São Josemaria Escrivá
Cristo que passa 183 a 185
183
Cristo no cume das
actividades humanas
Isto é realizável, não é
um sonho inútil.
Se nós, homens, nos
decidíssemos a albergar nos nossos corações o amor de Deus!
Cristo, Senhor Nosso, foi
crucificado e, do alto da Cruz, redimiu o mundo, restabelecendo a paz entre
Deus e os homens. Jesus Cristo lembra a todos: et ego, si exaltatus fuero a
terra, omnia traham ad meipsum, se vós Me puserdes no cume de todas as actividades
da Terra, cumprindo o dever de cada momento, sendo meu testemunho naquilo que
parece grande e naquilo que parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo
atrairei a Mim.
O meu reino entre vós será
uma realidade!
Cristo, Nosso Senhor,
continua empenhado nesta sementeira de salvação dos homens e de toda a Criação,
deste nosso mundo, que é bom, porque saiu bom das mãos de Deus.
Foi a ofensa de Adão, o
pecado do orgulho humano, que quebrou a harmonia divina da criação.
Mas Deus Pai, quando,
chegou a plenitude dos tempos, enviou o seu Filho Unigénito, que por obra do
Espírito Santo encarnou em Maria sempre Virgem, para restabelecer a paz; para
que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus fôssemos
constituídos filhos de Deus, capazes de participar na intimidade divina, e
assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova estirpe dos filhos de Deus
a libertação de todo o universo da desordem, restaurando todas as coisas em
Cristo, que as reconciliou com Deus.
A isto fomos chamados,
nós, os cristãos; esta é a nossa tarefa apostólica e a ânsia que nos deve
queimar a alma: conseguir que seja realidade o reino de Cristo, que não haja
mais ódios nem mais crueldades, que difundamos na Terra o bálsamo forte e
pacífico do amor. Peçamos hoje ao nosso Rei que nos faça colaborar humilde e
fervorosamente no divino propósito de unir o que está quebrado, de salvar o que
está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de levar ao seu fim aquilo
que se desencaminha, de reconstruir a concórdia de tudo o que foi criado.
Abraçar a fé cristã é
comprometer-se a continuar entre as criaturas a missão de Jesus.
Temos de ser, cada um de
nós, altar Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
Só assim poderemos
realizar esse empreendimento grande, imenso, interminável: santificar a partir
de dentro todas as estruturas temporais, levando até elas o fermento da
Redenção.
Nunca falo de política.
Não penso na tarefa dos
cristãos na terra como o nascer duma corrente político-religiosa - seria uma
loucura - nem mesmo com o bom propósito de difundir o espírito de Cristo em
todas as actividades dos homens.
O que é preciso pôr em
Deus é o coração de cada um, seja ele quem for.
Procuremos falar a todos
os cristãos, para que no lugar onde estiverem - em circunstâncias que não
dependem apenas da sua posição na Igreja ou na vida civil, mas do resultado das
mutáveis situações históricas - saibam dar testemunho, com o exemplo e com a
palavra, da fé que professam.
O cristão vive no mundo
com pleno direito, por ser homem.
Se aceita que no seu
coração habite Cristo, que reine Cristo, em todo o seu trabalho humano
encontrará - bem forte - a eficácia Senhor.
Não tem qualquer
importância que essa ocupação seja, como costuma dizer-se, alta ou baixa,
porque um máximo humano pode ser, aos olhos de Deus, uma baixeza, e o que
chamamos baixo ou modesto pode ser um máximo cristão de santidade e de serviço.
184
A liberdade pessoal
O cristão, quando
trabalha, como é sua obrigação, não deve marginar nem iludir as exigências
próprias do que é natural.
Se com a expressão
abençoar as actividades humanas se entendesse anular ou escamotear a sua
dinâmica própria, negar-me-ia a usar essas palavras.
Pessoalmente, nunca me
consegui convencer que as actividades correntes dos homens precisassem de
ostentar, como um letreiro postiço, um qualificativo confessional, porque me
parece, embora respeite a opinião contrária, que se corre o perigo de usar em
vão o santo nome da nossa fé e, além disso, porque em certas ocasiões, a etiqueta
católica se utilizou até para justificar atitudes e actuações que não são às
vezes sequer honradamente humanas.
Se o mundo e tudo o que
nele há - menos o pecado - é bom, porque é obra de Deus Nosso Senhor, o
cristão, lutando continuamente por evitar as ofensas a Deus - uma luta positiva
de amor - há-de dedicar-se a tudo aquilo que é terreno, ombro a ombro com os
outros cidadãos, e tem obrigação de defender todos os bens derivados da
dignidade da pessoa.
Existe um bem que deverá
sempre procurar dum modo especial - o da liberdade pessoal.
Só se defende a liberdade
individual dos outros com a correspondente responsabilidade pessoal, poderá,
com honradez humana e cristã, defender da mesma maneira a sua.
Repito e repetirei sem
cessar que o Senhor nos deu gratuitamente uma grande dádiva sobrenatural, a
graça divina, e outra maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que exige
de nós - para que não se corrompa, convertendo-se em libertinagem -
integridade, empenho sério por desenvolver a nossa conduta dentro da lei
divina, porque onde está o Espírito de Deus, aí há liberdade.
