que o transformavam quase num outro homem, punha toda atenção em comportar-se
em conformidade com os demais, para não acontecer que o vento do aplauso lhe
roubasse de sua alma os favores divinos que ele deixasse transparecer externamente.
Ao ser surpreendido
publicamente por uma visita do Senhor, ocultava-se de qualquer forma aos
olhares das pessoas presentes a fim de nada desvendar dos favores do Esposo.
Ao orar em companhia dos
irmãos, evitava com sumo cuidado as exclamações, os gemidos, os suspiros e
movimentos externos, já porque em tudo isso amava o segredo, já também porque,
voltando a entrar prontamente em si mesmo, ficava absorto novamente em Deus.
Costumava dizer aos da sua
intimidade:
“Quando um servo de Deus;
entregue à oração, é visitado pelo Senhor, deve dizer-lhe: ‘Esta consolação,
Senhor, a enviastes do céu a um pecador e indigno; eu a confio a vossos
amorosos cuidados, pois do contrário me consideraria um ladrão de vossos
divinos tesouros’. E ao terminar a oração, de tal modo se deve julgar pobre e
pecador, como se nenhuma nova graça houvesse recebido”.
5. Estava o homem de Deus
certa vez na Porciúncula rezando, quando o bispo de Assis chegou para lhe fazer
a visita habitual.
Logo que entrou no
convento, dirigiu-se à cela em que o seráfico Pai estava orando; chamou à porta
e, ansioso por entrar imediatamente, abusando um tanto de sua confiança,
introduziu a cabeça para contemplar o santo em oração; mas de repente sentiu-se
dominado de estranho temor, tremendo-lhe os membros, perdeu a fala e subitamente,
por disposição divina, uma força estranha o tirou dali e o arrojou a uma grande
distância.
Amedrontado, correu o
bispo depressa para junto dos irmãos, e logo que Deus lhe restituiu a fala,
confessou ingenuamente a sua falta.
O abade do mosteiro de São
Justino, na diocese de Perusa, encontrou certo dia o servo de Deus e assim que
o viu apeou do cavalo para saudar o homem de Deus que ele venerava e conversar
com ele acerca da salvação de sua alma. Após esse diálogo que lhe pareceu muito
confortante, o abade despediu-se pedindo-lhe humildemente que rezasse por ele.
“De bom grado!”, disse Francisco. Não se encontrava ainda o abade muito longe,
quando Francisco, o fiel, disse a seu companheiro:
“Espera-me aqui um
momento, irmão, pois quero cumprir o quanto antes a promessa que agora mesmo
acabo de fazer”.
Pôs-se a orar e no mesmo
instante sentiu o abade na sua alma um ardor e uma suavidade desconhecidas até
então, e caindo em êxtase ficou absorto totalmente em Deus. Assim ficou por
breve espaço de tempo, e voltando a si, conheceu claramente quão eficaz era na
presença de Deus a oração de Francisco. Com isso cresceu mais e mais no amor à
Ordem e a muitos referiu esse facto, considerando-o um verdadeiro milagre.
6. Tinha o santo o hábito
de oferecer a Deus o tributo das horas canónicas com temor e devoção. Embora
sofresse dos olhos, do estômago, do baço e do fígado, não se permitia apoiar-se
ao muro ou à parede ao recitar os Salmos, mas rezava as horas canónicas em posição
erecta, sem capuz na cabeça, sem vagar com os olhos nem engolir as sílabas.
Em viagem, à hora prevista,
ele parava, e não havia temporal por mais torrencial que impedisse esse costume
respeitoso.
“Se damos repouso ao corpo,
dizia ele, para que possa tomar um alimento que será pasto dos vermes
juntamente com ele, com que paz e tranquilidade não deve a alma tomar o seu
alimento de vida?”
Julgava pecar gravemente
se durante a oração, se deixasse levar por vãs imaginações, e quando lhe
acontecia isso, não se contentava com acusar-se dessa falta no confessionário:
queria também expiá-la o mais cedo possível. Esta resolução se transformara
nele num reflexo habitual, de modo que esse tipo de moscas não vinha
incomodá-lo, a não ser muito raramente. Ansioso por aproveitar os menores momentos
de seu tempo, durante uma Quaresma confeccionou um pequeno vaso de madeira. E
como um dia, ao rezar a Terça, o distraiu a ideia do vaso, cheio de fervor de espírito,
queimou o vaso, dizendo: “sacrificá-lo-ei ao Senhor, já que impediu o
sacrifício dos divinos louvores”. Com tão fervorosa atenção rezava os Salmos,
que parecia ter a Deus presente; e quando neles ocorria o nome do Senhor,
enchia-se de tanta doçura que parecia lamber os lábios.
Querendo além disso que se
honrasse com particular reverência o nome do Senhor, não apenas quando ocorria
à mente, mas também quando se ouvia pronunciar ou se encontrava escrito, rogou
encarecidamente aos irmãos que recolhessem com, o máximo cuidado e colocassem
em lugar decente todos os papéis que encontrassem com o nome escrito do Senhor,
para evitar que fosse profanado.
Ao pronunciar ou ouvir
alguém pronunciar o doce nome de Jesus, enchia-se internamente de um santo
júbilo e externamente parecia completamente transformado, como se seu gosto
experimentasse um sabor delicioso ou ressoasse em seus ouvidos um concerto
celestial.
7. Três anos antes de sua
morte, resolveu celebrar com a maior solenidade possível, perto de Greccio, a
memória da Natividade do Menino Jesus, a fim de aumentar a devoção dos
habitantes. Mas para que ninguém pudesse tachar esta festa de ridícula
novidade, pediu e obteve do Sumo Pontífice licença para celebrá-la.
Francisco mandou pois
preparar um presépio e trazer muito feno, juntamente com um burrinho e um boi,
dispondo tudo ordenadamente; reuniram-se os irmãos chamados dos diversos
lugares; acorreu o povo, ressoaram vozes de júbilo por toda parte e a multidão
de luzes e archotes resplandecentes juntamente com os cânticos sonoros que
brotavam dos peitos simples e piedosos transformaram aquela noite num dia
claro, esplêndido e festivo. E Francisco lá estava diante do rústico presépio
em êxtase, banhado de lágrimas e cheio de gozo celestial. Principiou então a
missa solene, na qual Francisco, que oficiava como diácono, cantou o Evangelho.
Pregou em seguida ao povo
e falou-lhe do nascimento do Rei pobre a quem ele chamava com ternura e amor de
Menino de Belém.
Havia entre os assistentes
um soldado muito piedoso e leal que, movido por seu amor a Cristo, renunciou à
milícia secular e se uniu estreitamente ao servo de Deus.
Chamava-se João de
Greccio, que afirmou ter visto no presépio, reclinado e dormindo, um menino
extremamente lindo, ao qual tomou entre seus braços o bem-aventurado Francisco,
como se quisesse despertá-lo suavemente do sono.
Que esta visão do piedoso
soldado é totalmente certa garante-o não só a santidade de quem a teve, como
também sua veracidade e a evidenciam os milagres que a seguir se realizaram;
pois o exemplo de Francisco, mesmo considerado do ponto de vista humano, tem poder
para excitar a fé de Cristo nos corações mais frios. E aquele feno do presépio,
cuidadosamente conservado, foi remédio eficaz para curar milagrosamente os animais
enfermos e como antídoto contra muitas outras classes de peste.
Deus glorificava em tudo o
seu servo e provava pelos milagres evidentes o poder de suas preces e de sua
santidade.
(cont)
São Boaventura
Revisão da versão
portuguesa por AMA
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.