15/10/2018

Leitura espiritual

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LEGENDA MAIOR

(Vida de São Francisco de Assis)


CAPITULO l

A sua vida no mundo

1. Vivia na cidade de Assis um homem chamado Francisco, de abençoada memória, a quem Deus na sua bondade e misericórdia antecipara a abundância da sua graça, salvando-o dos perigos da vida presente e derramando sobre ele os dons da sua graça celestial. Na sua juventude, viveu Francisco no meio dos filhos deste mundo e como eles foi educado.
Depois de aprender a ler e a escrever, recebeu um emprego rendoso no comércio. Mas, com o auxílio divino, jamais se deixou levar pelo ardor das paixões que dominavam os jovens da sua companhia. Embora fosse inclinado à vida dissipada, nunca cedeu à tentação.
Vivia num ambiente marcado pela cobiça desenfreada dos comerciantes, mas ele mesmo, embora gostasse de obter os seus lucros, jamais se prendeu desesperadamente ao dinheiro e às riquezas.

O Senhor incutia no seu coração um sentimento de piedade que o tornava generoso com os pobres. Este sentimento foi crescendo no seu coração e impregnou-o de tanta bondade que ele decidiu, como ouvinte atento que era do Evangelho, ser generoso com quem lhe pedisse esmola, sobretudo a quem pedisse por amor de Deus. No entanto, um dia, estando muito ocupado em negócios, despediu de mãos vazias, um pobre que lhe pedia uma esmola por amor de Deus. Caindo em si, correu atrás do homem, deu-lhe uma rica esmola e prometeu ao Senhor nunca mais recusar, sendo-lhe possível, o que quer que lhe pedissem por amor de Deus.
Observou esse propósito até a morte com uma caridade incansável e que lhe granjeou sempre mais a graça e o amor de Deus.
Mais tarde, já como perfeito imitador de Cristo, dizia que durante sua vida mundana ele não podia ouvir estas palavras: “amor de Deus” sem ficar comovido.

Mansidão, gentileza, paciência, afabilidade mais que humana, liberalidade que ultrapassava os seus recursos eram sinais de sua natureza privilegiada que anunciavam já uma efusão mais abundante ainda da graça divina nele.
De facto um cidadão de Assis, homem simples do povo, que parecia inspirado por Deus, tirou o manto ao encontrar Francisco em Assis e estendeu-o sob os pés do jovem afirmando que um dia ele seria digno do maior respeito, que em breve realizaria grandes feitos e mereceria dessa forma a veneração de todos os fiéis.

2. Por essa época, Francisco ainda ignorava os planos de Deus a seu respeito, pois não havia aprendido a contemplação das coisas do alto, levado que era sempre em direcção às coisas externas por ordem de seu pai, nem havia adquirido ainda o gosto pelas coisas de Deus, atraído para as coisas inferiores pela corrupção que todos nós temos desde o berço.
Mas “o sofrimento permite a uma alma compreender muitas coisas; a mão do Senhor pesou sobre ele, e a direita do Altíssimo o transformou” (Is 28,19; Ez 1,3; Sl 76,11), sujeitando-lhe o corpo a uma longa enfermidade para preparar sua alma a receber o Espírito Santo.
Havendo recuperado as suas energias, já se vestia de novo com elegância.
Certo dia encontrou um cavaleiro, nobre de nascimento mas pobre e mal vestido; ficou com pena daquele homem, desfez-se imediatamente das suas vestes e deu-lhas, poupando assim, num duplo gesto de caridade, ao cavaleiro a vergonha e ao pobre a miséria.

3. Naquela noite, enquanto dormia, Deus na sua bondade mostrou-lhe em visão magnífica um grande palácio de armas que levavam a cruz de Cristo marcada nos brasões.
Mostrava-lhe assim que a gentileza que ele praticara com o pobre cavaleiro por amor ao Grande Rei seria recompensada de modo incomparável. Perguntou Francisco para quem era tudo aquilo. E uma voz do céu respondeu-lhe: “Para ti e os teus soldados”.
Ainda não tinha experiência em interpretar os divinos mistérios e ignorava a arte de ir além das aparências visíveis até as realidades invisíveis. Por isso estava convencido, ao acordar, que essa estranha visão lhe garantia um imenso sucesso para o futuro.
Entregue a essa ilusão, decide alistar-se no exército de um conde, grande senhor da Apúlia, na esperança de conquistar, sob as suas ordens, essa glória militar que lhe prometia aquela visão.
Põe-se a caminho e chega à cidade seguinte.
Durante a noite ouve o Senhor dizer-lhe em tom familiar: “Francisco, quem pode fazer mais por ti: o senhor ou o servo, o rico ou o pobre?” Francisco responde que é o senhor e o rico, evidentemente.

