25/10/2018

Leitura espiritual

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LEGENDA MAIOR
 
Vida de São Francisco de Assis

CAPITULO 6

6. Preferindo a pobreza para si e para os seus irmãos acima de qualquer honra deste mundo, Deus que ama os humildes julgou-o digno de maior honra.
Esse facto foi revelado a um dos irmãos, homem virtuoso e santo, numa visão que teve do céu.
Estava viajando com Francisco, quando entraram numa igreja abandonada, onde oraram com todo fervor. Este irmão teve então uma visão em que via uma multidão de tronos no céu, um dos quais era radiante de glória e adornado de pedras preciosas e era o mais elevado de todos. Estava maravilhado com tanto esplendor e perguntava-se a quem ele caberia. Ouviu então uma voz que lhe dizia: “Esse trono pertenceu a um dos anjos caídos. Agora está reservado ao humilde Francisco”.
Ao voltar a si do êxtase, o irmão seguiu o santo que estava saindo da igreja. Retomaram o caminho e continuaram conversando sobre Deus. O irmão recordou-se então da visão e discretamente perguntou a Francisco o que achava de si mesmo.
Respondeu o humilde servo de Cristo: “Reconheço que sou o maior pecador do mundo”.
Replicou-lhe o irmão que ele não podia fazer semelhante afirmação em consciência tranquila, nem mesmo pensar assim.
Francisco continuou: “Se Cristo houvesse tratado ao maior celerado dos homens com a mesma misericórdia e bondade com que me tem tratado, tenho certeza que ele seria muito mais reconhecido a Deus do que eu”.
Ao ouvir palavras de tanta humildade, o irmão teve a confirmação de que a sua visão era verdadeira, sabendo perfeitamente que, segundo o santo Evangelho, o verdadeiro humilde será exaltado ao trono de glória de que o soberbo é excluído.

7. Em outra ocasião, enquanto orava numa igreja deserta da província de Massa, próxima a Monte Casale, soube por inspiração divina que naquela igreja jaziam relíquias de santos.
Penalizado por vê-las assim tanto tempo abandonadas sem a veneração que lhes era devida, ordenou aos irmãos que as levassem ao convento. Depois, chamado a outros compromissos, deixou os irmãos, que esqueceram a ordem do Pai e perderam o mérito da obediência.
Um dia, porém, desejando celebrar os sagrados mistérios, descobriram, para grande surpresa de todos, sob as toalhas do altar, ossos belíssimos e de suave perfume.
Eram as relíquias transportadas para lá não pelas mãos dos homens, mas pelo poder de Deus. Voltando pouco depois, o homem de Deus perguntou-lhes se haviam executado as suas ordens a respeito das relíquias. Os irmãos humildemente acusaram-se de haverem descuidado obedecer e obtiveram o perdão depois de se penitenciarem. E disse-lhes o santo: “Bendito seja o Senhor meu Deus que se dignou ele mesmo fazer o que vós deveríeis ter feito!” Considerai a solicitude da divina Providência pela poeira que somos todos nós e reconhecer a excelência da virtude do humilde Francisco na presença de Deus, pois, não tendo os homens cumprido as ordens do santo, quis o próprio Deus condescender benignamente aos seus desejos.

8. Certo dia Francisco chegou a Ímola e dirigiu-se ao bispo local para lhe pedir humildemente autorização de convocar o povo e pregar. Ao ouvir o bispo semelhante pedido, respondeu-lhe com certa dureza: “Meu irmão, eu mesmo prego a meu povo e isto basta!”
Francisco inclinou a cabeça com toda humildade e saiu. No entanto, não havia passado ainda uma hora, e lá estava ele de novo. O bispo ficou quase irritado e perguntou-lhe o que vinha fazer de novo.
Então Francisco replicou respeitosamente e sem o mínimo sinal de arrogância: “Senhor, quando um pai expulsa o filho por uma porta, este deve encontrar uma outra para entrar”.
Vencido com tanta humildade, o bispo, entusiasmado, abraçou-o e disse-lhe: “Doravante pregareis na minha diocese, tu e teus companheiros; dou-vos permissão irrestrita, pois a tua santa humildade bem a merece!”

