02/11/2018

Leitura espiritual

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LEGENDA MAIOR  

Vida de São Francisco de Assis)

SEGUNDA PARTE

Capítulo 10

Zelo na oração e poder de sua prece

4. E o homem de Deus, estando só e em paz, fazia ecoar os bosques com os seus gemidos, regava o chão com as suas lágrimas, batia no peito e como se sentisse oculto, bem abrigado na câmara mais secreta do palácio, falava a seu Senhor, respondia ao seu Juiz, suplicava ao Pai, entretinha-se com o Amigo.
Aí também muitas vezes seus irmãos que o observavam piamente ouviram-no interceder com repetidas súplicas diante da divina clemência em favor dos pecadores e chorar em altas vozes como se estivesse presenciando a dolorosa paixão do Senhor.
Uma noite também o viram na solidão orar com os braços estendidos em forma de cruz, estando o seu corpo elevado da terra e envolto numa nuvem resplandecente, como se essa luz viesse a ser testemunha da admirável claridade de que gozava então Francisco na sua mente.
Aí também, como atestam provas seguras, lhe eram revelados os mistérios ocultos da sabedoria divina que ele não divulgava externamente a não ser na medida em que era impelido a isso por amor a Cristo ou pelo bem que poderiam proporcionar aos outros.
Dizia a respeito:
“As vezes perde-se um tesouro inestimável por uma vantagem medíocre, e é culpa nossa se Aquele que no-lo deu já não se mostra tão generoso”.
Ao voltar de suas orações, que o transformavam quase num outro homem, punha toda atenção em comportar-se em conformidade com os demais, para não acontecer que o vento do aplauso lhe roubasse de sua alma os favores divinos que ele deixasse transparecer externamente.
Ao ser surpreendido publicamente por uma visita do Senhor, ocultava-se de qualquer forma aos olhares das pessoas presentes a fim de nada desvendar dos favores do Esposo.
Ao orar em companhia dos irmãos, evitava com sumo cuidado as exclamações, os gemidos, os suspiros e movimentos externos, já porque em tudo isso amava o segredo, já também porque, voltando a entrar prontamente em si mesmo, ficava absorto novamente em Deus.
Costumava dizer aos da sua intimidade:
“Quando um servo de Deus; entregue à oração, é visitado pelo Senhor, deve dizer-lhe: ‘Esta consolação, Senhor, a enviastes do céu a um pecador e indigno; eu a confio a vossos amorosos cuidados, pois do contrário me consideraria um ladrão de vossos divinos tesouros’. E ao terminar a oração, de tal modo se deve julgar pobre e pecador, como se nenhuma nova graça houvesse recebido”.

5. Estava o homem de Deus certa vez na Porciúncula rezando, quando o bispo de Assis chegou para lhe fazer a visita habitual.
Logo que entrou no convento, dirigiu-se à cela em que o seráfico Pai estava orando; chamou à porta e, ansioso por entrar imediatamente, abusando um tanto de sua confiança, introduziu a cabeça para contemplar o santo em oração; mas de repente sentiu-se dominado de estranho temor, tremendo-lhe os membros, perdeu a fala e subitamente, por disposição divina, uma força estranha o tirou dali e o arrojou a uma grande distância.
Amedrontado, correu o bispo depressa para junto dos irmãos, e logo que Deus lhe restituiu a fala, confessou ingenuamente a sua falta.
O abade do mosteiro de São Justino, na diocese de Perusa, encontrou certo dia o servo de Deus e assim que o viu apeou do cavalo para saudar o homem de Deus que ele venerava e conversar com ele acerca da salvação de sua alma. Após esse diálogo que lhe pareceu muito confortante, o abade despediu-se pedindo-lhe humildemente que rezasse por ele. “De bom grado!”, disse Francisco. Não se encontrava ainda o abade muito longe, quando Francisco, o fiel, disse a seu companheiro:
“Espera-me aqui um momento, irmão, pois quero cumprir o quanto antes a promessa que agora mesmo acabo de fazer”.
Pôs-se a orar e no mesmo instante sentiu o abade na sua alma um ardor e uma suavidade desconhecidas até então, e caindo em êxtase ficou absorto totalmente em Deus. Assim ficou por breve espaço de tempo, e voltando a si, conheceu claramente quão eficaz era na presença de Deus a oração de Francisco. Com isso cresceu mais e mais no amor à Ordem e a muitos referiu esse facto, considerando-o um verdadeiro milagre.

