LEGENDA MAIOR
Vida de São Francisco de Assis
CAPITULO 6
6. Preferindo a pobreza
para si e para os seus irmãos acima de qualquer honra deste mundo, Deus que ama
os humildes julgou-o digno de maior honra.
Esse facto foi revelado a
um dos irmãos, homem virtuoso e santo, numa visão que teve do céu.
Estava viajando com
Francisco, quando entraram numa igreja abandonada, onde oraram com todo fervor.
Este irmão teve então uma visão em que via uma multidão de tronos no céu, um
dos quais era radiante de glória e adornado de pedras preciosas e era o mais elevado
de todos. Estava maravilhado com tanto esplendor e perguntava-se a quem ele caberia.
Ouviu então uma voz que lhe dizia: “Esse trono pertenceu a um dos anjos caídos.
Agora está reservado ao humilde Francisco”.
Ao voltar a si do êxtase,
o irmão seguiu o santo que estava saindo da igreja. Retomaram o caminho e
continuaram conversando sobre Deus. O irmão recordou-se então da visão e discretamente
perguntou a Francisco o que achava de si mesmo.
Respondeu o humilde servo
de Cristo: “Reconheço que sou o maior pecador do mundo”.
Replicou-lhe o irmão que
ele não podia fazer semelhante afirmação em consciência tranquila, nem mesmo
pensar assim.
Francisco continuou: “Se
Cristo houvesse tratado ao maior celerado dos homens com a mesma misericórdia e
bondade com que me tem tratado, tenho certeza que ele seria muito mais
reconhecido a Deus do que eu”.
Ao ouvir palavras de tanta
humildade, o irmão teve a confirmação de que a sua visão era verdadeira,
sabendo perfeitamente que, segundo o santo Evangelho, o verdadeiro humilde será
exaltado ao trono de glória de que o soberbo é excluído.
7. Em outra ocasião,
enquanto orava numa igreja deserta da província de Massa, próxima a Monte
Casale, soube por inspiração divina que naquela igreja jaziam relíquias de
santos.
Penalizado por vê-las
assim tanto tempo abandonadas sem a veneração que lhes era devida, ordenou aos
irmãos que as levassem ao convento. Depois, chamado a outros compromissos, deixou
os irmãos, que esqueceram a ordem do Pai e perderam o mérito da obediência.
Um dia, porém, desejando
celebrar os sagrados mistérios, descobriram, para grande surpresa de todos, sob
as toalhas do altar, ossos belíssimos e de suave perfume.
Eram as relíquias
transportadas para lá não pelas mãos dos homens, mas pelo poder de Deus. Voltando
pouco depois, o homem de Deus perguntou-lhes se haviam executado as suas ordens
a respeito das relíquias. Os irmãos humildemente acusaram-se de haverem descuidado
obedecer e obtiveram o perdão depois de se penitenciarem. E disse-lhes o santo:
“Bendito seja o Senhor meu Deus que se dignou ele mesmo fazer o que vós
deveríeis ter feito!” Considerai a solicitude da divina Providência pela poeira
que somos todos nós e reconhecer a excelência da virtude do humilde Francisco na
presença de Deus, pois, não tendo os homens cumprido as ordens do santo, quis o
próprio Deus condescender benignamente aos seus desejos.
8. Certo dia Francisco
chegou a Ímola e dirigiu-se ao bispo local para lhe pedir humildemente
autorização de convocar o povo e pregar. Ao ouvir o bispo semelhante pedido,
respondeu-lhe com certa dureza: “Meu irmão, eu mesmo prego a meu povo e isto
basta!”
Francisco inclinou a
cabeça com toda humildade e saiu. No entanto, não havia passado ainda uma hora,
e lá estava ele de novo. O bispo ficou quase irritado e perguntou-lhe o que
vinha fazer de novo.
Então Francisco replicou respeitosamente
e sem o mínimo sinal de arrogância: “Senhor, quando um pai expulsa o filho por
uma porta, este deve encontrar uma outra para entrar”.
Vencido com tanta humildade,
o bispo, entusiasmado, abraçou-o e disse-lhe: “Doravante pregareis na minha
diocese, tu e teus companheiros; dou-vos permissão irrestrita, pois a tua santa
humildade bem a merece!”
9. Em outra ocasião chegou
Francisco a Arezzo e encontrou toda a cidade num grande tumulto provocado pelas
lutas de facções políticas à beira da destruição. Encontrou hospedagem numa
aldeia fora das muralhas da cidade e pôde ver os demónios que perturbavam os cidadãos
e os excitavam à mútua matança.
