São Josemaria Escrivá
Cristo que passa 82 a 85
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Hoje e ontem
A liturgia do Domingo de
Ramos põe na boca dos cristãos este cântico: levantai, portas, os vossos
dintéis; levantai-vos, portas antigas, para que entre o Rei da glória.
Quem fica recluso na
cidadela do seu egoísmo não descerá ao campo de batalha.
Contudo, se levantar as
portas da fortaleza e permitir que entre o Rei da Paz, sairá com ele a combater
contra toda essa miséria que embacia os olhos e insensibiliza a consciência.
Levantai as portas
antigas.
Esta exigência de combate
não é nova no Cristianismo.
É a verdade perene.
Sem luta, não se consegue
a vitória; sem vitória não se alcança a paz.
Sem paz, a alegria humana
será só uma alegria aparente, falsa, estéril, que não se traduz na ajuda aos
homens, nem em obras de caridade e de justiça, de perdão e de misericórdia, nem
em serviço de Deus.
Agora, dentro e fora da
Igreja, em cima e em baixo, dá a impressão de que muitos renunciaram à luta - à
guerra pessoal contra as suas próprias claudicações -, para se entregarem com
armas e bagagens às servidões que envelhecem a alma.
Esse perigo rondará sempre
em tomo de todos os cristãos.
Por isso, é preciso pedir
incessantemente à Santíssima Trindade que tenha compaixão de todos.
Ao falar destas coisas
fico perturbado se recorro à justiça de Deus. Apelo para a sua misericórdia,
para a sua compaixão, a fim de que não olhe para os nossos pecados, mas para os
méritos de Cristo e de sua Santa Mãe, e que é também nossa Mãe, para os do Patriarca
S. José, que Lhe serviu de Pai, para os dos Santos.
O cristão pode viver com a
segurança de que, se quiser lutar, Deus o acolherá na sua mão direita, como se
lê na Missa desta festa.
Jesus, que entra em
Jerusalém montado num pobre burrico, Rei da paz, é quem diz: o, reino dos céus
alcança-se com violência, e os violentos arrebatam-no.
Essa força não se
manifesta na violência contra os outros; é fortaleza para combater as próprias
debilidades e misérias, valentia para não mascarar as nossas infidelidades,
audácia para confessar a fé, mesmo quando o ambiente é contrário.
Hoje, como ontem,
espera-se heroísmo do cristão. Heroísmo em grandes contendas, se é preciso.
Heroísmo - e será o normal
- nas pequenas escaramuças de cada dia. Quando se luta continuamente, com Amor
e deste modo que parece insignificante, o Senhor está sempre ao lado dos seus
filhos, como pastor amoroso:
Eu mesmo apascentarei as
minhas ovelhas e as farei repousar, diz o Senhor Deus.
Irei procurar as que se
tinham perdido, farei voltar as que andavam desgarradas, porei ligaduras às que
tinham algum membro quebrado e fortalecerei as que estavam fracas...
E as minhas ovelhas
habitarão no seu país sem temor; e elas saberão que eu sou o Senhor, quando eu
tiver quebrado as cadeias do seu jugo, e as tiver arrancado das mãos daqueles
que as dominavam.
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Antes do dia da festa da
Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai,
tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim.
Este versículo de S. João
anuncia ao leitor que vai acontecer algo de importante nesse dia.
É um preâmbulo terno e
afectuoso, que corresponde àquele que S. Lucas recolhe no seu relato: Tenho
desejado ardentemente - afirma o Senhor - comer convosco esta Páscoa, antes de
sofrer.
Devemos começar desde já
por pedir ao Espírito Santo que nos prepare de forma a podermos compreender
todas as expressões e todos os gestos de Jesus Cristo, porque queremos viver
vida sobrenatural, porque o Senhor nos manifestou a sua vontade de se nos
oferecer como alimento da alma e porque reconhecemos que só Ele tem palavras de
vida eterna.
A fé leva-nos a confessar
com Simão Pedro: nós acreditamos e conhecemos que tu és Cristo, Filho de Deus.
E é também ela, fundida
com a nossa devoção, que nesses momentos transcendentes nos incita a imitar a
audácia de João.
Assim, aproximamo-nos de
Jesus e reclinamos a cabeça no peito do Mestre que, como acabamos de ouvir, por
amar ardentemente os seus, os iria amar até ao fim.
Todos os modos de dizer
são demasiadamente pobres quando pretendem explicar, mesmo de longe, o mistério
da Quinta-Feira Santa. No entanto, não é difícil imaginar os sentimentos do
Coração de Jesus Cristo naquela tarde, a última que passava com os seus antes
do sacrifício do Calvário.
Lembremo-nos da
experiência tão humana da despedida de duas pessoas muito amigas.
Desejariam ficar sempre
juntas, mas o dever - ou seja o que for - obriga-as a afastar-se uma da outra.
Não podem, portanto,
continuar uma junto das outra, como seria do seu gosto.
Nestas ocasiões, o amor
humano, que por maior que seja, é sempre limitado, costuma recorrer aos
símbolos.
As pessoas que se despedem
trocam lembranças entre si, talvez uma fotografia onde se escreve uma
dedicatória tão calorosa, que até admira que não arda o papel.
