LEGENDA MAIOR
(Vida de São Francisco de Assis)
CAPITULO
l
Conversão
definitiva e restauração de três igrejas
6. Chegou então a um
mosteiro próximo onde pediu uma esmola.
Recebeu-a, mas ninguém o
reconheceu nem lhe deu a mínima atenção. Em seguida dirigiu-se a Gúbio onde foi
reconhecido e hospedado por um dos seus antigos amigos de quem aceitou uma de
suas túnicas bem baratas, digna de um pobrezinho do Senhor.
Depois disso, no seu amor
à verdadeira humildade, dedicou-se aos leprosos vivendo com eles, a todos
servindo por amor a Deus.
Lavava-lhes os pés,
tratava-lhes as feridas, retirava-lhes os pedaços de carne podre, fazia parar o
pus; na sua extraordinária devoção, chegava mesmo a beijar-lhes as chagas
purulentas: começo já bem significativo para o médico que seria ele mais tarde!
Por isso Deus lhe outorgou
o poder de curar as doenças da alma e do corpo.
Entre muitas outras curas,
por exemplo, merece referido este facto que se passou um pouco mais tarde, numa
época em que o seu nome já era bem mais conhecido:
um homem do condado de
Espoleto tinha a boca e o maxilar corroídos
por uma doença horrível, diante da qual toda a medicina nada podia fazer.
De volta de uma
peregrinação ao túmulo dos Apóstolos aonde tinha ido pedir o socorro de Deus,
encontrou Francisco e, por devoção, quis beijar-lhe os pés.
Mas o humilde homem de
Deus não o permitiu e beijou na face, aquele que lhe queria beijar os pés.
Mal o servo dos leprosos,
admirável no seu amor, tocou com seus lábios santos aquela chaga horrível, a
doença desapareceu e o enfermo encontrou a saúde tanto tempo almejada.
Não sei o que mereça mais a
nossa admiração: a humildade capaz de um beijo tão caridoso ou o poder que se
patenteia num milagre tão espantoso.
Lançado pois este
fundamento sólido da humildade desejada por Cristo, Francisco lembrou-se da
ordem que recebera do Crucificado de restaurar a igreja de São Damião.
Como filho autêntico da
obediência, voltou a Assis para atender à vontade divina ou ao menos mendigar o
material necessário.
Por amor de Cristo pobre e
crucificado, ele vai pedindo esmola sem qualquer vergonha junto àqueles mesmos
que o haviam conhecido como grande senhor.
E apesar de fraco e
extenuado pelos jejuns, carregava nas costas pesados fardos de pedras.
Com a ajuda de Deus e a
cooperação do povo, conseguiu enfim chegar a termo com a restauração da igreja
de São Damião.
E para não ficar de braços
cruzados, encetou a reconstrução de outra igreja delicada a São Pedro, situada
a boa distância da cidade.
Na autenticidade e pureza
de sua fé, tinha Francisco grande devoção ao Príncipe dos Apóstolos.
8. Terminado esse
trabalho, chegou a um lugar chamado Porciúncula, onde existia uma velha igreja
dedicada à Virgem Mãe de Deus, abandonada e sem ninguém que dela cuidasse.
Francisco era grande
devoto de Maria Senhora do Mundo, e quando viu a igreja naquele desamparo,
começou a morar aí permanentemente a fim de poder restaurá-la.
Foi agraciado com a visita
frequente dos santos anjos (o que aliás não estranho, uma vez que a igreja se
chamava Santa Maria dos Anjos) e fixou-se neste local por causa de seu respeito
pelos anjos e do seu amor à Mãe de Cristo.
Sempre amou esse lugar
acima de qualquer outro no mundo, pois foi ai que ele principiou humildemente,
progrediu na virtude e atingiu a culminância da felicidade.
Foi esse lugar que ele
confiou aos irmãos ao morrer como particularmente caro à Santíssima Virgem.
Cabe aqui referir a visão
que teve um irmão a esse respeito antes de se converter.
Viu ele em volta dessa
igreja uma multidão incalculável de pobres cegos, de joelhos, braços erguidos e
semblantes voltados para o céu; com gritos e lágrimas, todos imploravam
misericórdia e a luz dos olhos.
E eis que uma luz
brilhante desceu do céu e os envolveu a todos restituindo-lhes a visão e a
saúde que almejavam.
Este é o lugar em que
Francisco fundou a Ordem dos Frades Menores por inspiração de Deus e foi a
divina Providência que o fez restaurar três igrejas antes de fundar a Ordem e
começar a pregar o Evangelho.