Resolvido a banir para longe
aquelas sediciosas forças infernais, enviou para diante de si, como núncio ou
embaixador, ao bem-aventurado irmão Silvestre, homem de columbina simplicidade,
dizendo: “Vai, meu filho, às portas da cidade e da parte de Deus omnipotente e
em virtude da santa obediência, ordena a esses demónios que saiam imediatamente”.
Obediente como era,
cumpriu imediatamente o que lhe mandava o santo. Aproximou-se das portas da cidade,
cantando um hino de louvor a Deus, e clamou em altos brados: “Em nome do Deus omnipotente
e por ordem de seu servo Francisco, ide-vos embora, todos vós, espíritos infernais!”
Logo a cidade ficou
pacificada e se tranquilizaram os seus moradores respeitando os mútuos
direitos. Assim, banida para longe dali a soberba furiosa dos demónios que
haviam cercado a cidade e sobrevindo a sabedoria de um pobrezinho, quer dizer,
a profunda humildade de Francisco, refez-se a paz ficando a cidade libertada,
pois com a extraordinária virtude de sua obediência Francisco merecera alcançar
sobre aqueles espíritos rebeldes e dispostos a tudo tal domínio, que pôde
reprimir suas diabólicas fúrias e pôr em fuga sua danosa violência.
10. Como acabamos de ver,
as excelentes virtudes dos humildes abatem o orgulho dos demónios.
No entanto, para resguardar
a sua humildade, permite Deus que recebam bofetadas, como atesta São Paulo de
si mesmo (cf. 2Cor 12,7) e como Francisco experimentou.
Convidado, certo dia, pelo
Senhor Cardeal Leão de Santa Cruz a permanecer com ele em Roma por algum tempo,
consentiu humildemente, pois respeitava e amava muito o cardeal.
Mas, ao anoitecer, Francisco,
depois de haver orado, preparava-se para dormir, quando surgiram demónios
furiosos que caíram sobre o soldado de Cristo, bateram nele e deixaram-no semimorto.
Chamando então seu companheiro,
o servo de Deus contou-lhe o que acabara de acontecer e concluiu: “Vês, irmão,
se os demónios que só possuem o poder que a Providência divina lhes concede se lançaram
sobre mim com tanta fúria, é porque a minha permanência na corte dos grandes é
um mau exemplo. Meus irmãos que moram em pequenos conventinhos, se souberem que
vivo em companhia de cardeais, poderiam acreditar que estou mergulhado nas
coisas mundanas, inebriado pelas honras e cumulado de bem-estar. Creio ser
melhor que aquele que tem por vocação dar o exemplo fuja dos palácios e more
humildemente em pobres conventos no meio dos humildes, a fim de lhes dar,
partilhando da sua situação, mais força para suportar a sua indigência”.
De manhã procuraram o
cardeal e com humildes escusas se despediram dele.
11. O homem de Deus
detestava a soberba, origem de todos os males, e a desobediência, filha da
soberba; mas estava sempre disposto a acolher toda atitude humilde de
penitência e arrependimento.
Certa vez,
apresentaram-lhe para o justo castigo, um irmão acusado de desobediência.
Por sinais que não o enganavam,
o homem de Deus percebeu que o irmão estava sinceramente arrependido e
imediatamente se dispôs ao perdão, tanto amava ele a humildade.
Todavia, para evitar que a
facilidade do perdão fosse para os outros um incentivo para faltarem, ordenou
que lhe tirassem o capuz e o lançassem às chamas. Cumpria mostrar a todos o
rigor que merecem as faltas à obediência.
Depois de algum tempo
mandou que retirassem do fogo o capuz para restituí-lo ao irmão, humilde e arrependido.
Retiraram então o capuz do meio do fogo. E que maravilha! O capuz não tinha o
menor sinal de queimadura! Deus assim demonstrava com um só milagre a virtude
do santo e a humildade do penitente.
A humildade de Francisco
merece pois ser imitada.
Ele conseguiu tal mérito
ainda neste mundo que fez o próprio Deus condescender com os seus desejos,
mudou os afectos do coração humano, reprimiu com o seu poder a presunçosa
malícia dos demónios e, com apenas um gesto de sua vontade, apagou a voracidade
das chamas. Esta virtude é, na verdade, a que, exaltando os homens, obriga ao
humilde a dar a todos o merecido respeito e faz, por outro lado, que todos o
honrem e glorifiquem.
São Boaventura
(cont)
(Revisão da versão portuguesa
por AMA)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.