6. Tinha o santo o hábito de oferecer a Deus o tributo das horas canónicas com temor e devoção. Embora sofresse dos olhos, do estômago, do baço e do fígado, não se permitia apoiar-se ao muro ou à parede ao recitar os Salmos, mas rezava as horas canónicas em posição erecta, sem capuz na cabeça, sem vagar com os olhos nem engolir as sílabas.
Em viagem, à hora prevista, ele parava, e não havia temporal por mais torrencial que impedisse esse costume respeitoso.
“Se damos repouso ao corpo, dizia ele, para que possa tomar um alimento que será pasto dos vermes juntamente com ele, com que paz e tranquilidade não deve a alma tomar o seu alimento de vida?”
Julgava pecar gravemente se durante a oração, se deixasse levar por vãs imaginações, e quando lhe acontecia isso, não se contentava com acusar-se dessa falta no confessionário: queria também expiá-la o mais cedo possível. Esta resolução se transformara nele num reflexo habitual, de modo que esse tipo de moscas não vinha incomodá-lo, a não ser muito raramente. Ansioso por aproveitar os menores momentos de seu tempo, durante uma Quaresma confeccionou um pequeno vaso de madeira. E como um dia, ao rezar a Terça, o distraiu a ideia do vaso, cheio de fervor de espírito, queimou o vaso, dizendo: “sacrificá-lo-ei ao Senhor, já que impediu o sacrifício dos divinos louvores”. Com tão fervorosa atenção rezava os Salmos, que parecia ter a Deus presente; e quando neles ocorria o nome do Senhor, enchia-se de tanta doçura que parecia lamber os lábios.
Querendo além disso que se honrasse com particular reverência o nome do Senhor, não apenas quando ocorria à mente, mas também quando se ouvia pronunciar ou se encontrava escrito, rogou encarecidamente aos irmãos que recolhessem com, o máximo cuidado e colocassem em lugar decente todos os papéis que encontrassem com o nome escrito do Senhor, para evitar que fosse profanado.
Ao pronunciar ou ouvir alguém pronunciar o doce nome de Jesus, enchia-se internamente de um santo júbilo e externamente parecia completamente transformado, como se seu gosto experimentasse um sabor delicioso ou ressoasse em seus ouvidos um concerto celestial.

7. Três anos antes de sua morte, resolveu celebrar com a maior solenidade possível, perto de Greccio, a memória da Natividade do Menino Jesus, a fim de aumentar a devoção dos habitantes. Mas para que ninguém pudesse tachar esta festa de ridícula novidade, pediu e obteve do Sumo Pontífice licença para celebrá-la.
Francisco mandou pois preparar um presépio e trazer muito feno, juntamente com um burrinho e um boi, dispondo tudo ordenadamente; reuniram-se os irmãos chamados dos diversos lugares; acorreu o povo, ressoaram vozes de júbilo por toda parte e a multidão de luzes e archotes resplandecentes juntamente com os cânticos sonoros que brotavam dos peitos simples e piedosos transformaram aquela noite num dia claro, esplêndido e festivo. E Francisco lá estava diante do rústico presépio em êxtase, banhado de lágrimas e cheio de gozo celestial. Principiou então a missa solene, na qual Francisco, que oficiava como diácono, cantou o Evangelho.
Pregou em seguida ao povo e falou-lhe do nascimento do Rei pobre a quem ele chamava com ternura e amor de Menino de Belém.
Havia entre os assistentes um soldado muito piedoso e leal que, movido por seu amor a Cristo, renunciou à milícia secular e se uniu estreitamente ao servo de Deus.
Chamava-se João de Greccio, que afirmou ter visto no presépio, reclinado e dormindo, um menino extremamente lindo, ao qual tomou entre seus braços o bem-aventurado Francisco, como se quisesse despertá-lo suavemente do sono.
Que esta visão do piedoso soldado é totalmente certa garante-o não só a santidade de quem a teve, como também sua veracidade e a evidenciam os milagres que a seguir se realizaram; pois o exemplo de Francisco, mesmo considerado do ponto de vista humano, tem poder para excitar a fé de Cristo nos corações mais frios. E aquele feno do presépio, cuidadosamente conservado, foi remédio eficaz para curar milagrosamente os animais enfermos e como antídoto contra muitas outras classes de peste.
Deus glorificava em tudo o seu servo e provava pelos milagres evidentes o poder de suas preces e de sua santidade.

(cont)

São Boaventura
Revisão da versão portuguesa por AMA

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