13/10/2018

Leitura espiritual


São Josemaria Escrivá

Cristo que passa 183 a 185

183
        
Cristo no cume das actividades humanas

Isto é realizável, não é um sonho inútil.
Se nós, homens, nos decidíssemos a albergar nos nossos corações o amor de Deus!
Cristo, Senhor Nosso, foi crucificado e, do alto da Cruz, redimiu o mundo, restabelecendo a paz entre Deus e os homens. Jesus Cristo lembra a todos: et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum, se vós Me puserdes no cume de todas as actividades da Terra, cumprindo o dever de cada momento, sendo meu testemunho naquilo que parece grande e naquilo que parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a Mim.
O meu reino entre vós será uma realidade!

Cristo, Nosso Senhor, continua empenhado nesta sementeira de salvação dos homens e de toda a Criação, deste nosso mundo, que é bom, porque saiu bom das mãos de Deus.
Foi a ofensa de Adão, o pecado do orgulho humano, que quebrou a harmonia divina da criação.

Mas Deus Pai, quando, chegou a plenitude dos tempos, enviou o seu Filho Unigénito, que por obra do Espírito Santo encarnou em Maria sempre Virgem, para restabelecer a paz; para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus fôssemos constituídos filhos de Deus, capazes de participar na intimidade divina, e assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova estirpe dos filhos de Deus a libertação de todo o universo da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo, que as reconciliou com Deus.

A isto fomos chamados, nós, os cristãos; esta é a nossa tarefa apostólica e a ânsia que nos deve queimar a alma: conseguir que seja realidade o reino de Cristo, que não haja mais ódios nem mais crueldades, que difundamos na Terra o bálsamo forte e pacífico do amor. Peçamos hoje ao nosso Rei que nos faça colaborar humilde e fervorosamente no divino propósito de unir o que está quebrado, de salvar o que está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de levar ao seu fim aquilo que se desencaminha, de reconstruir a concórdia de tudo o que foi criado.

Abraçar a fé cristã é comprometer-se a continuar entre as criaturas a missão de Jesus.
Temos de ser, cada um de nós, altar Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
Só assim poderemos realizar esse empreendimento grande, imenso, interminável: santificar a partir de dentro todas as estruturas temporais, levando até elas o fermento da Redenção.

Nunca falo de política.
Não penso na tarefa dos cristãos na terra como o nascer duma corrente político-religiosa - seria uma loucura - nem mesmo com o bom propósito de difundir o espírito de Cristo em todas as actividades dos homens.
O que é preciso pôr em Deus é o coração de cada um, seja ele quem for.
Procuremos falar a todos os cristãos, para que no lugar onde estiverem - em circunstâncias que não dependem apenas da sua posição na Igreja ou na vida civil, mas do resultado das mutáveis situações históricas - saibam dar testemunho, com o exemplo e com a palavra, da fé que professam.

O cristão vive no mundo com pleno direito, por ser homem.
Se aceita que no seu coração habite Cristo, que reine Cristo, em todo o seu trabalho humano encontrará - bem forte - a eficácia Senhor.
Não tem qualquer importância que essa ocupação seja, como costuma dizer-se, alta ou baixa, porque um máximo humano pode ser, aos olhos de Deus, uma baixeza, e o que chamamos baixo ou modesto pode ser um máximo cristão de santidade e de serviço.

184
         
A liberdade pessoal

O cristão, quando trabalha, como é sua obrigação, não deve marginar nem iludir as exigências próprias do que é natural.
Se com a expressão abençoar as actividades humanas se entendesse anular ou escamotear a sua dinâmica própria, negar-me-ia a usar essas palavras.
Pessoalmente, nunca me consegui convencer que as actividades correntes dos homens precisassem de ostentar, como um letreiro postiço, um qualificativo confessional, porque me parece, embora respeite a opinião contrária, que se corre o perigo de usar em vão o santo nome da nossa fé e, além disso, porque em certas ocasiões, a etiqueta católica se utilizou até para justificar atitudes e actuações que não são às vezes sequer honradamente humanas.

Se o mundo e tudo o que nele há - menos o pecado - é bom, porque é obra de Deus Nosso Senhor, o cristão, lutando continuamente por evitar as ofensas a Deus - uma luta positiva de amor - há-de dedicar-se a tudo aquilo que é terreno, ombro a ombro com os outros cidadãos, e tem obrigação de defender todos os bens derivados da dignidade da pessoa.

Existe um bem que deverá sempre procurar dum modo especial - o da liberdade pessoal.
Só se defende a liberdade individual dos outros com a correspondente responsabilidade pessoal, poderá, com honradez humana e cristã, defender da mesma maneira a sua.
Repito e repetirei sem cessar que o Senhor nos deu gratuitamente uma grande dádiva sobrenatural, a graça divina, e outra maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que exige de nós - para que não se corrompa, convertendo-se em libertinagem - integridade, empenho sério por desenvolver a nossa conduta dentro da lei divina, porque onde está o Espírito de Deus, aí há liberdade.