E o Senhor responde-lhe: “Por que então deixas o Senhor para te dedicares ao servo? Por que escolhes um pobre em vez de Deus que é infinitamente rico?”
“Senhor, responde Francisco, que quereis que eu faça?”
E Deus disse-lhe: “Volta para tua terra, pois a visão que tiveste prefigura um acontecimento totalmente espiritual que se realizará não da maneira como o homem propõe, mas assim como Deus dispõe”.
De manhã, Francisco tratou de voltar para Assis.
Estava sobremodo alegre e o futuro não lhe dava preocupação; era já um modelo de obediência e aguardou a vontade de Deus.

4. Desde esse instante afastou-se da vida agitada dos seus negócios e rogou à divina misericórdia que o iluminasse a respeito de sua vocação.
Perseverando na oração, chegou a um desejo do céu tão intenso e a um desprezo tão grande das coisas da terra por amor à pátria celeste, que começou a sentir o valor da descoberta que fizera do tesouro escondido e como um comerciante prudente, pensava em liquidar todos os seus bens para comprar a pedra preciosa.
Como fazer, ele ainda não sabia. Tinha apenas esta certeza, pelas luzes recebidas: que o intercâmbio espiritual começa pelo desprezo do mundo e que para alguém ser soldado de Cristo é preciso já ter conseguido a vitória sobre si mesmo.

5. Certo dia, andando a cavalo na planície que se estende junto de Assis, encontrou um leproso.
Foi um encontro inesperado e Francisco ficou muito horrorizado diante daquele triste quadro. Mas lembrou-se do propósito de perfeição que abraçara e da necessidade de vencer-se a si mesmo primeiro, se quisesse ser cavaleiro de Cristo.

Imediatamente desceu do cavalo e correu a beijar o pobre homem.
O leproso estendeu a mão para receber uma esmola.
Francisco deu-lhe um dinheiro e um beijo. Montou novamente a cavalo, olhou em frente e em toda a volta, e, nada havendo que lhe impedisse a vista, todavia não viu mais o leproso.
Cheio de admiração e alegria, começou a cantar os louvores do Senhor e prometeu fazer coisas melhores ainda no futuro.

A partir desse momento, frequentava os lugares solitários, propícios às lágrimas, aos gemidos inefáveis, de tal forma que suas instantes preces foram ouvidas pelo Senhor.

Um dia, ao rezar assim na solidão e totalmente absorto em Deus, apareceu-lhe Cristo crucificado.
Diante dessa visão, “derreteu-se-lhe a alma” (Ct 5,6) e a recordação da paixão de Cristo gravou-se-lhe tão profundamente no coração, que a partir desse instante dificilmente podia conter o pranto e deixar de suspirar quando pensava no Crucificado.

Ele mesmo confessou esse facto pouco antes de morrer. Logo compreendeu que se dirigiam a ele aquelas palavras do Evangelho: “Quem quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me(Mt 16,24).

6. Imbuiu-se desde então do espírito de pobreza, com um profundo sentimento de humildade e uma atitude de profunda compaixão.
Jamais suportara a vista dos leprosos, mesmo à distância, e sempre evitara encontrar-se com eles, mas agora, desejando alcançar o total desprezo de si mesmo, servia-os com devoção, humildade e benevolência, pois diz o profeta Isaías que Cristo crucificado foi considerado um homem leproso e desprezado. Visitava constantemente as suas casas e distribuía entre eles, esmolas generosas, beijando-lhes as mãos e os lábios com profunda compaixão.

Ao aproximar-se dos pobres, não se contentava em lhes dar o que possuía.
Desejava dar-se a si mesmo e quando já não tinha mais dinheiro, entregava as suas vestes, descosendo-as ou rasgando-as às vezes para as distribuir.
Aos sacerdotes pobres, que ele respeitava e venerava, ajudava-os oferecendo-lhes sobretudo paramentos para o altar: queria assim ter a sua parte no culto divino e aliviar a miséria aos ministros do altar.

Por essa época realizou uma peregrinação ao túmulo de São Pedro.
Ao reparar o grande número de mendigos reunidos em frente da igreja, levado de compaixão e seduzido pelo amor à pobreza, escolheu um dos mais miseráveis, propôs trocar com ele as roupas, vestindo os farrapos do pobre.
Passou todo o dia na companhia dos pobres, cheio de uma alegria que ele ainda não experimentara.
Queria assim desprezar aquelas coisas às quais o mundo empresta tanto valor e chegar progressivamente à perfeição evangélica. Também cuidava de trazer no seu corpo, pela mortificação da carne, a cruz de Cristo que já levava no seu coração.

Tudo isso se deu quando Francisco ainda vivia e se vestia como um leigo no mundo.

São Boaventura

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)

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