São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
71
Colírio nos olhos
O pecado dos fariseus não
consistia em não verem Deus em Cristo, mas em encerrarem-se voluntariamente em
si mesmos, em não tolerarem que Jesus, que é luz, lhes abrisse os olhos.
Este ensimesmamento tem
resultados imediatos na vida de relação com os nossos semelhantes.
O fariseu que, por se
considerar a si próprio como luz, não deixa que Deus lhe abra os olhos é o
mesmo que trata soberba e injustamente o próximo: graças te dou, ó Deus, porque
não sou como os outros homens: ladrões, injustos, adúlteros, nem como este
publicano, reza ele.
E ao cego de nascença, que
persiste em contar a verdade da cura milagrosa, ofendem-no: Tu nasceste coberto
de pecados e queres ensinar-nos? E lançaram-no fora.
Entre os que não conhecem
Cristo há muitos homens honrados que, por elementar circunspecção, sabem
comportar-se com delicadeza. São sinceros, cordiais, educados.
Se eles e nós não nos
opusermos a que Cristo cure a cegueira que ainda existe nos nossos olhos, se
permitirmos que o Senhor nos aplique esse lama que, nas suas mãos, se converte
no mais eficaz colírio, compreenderemos as realidades terrenas, vislumbraremos
as eternas com uma luz nova, a luz da fé, e adquiriremos um olhar limpo.
Esta é a vocação do
cristão, ou seja, a plenitude dessa caridade que é paciente, é benigna; a
caridade não é invejosa, não é temerária; não se ensoberbece, não é ambiciosa,
não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal, não
folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo
espera, tudo sofre.
A caridade de Cristo não é
apenas um bom sentimento em relação ao próximo. Não se limita ao gosto pela
filantropia.
A caridade, infundida por
Deus na alma, transforma a partir de dentro a inteligência e a vontade,
fundamenta sobrenaturalmente a amizade e a alegria de fazer o bem.
Contemplai a cena da cura
do coxo, que os Actos dos Apóstolos nos contam.
Subiam Pedro e João ao
templo e, ao passarem, encontraram um homem sentado à porta, que era coxo desde
o seu nascimento.
Tudo recorda a cura do
cego de que falávamos.
Mas agora os discípulos
não pensam que a desgraça se deva aos pecados pessoais do doente ou às faltas
dos seus pais.
E dizem-lhe: Em nome de
Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda. Antes, manifestavam incompreensão,
agora misericórdia; antes, julgavam com temeridade, agora curam milagrosamente
em nome do Senhor.
Sempre Cristo, que passa!
Cristo, que continua a
passar pelas ruas e pelas praças do mundo, através dos seus discípulos, os
cristãos. Peço-Lhe fervorosamente que passe pela alma de alguns dos que me
escutam nestes momentos.
72
Respeito e caridade
Surpreendia-nos ao
princípio a atitude dos discípulos de Jesus diante do cego de nascimento.
Estavam na linha daquele
rifão infeliz: pensa mal e acertarás.
Depois, quando conhecem
melhor o Mestre, quando se apercebem do que significa ser cristão, as suas
opiniões são inspiradas pela compreensão.
Em qualquer homem -
escreve S. Tomás - existe algum aspecto pelo qual os outros podem considerá-lo
como superior, conforme as palavras do Apóstolo: "levados pela humildade,
julgai-vos uns aos outros como superiores" [1].
De acordo com isto, todos
os homens devem honrar-se mutuamente. A humildade é a virtude que nos faz
descobrir que as manifestações de respeito pela pessoa - pela sua honra, pela
sua boa-fé, pela sua intimidade - não são convencionalismos exteriores, mas as
primeiras manifestações da caridade e da justiça.
A caridade cristã não se
limita a socorrer o necessitado de bens económicos; leva-nos, antes de mais
nada, a respeitar e a defender cada indivíduo enquanto tal, na sua intrínseca
dignidade de homem e de filho do Criador.