9. Em outra ocasião chegou Francisco a Arezzo e encontrou toda a cidade num grande tumulto provocado pelas lutas de facções políticas à beira da destruição. Encontrou hospedagem numa aldeia fora das muralhas da cidade e pôde ver os demónios que perturbavam os cidadãos e os excitavam à mútua matança.
Resolvido a banir para longe aquelas sediciosas forças infernais, enviou para diante de si, como núncio ou embaixador, ao bem-aventurado irmão Silvestre, homem de columbina simplicidade, dizendo: “Vai, meu filho, às portas da cidade e da parte de Deus omnipotente e em virtude da santa obediência, ordena a esses demónios que saiam imediatamente”.
Obediente como era, cumpriu imediatamente o que lhe mandava o santo. Aproximou-se das portas da cidade, cantando um hino de louvor a Deus, e clamou em altos brados: “Em nome do Deus omnipotente e por ordem de seu servo Francisco, ide-vos embora, todos vós, espíritos infernais!”
Logo a cidade ficou pacificada e se tranquilizaram os seus moradores respeitando os mútuos direitos. Assim, banida para longe dali a soberba furiosa dos demónios que haviam cercado a cidade e sobrevindo a sabedoria de um pobrezinho, quer dizer, a profunda humildade de Francisco, refez-se a paz ficando a cidade libertada, pois com a extraordinária virtude de sua obediência Francisco merecera alcançar sobre aqueles espíritos rebeldes e dispostos a tudo tal domínio, que pôde reprimir suas diabólicas fúrias e pôr em fuga sua danosa violência.

10. Como acabamos de ver, as excelentes virtudes dos humildes abatem o orgulho dos demónios.
No entanto, para resguardar a sua humildade, permite Deus que recebam bofetadas, como atesta São Paulo de si mesmo (cf. 2Cor 12,7) e como Francisco experimentou.
Convidado, certo dia, pelo Senhor Cardeal Leão de Santa Cruz a permanecer com ele em Roma por algum tempo, consentiu humildemente, pois respeitava e amava muito o cardeal.
Mas, ao anoitecer, Francisco, depois de haver orado, preparava-se para dormir, quando surgiram demónios furiosos que caíram sobre o soldado de Cristo, bateram nele e deixaram-no semimorto.
Chamando então seu companheiro, o servo de Deus contou-lhe o que acabara de acontecer e concluiu: “Vês, irmão, se os demónios que só possuem o poder que a Providência divina lhes concede se lançaram sobre mim com tanta fúria, é porque a minha permanência na corte dos grandes é um mau exemplo. Meus irmãos que moram em pequenos conventinhos, se souberem que vivo em companhia de cardeais, poderiam acreditar que estou mergulhado nas coisas mundanas, inebriado pelas honras e cumulado de bem-estar. Creio ser melhor que aquele que tem por vocação dar o exemplo fuja dos palácios e more humildemente em pobres conventos no meio dos humildes, a fim de lhes dar, partilhando da sua situação, mais força para suportar a sua indigência”.
De manhã procuraram o cardeal e com humildes escusas se despediram dele.

11. O homem de Deus detestava a soberba, origem de todos os males, e a desobediência, filha da soberba; mas estava sempre disposto a acolher toda atitude humilde de penitência e arrependimento.
Certa vez, apresentaram-lhe para o justo castigo, um irmão acusado de desobediência.
Por sinais que não o enganavam, o homem de Deus percebeu que o irmão estava sinceramente arrependido e imediatamente se dispôs ao perdão, tanto amava ele a humildade.
Todavia, para evitar que a facilidade do perdão fosse para os outros um incentivo para faltarem, ordenou que lhe tirassem o capuz e o lançassem às chamas. Cumpria mostrar a todos o rigor que merecem as faltas à obediência.
Depois de algum tempo mandou que retirassem do fogo o capuz para restituí-lo ao irmão, humilde e arrependido. Retiraram então o capuz do meio do fogo. E que maravilha! O capuz não tinha o menor sinal de queimadura! Deus assim demonstrava com um só milagre a virtude do santo e a humildade do penitente.
A humildade de Francisco merece pois ser imitada.
Ele conseguiu tal mérito ainda neste mundo que fez o próprio Deus condescender com os seus desejos, mudou os afectos do coração humano, reprimiu com o seu poder a presunçosa malícia dos demónios e, com apenas um gesto de sua vontade, apagou a voracidade das chamas. Esta virtude é, na verdade, a que, exaltando os homens, obriga ao humilde a dar a todos o merecido respeito e faz, por outro lado, que todos o honrem e glorifiquem.


São Boaventura

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por AMA)

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