O Reino de Cristo é de liberdade: nele não existem outros servos além daqueles que livremente se deixaram prender por Amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que nos faz livres!
Sem liberdade, não podemos corresponder à graça; sem liberdade, não podemos entregar-nos livremente ao Senhor pela razão mais sobrenatural: porque nos apetece.

Alguns daqueles que me escutam já me conhecem há muitos anos. Podeis testemunhar que durante toda a minha vida preguei a liberdade pessoal, com pessoal responsabilidade.
Procurei-a e procuro-a, por toda a terra, como Diógenes procurava um homem.
E amo-a cada vez mais, amo-a sobre todas as coisas terrenas: é um tesoiro que nunca saberemos apreciar suficientemente.

Quando falo de liberdade pessoal, não me refiro com esta desculpa a outros problemas talvez muito legítimos, que não correspondem ao meu ofício de sacerdote.
Sei que não me corresponde tratar de temas seculares e transitórios, que pertencem à esfera do temporal e civil, matérias que o Senhor deixou à livre e serena controvérsia dos homens.
Sei também que os lábios do sacerdote, evitando a todo o transe parcialidades humanas, hão-de abrir-se apenas para conduzir as almas a Deus, à sua doutrina espiritual salvadora, aos sacramentos que Jesus Cristo instituiu, à vida interior que nos aproxima do Senhor por nos sabermos seus filhos e, portanto, irmãos de todos os homens sem excepção.

Celebramos hoje a festa de Cristo Rei.
E não saio do meu ofício de sacerdote quando digo que, se alguma pessoa entendesse o reino de Cristo como um programa político, não teria aprofundado como devia na finalidade da Fé e estaria a um passo de sobrecarregar as consciências com pesos que não são os de Jesus porque o seu jugo é suave e o seu peso é leve.
Amemos de verdade todos os homens, amemos a Cristo acima de tudo e então não teremos outro remédio senão amar a legítima liberdade dos outros, numa pacífica e justa convivência.

185
         
Serenos, filhos de Deus

Talvez me façais a seguinte sugestão: mas poucos querem ouvir isto e, menos ainda, pô-lo em prática.
Consta-me que a liberdade é uma planta forte e sã, que se aclimata mal entre as pedras, espinhos ou nos caminhos calcados pelas pessoas. Isto já nos tinha sido anunciado, mesmo antes de Cristo vir à terra.

Recordai o Salmo número dois: porque razão se amotinam as nações e os povos maquinam planos vãos?
Os reis da terra sublevam-se e os príncipes coligam-se contra o Senhor e contra o seu Messias.
Vedes?
Nada de novo.
Opunham-se a Cristo antes de que este nascesse; opuseram-se-lhe enquanto os seus pés pacíficos percorriam os caminhos da Palestina; perseguiram-nO depois e agora, atacando os membros do seu Corpo Místico e real.
Porquê tanto ódio, porquê este encarniçar-se contra a cândida simplicidade, porquê este universal esmagamento da liberdade de cada consciência?

Quebremos as suas cadeias, e sacudamos de nós o seu jugo.
Quebram o jugo suave, lançam fora a sua carga, maravilhosa carga de santidade e de justiça, de graça, de amor e de paz.
Enfurecem-se perante o amor, riem-se da bondade inerme dum Deus que renuncia ao uso das suas legiões de anjos para se defender.
Se o Senhor admitisse um arranjo, se sacrificasse uns poucos de inocentes para satisfazer a maioria de culpados, ainda poderiam tentar algum entendimento com Ele.
Mas não é esta a lógica de Deus.
O nosso Pai é verdadeiramente pai, e está disposto a perdoar a inumeráveis fautores do mal, contanto que haja só dez justos.
Os que se movem pelo ódio, não podem entender esta misericórdia, e afincam-se na sua aparente impunidade terrena, alimentando-se da injustiça.

Aquele que habita nos céus ri-se, o Senhor zomba eles.
Ele lhes fala então na sua ira, e os aterroriza no seu furor. Que legítima é a ira de Deus e que justo o seu furor!
E que grande também a sua clemência!

Eu, porém, fui por Ele constituído Rei sobre Sião, seu monte santo, para anunciar os seus preceitos.
O Senhor disse-me: Tu és meu filho, eu gerei-te hoje.
A misericórdia de Deus Pai deu-nos como Rei o seu Filho. Quando ameaça, enternece-Se; anuncia a sua ira e entrega-nos o seu amor. Tu és meu filho: dirige-se a Cristo e dirige-se a ti e a mim, se nos decidimos a ser alter Christus, ipse Christus.

As palavras não podem seguir o coração, que se emociona diante da bondade de Deus: tu és meu filho.
Não um estranho, não um servo benevolamente tratado, não um amigo, que já seria muito.
Filho!
Concede-nos via livre para que vivamos com Ele a piedade do filho e, atrever-me-ia a afirmar, também a desvergonha do filho dum Pai que é incapaz de lhe negar o que quer que seja.

(cont)


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