Isto significa que ele
progrediu desde as coisas materiais em direcção às realizações mais
espirituais, das coisas menores às maiores, na devida ordem, tudo sinal profético
daquilo que ele haveria de realizar mais tarde.
E analogamente aos três
edifícios que ele reconstruíra, a Igreja de Cristo se renovaria de três modos
diferentes sob a orientação de Francisco e segundo sua Regra e doutrina, e o
tríplice exército daqueles que devem ser salvos alcançaria vitória. Hoje
podemos verificar que essa profecia se cumpriu.
CAPÍTULO 3
Fundação da Ordem e aprovação da Regra
1. Francisco permaneceu
ainda algum tempo na igreja da Virgem Mãe de Deus, suplicando-lhe em instantes
e contínuas preces que se tornasse sua advogada.
E pelos méritos da Mãe de
misericórdia e junto daquela que concebera o Verbo cheio de graça e de verdade,
ele também concebeu e deu à luz o espírito da verdade evangélica.
E foi assim que sucedeu:
Assistia ele à missa dos
Apóstolos devotamente; o Evangelho falava da missão dos discípulos que Cristo
envia a pregar ensinando-lhes a maneira evangélica de viver: não levar ouro nem
prata, nem dinheiro no cinto, nem sacola para o caminho, nem duas túnicas, nem
sapatos, nem bastão.
Compreendeu imediatamente
o sentido da passagem e, no seu amor pela pobreza apostólica, reteve essas
palavras firmemente na memória e- cheio de indizível alegria, exclamou:
“É isso o que desejo ardentemente;
é a isso que aspiro com todas as veras da alma”.
E sem mais delongas,
arroja para longe os sapatos, abandona o bastão que levava, despreza bolsa e
dinheiro e contente com vestir uma pobre túnica, se desfaz do cinto em que pendia
a espada, cinge-se com uma corda áspera e nodosa, repele do coração toda a preocupação
terrena e já não pensa em nada mais senão na maneira como haveria de pôr em
execução aquela celestial doutrina para se conformar perfeitamente ao género de
vida observado pelos apóstolos.
2. Movido assim pelo
Espírito de Deus, começou Francisco a desejar vivamente a prática da perfeição
evangélica e a convidar os outros a que abraçassem os salutares rigores da
penitência.
E as palavras que para
esse fim lhes dirigia não eram vãs nem ridículas, mas cheias de virtude
celeste, e penetravam até o íntimo do coração, suscitando admirável compunção dos
ouvintes.
Em todas as pregações
anunciava a paz, saudando o povo no início dos sermões com estas palavras: “O Senhor
vos dê a paz”. Porque, como ele atestou mais tarde, o Senhor mesmo lhe revelou
esta forma de saudação.
Poderíamos dizer, aplicando
a palavra do verso de Isaías: “Anunciou a paz, pregou a salvação e. por suas
oportunas intervenções, reconciliou com a verdadeira paz aqueles que, longe de
Cristo, estavam longe da salvação” (Is 52,7).
3. Dessa forma, muitos
começaram a reconhecer a verdade da doutrina que o homem de Deus com
simplicidade pregava e de sua vida.
Alguns sentiram-se
impulsionados à penitência pelo seu exemplo e a associar-se a ele vestindo o
mesmo hábito, levando a mesma vida e abandonando suas posses.
O primeiro deles foi o
venerável Bernardo que, feito participante da vocação divina, mereceu ser o
primogénito do santo Pai Francisco, primeiro no tempo e primeiro na santidade.
Depois de verificar
pessoalmente a santidade do servo de Cristo, Bernardo decidiu seguir o seu
exemplo, abandonando completamente o mundo.
Por fim o procurou para
saber como realizar seu propósito.
Ao ouvi-lo, o servo de
Deus sentiu um grande conforto espiritual, porque havia concebido seu primeiro
filho, e exclamou:
“É a Deus que devemos
pedir conselho”.
No dia seguinte de manhã,
foram à igreja de São Nicolau, e depois de orar, Francisco, devoto adorador da
Santíssima Trindade, por três vezes abriu o Evangelho, pedindo a Deus que por
três vezes confirmasse o propósito de Bernardo.
À primeira abertura do
livro dos Evangelhos, encontraram a passagem que diz: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuis e dá-o aos pobres”
(Mt 19,21). A segunda: “Nada
leveis pelo caminho” (Lc 9,3). A terceira: “Quem quiser vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome sua cruz e
siga-me” (Mt 16,24).
“Esta é nossa vida e nossa
regra - disse Francisco - e de todos aqueles que quiserem unir-se à nossa
companhia.
Se quiseres ser perfeito,
vai, e põe em prática o que acabaste de ouvir”.
São Boaventura
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
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