Mas não podem ir além
disso, porque o poder das criaturas não vai tão longe como o seu querer.
Ora o que não está na
nossa mão, consegue-o o Senhor. Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem,
não deixa um símbolo, mas uma realidade.
Fica Ele mesmo.
Embora vá para o Pai,
permanece entre os homens.
Não nos deixará um simples
presente que nos faça evocar a sua memória, alguma imagem que tenda a apagar-se
com o tempo, como uma fotografia que a pouco e pouco se vai esvaindo e amarelecendo
até perder o sentido para quem não interveio naquele momento amoroso.
Sob as espécies do pão e
do vinho está Ele, realmente presente, com o seu Corpo, o seu Sangue, a alma e
a sua Divindade.
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A
alegria da Quinta-Feira Santa
Como é fácil de explicar
agora o clamor incessante dos cristãos diante da Hóstia Santa, em todos os
tempos!
Canta, ó língua, o
mistério do Corpo glorioso e do Sangue precioso que o Rei dos povos, filho do
ventre fecundo, derramou para resgate do mundo.
É preciso adorar
devotamente este Deus escondido.
Ele é o mesmo Jesus Cristo
que nasceu da Virgem Maria; o mesmo, que padeceu e foi imolado na Cruz; o
mesmo, enfim, de cujo peito trespassado jorrou água e sangue.
Este é o sagrado banquete
em que se recebe o próprio Cristo e se renova a memória da Paixão e, com Ele, a
alma pode privar na intimidade com o seu Deus e possui um penhor da glória
futura.
Assim, a liturgia da
Igreja resumiu, em breve estrofe, os capítulos culminantes da história da
ardente caridade que o Senhor tem para connosco.
O Deus da nossa fé não é
um ser longínquo, que contempla com indiferença a sorte dos homens, os seus
afãs, as suas lutas, as suas angústias.
É um pai que ama os seus
filhos até ao ponto de enviar o Verbo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, a
fim, com a sua encarnação, morrer por nós e nos redimir.
É ele ainda o mesmo Pai
amoroso que agora nos atrai suavemente para Si, mediante a acção do Espírito
Santo que habita nos nossos corações.
A alegria da Quinta-Feira
Santa parte, portanto, do facto de nós compreendermos que o Criador se desfez
em carinho pelas suas criaturas.
Nosso Senhor Jesus Cristo,
como se já não fossem suficientes todas as outras provas da sua misericórdia,
institui a Eucaristia para que possamos tê-Lo sempre perto de nós e porque -
tanto quanto nos é possível entender - movido pelo seu Amor, Ele, que de nada
necessita, não quis prescindir de nós.
A Trindade apaixonou-se
pelo homem, elevado à ordem da graça e feito à sua imagem e semelhança,
redimiu-o do pecado - do pecado de Adão que se propagou a toda a sua
descendência e dos pecados pessoais de cada um - e deseja vivamente morar na
nossa alma, como diz o Evangelho: se alguém Me ama, guardará a minha palavra, e
Meu Pai o amará, e nós viremos a ele, e faremos nele morada:
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A Eucaristia e o mistério
da Trindade
Esta corrente trinitária
de amor pelos homens perpetua-se de maneira sublime na Eucaristia.
Há já muitos anos, todos
aprendemos no catecismo que a Sagrada Eucaristia pode ser considerada como
Sacrifício e como Sacramento e que o sacramento se nos apresenta como Comunhão
e como um tesouro no altar, mais concretamente, no Sacrário.
A Igreja dedica outra
festa ao mistério eucarístico - Corpus Christi - presente em todos os
tabernáculos do mundo.
Hoje, Quinta-feira Santa,
vamos deter-nos na Sagrada Eucaristia, Sacrifício e alimento, na Santa Missa e
na Sagrada Comunhão.
Falava de corrente
trinitária de amor pelos homens.
E onde poderá alguém
aperceber-se melhor dela do que na Missa? Toda a Trindade actua no santo
sacrifício do altar.
Por isso agrada-me tanto
repetir na colecta, na secreta e na oração depois da comunhão aquelas palavras
finais: Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, - dirigimo-nos ao Pai - ,
que conVosco vive e reina na unidade do Espírito Santo, Deus por todos os
séculos dos séculos. Ámen.
Na Santa Missa, a oração
ao Pai é constante. O sacerdote é um representante do Sacerdote eterno, Jesus
Cristo, que é ao mesmo tempo a Vítima.
E a acção do Espírito
Santo não é menos inefável nem menos certa. Pela virtude do Espírito Santo,
escreve S. João Damasceno, dá-se a conversão do pão no Corpo de Cristo.
Esta acção do Espírito
Santo exprime-se claramente, quando o sacerdote invoca a bênção divina sobre a
oferenda: Vinde, ó Deus santificador, eterno e omnipotente, e abençoai este
sacrifício preparado para o vosso santo nome, o holocausto que dará ao Nome
santíssimo de Deus a glória que lhe é devida.
A santificação, que
imploramos, é atribuída ao Paráclito, que o Pai e o Filho nos enviam.
Reconhecemos também essa
presença activa do Espírito Santo no sacrifício quando dizemos, pouco antes da
comunhão: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que, por vontade do Pai, com
a cooperação do Espírito Santo, com a vossa morte destes a vida ao mundo...
(cont)