O Reino de Cristo é de
liberdade: nele não existem outros servos além daqueles que livremente se
deixaram prender por Amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que nos faz
livres!
Sem liberdade, não podemos
corresponder à graça; sem liberdade, não podemos entregar-nos livremente ao
Senhor pela razão mais sobrenatural: porque nos apetece.
Alguns daqueles que me
escutam já me conhecem há muitos anos. Podeis testemunhar que durante toda a
minha vida preguei a liberdade pessoal, com pessoal responsabilidade.
Procurei-a e procuro-a,
por toda a terra, como Diógenes procurava um homem.
E amo-a cada vez mais,
amo-a sobre todas as coisas terrenas: é um tesoiro que nunca saberemos apreciar
suficientemente.
Quando falo de liberdade
pessoal, não me refiro com esta desculpa a outros problemas talvez muito
legítimos, que não correspondem ao meu ofício de sacerdote.
Sei que não me corresponde
tratar de temas seculares e transitórios, que pertencem à esfera do temporal e
civil, matérias que o Senhor deixou à livre e serena controvérsia dos homens.
Sei também que os lábios
do sacerdote, evitando a todo o transe parcialidades humanas, hão-de abrir-se
apenas para conduzir as almas a Deus, à sua doutrina espiritual salvadora, aos
sacramentos que Jesus Cristo instituiu, à vida interior que nos aproxima do
Senhor por nos sabermos seus filhos e, portanto, irmãos de todos os homens sem
excepção.
Celebramos hoje a festa de
Cristo Rei.
E não saio do meu ofício
de sacerdote quando digo que, se alguma pessoa entendesse o reino de Cristo
como um programa político, não teria aprofundado como devia na finalidade da Fé
e estaria a um passo de sobrecarregar as consciências com pesos que não são os
de Jesus porque o seu jugo é suave e o seu peso é leve.
Amemos de verdade todos os
homens, amemos a Cristo acima de tudo e então não teremos outro remédio senão
amar a legítima liberdade dos outros, numa pacífica e justa convivência.
185
Serenos, filhos de Deus
Talvez me façais a
seguinte sugestão: mas poucos querem ouvir isto e, menos ainda, pô-lo em
prática.
Consta-me que a liberdade
é uma planta forte e sã, que se aclimata mal entre as pedras, espinhos ou nos
caminhos calcados pelas pessoas. Isto já nos tinha sido anunciado, mesmo antes
de Cristo vir à terra.
Recordai o Salmo número
dois: porque razão se amotinam as nações e os povos maquinam planos vãos?
Os reis da terra
sublevam-se e os príncipes coligam-se contra o Senhor e contra o seu Messias.
Vedes?
Nada de novo.
Opunham-se a Cristo antes
de que este nascesse; opuseram-se-lhe enquanto os seus pés pacíficos percorriam
os caminhos da Palestina; perseguiram-nO depois e agora, atacando os membros do
seu Corpo Místico e real.
Porquê tanto ódio, porquê
este encarniçar-se contra a cândida simplicidade, porquê este universal
esmagamento da liberdade de cada consciência?
Quebremos as suas cadeias,
e sacudamos de nós o seu jugo.
Quebram o jugo suave,
lançam fora a sua carga, maravilhosa carga de santidade e de justiça, de graça,
de amor e de paz.
Enfurecem-se perante o
amor, riem-se da bondade inerme dum Deus que renuncia ao uso das suas legiões
de anjos para se defender.
Se o Senhor admitisse um
arranjo, se sacrificasse uns poucos de inocentes para satisfazer a maioria de
culpados, ainda poderiam tentar algum entendimento com Ele.
Mas não é esta a lógica de
Deus.
O nosso Pai é
verdadeiramente pai, e está disposto a perdoar a inumeráveis fautores do mal,
contanto que haja só dez justos.
Os que se movem pelo ódio,
não podem entender esta misericórdia, e afincam-se na sua aparente impunidade
terrena, alimentando-se da injustiça.
Aquele que habita nos céus
ri-se, o Senhor zomba eles.
Ele lhes fala então na sua
ira, e os aterroriza no seu furor. Que legítima é a ira de Deus e que justo o
seu furor!
E que grande também a sua
clemência!
Eu, porém, fui por Ele
constituído Rei sobre Sião, seu monte santo, para anunciar os seus preceitos.
O Senhor disse-me: Tu és
meu filho, eu gerei-te hoje.
A misericórdia de Deus Pai
deu-nos como Rei o seu Filho. Quando ameaça, enternece-Se; anuncia a sua ira e
entrega-nos o seu amor. Tu és meu filho: dirige-se a Cristo e dirige-se a ti e
a mim, se nos decidimos a ser alter Christus, ipse Christus.
As palavras não podem
seguir o coração, que se emociona diante da bondade de Deus: tu és meu filho.
Não um estranho, não um
servo benevolamente tratado, não um amigo, que já seria muito.
Filho!
Concede-nos via livre para
que vivamos com Ele a piedade do filho e, atrever-me-ia a afirmar, também a
desvergonha do filho dum Pai que é incapaz de lhe negar o que quer que seja.
(cont)
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