Por isso, os atentados à
pessoa - à sua reputação, à sua honra - provam, em quem os comete, que não
professa ou não pratica algumas verdades da nossa fé cristã e, sempre, a
carência de um autêntico amor de Deus.
A caridade com que amamos
a Deus e ao próximo é a mesma virtude, porque a razão de amar o próximo é
precisamente Deus e amamos a Deus quando amamos o próximo com caridade.
Espero que sejamos capazes
de tirar consequências muito concretas deste bocado de conversa na presença do
Senhor, principalmente o propósito de não julgar os outros, de não os ofender
sequer com a dúvida, de afogar o mal em abundância de bem, semeando ao nosso
redor a convivência leal, a justiça e a paz, e a decisão de nunca nos
entristecermos se a nossa conduta recta for mal entendida por outros, se o bem
que - com a ajuda contínua do Senhor - procuramos realizar, for interpretado
retorcidamente, atribuindo às nossas intenções, através de um processo ilícito,
maus desígnios próprios de uma conduta dolosa e simuladora.
Perdoemos sempre, com um
sorriso nos lábios.
Falemos com clareza, sem
rancor, quando pensarmos em consciência que devemos falar.
E deixemos tudo nas mãos
do Nosso Pai, Deus, com um divino silêncio - Iesus autem tacebat, Jesus, porém, estava calado -, se se trata de
ataques pessoais, por mais brutais e indecorosos que sejam.
Preocupemo-nos apenas em
fazer boas obras, pois Ele encarregar-se-á de que elas brilhem diante dos
homens.
73
Como toda a festa cristã,
esta que agora celebramos é especialmente uma festa de paz.
Os ramos, com o seu antigo
simbolismo, evocam aquela cena do Génesis: depois de ter esperado outros sete
dias, novamente deitou a pomba fora da arca.
E ela voltou a ele pela
tarde trazendo no bico um ramo de oliveira com folhas verdes.
Entendeu, pois, Noé que as
águas tinham cessado sobre a terra.
Agora recordamos que a
aliança entre Deus e o seu povo é confirmada e estabelecida em Cristo, porque
Ele é a nossa paz.
Nessa maravilhosa unidade
e recapitulação do velho no novo, que caracteriza a liturgia da nossa Santa
Igreja Católica, lemos no dia de hoje estas palavras de profunda alegria: os
filhos dos hebreus, levando ramos de oliveira, saíram ao encontro do Senhor,
aclamando e dizendo: glória nas alturas.
A aclamação a Jesus Cristo
une-se, na nossa alma, com aquela que saudou o seu nascimento em Belém.
E, à sua passagem,
conta-nos S. Lucas, as multidões estendiam os seus mantos no caminho. E, quando
já ia chegando à descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos seus
discípulos começou alegremente a louvar a Deus em altas vozes por todas as
maravilhas que tinham visto, dizendo: Bendito o Rei que vem em nome do Senhor.
Paz no Céu e glória nas alturas.
Paz na terra
Pax
in coelo, paz no céu.
Mas olhemos também o
mundo: porque é que não há paz na terra? Não, não há paz.
Há somente aparências de
paz, equilíbrio de medo, compromissos precários.
Nem sequer há paz na
Igreja, sulcada por tensões que retalham a branca túnica da Esposa de Cristo.
Não há paz em muitos
corações que tentam em vão compensar a intranquilidade da alma com a distracção
contínua, com a pequena satisfação dos bens que não saciam, porque deixam
sempre o travo amargo da tristeza.
As folhas de palma,
escreve Santo Agostinho, são o símbolo da homenagem, porque significam vitória.
O Senhor estava a momentos
da vitória, morrendo na Cruz.
Ia triunfar, no sinal da
Cruz, sobre o Diabo, príncipe da morte.
Cristo é a nossa paz
porque venceu; e venceu porque lutou, no duro combate contra a maldade
acumulada pelos corações humanos.
Cristo, que é a nossa paz,
é também o Caminho. Se queremos a paz, temos de seguir os seus passos.
A paz é consequência da
guerra, da luta, dessa luta ascética, íntima, que cada cristão deve sustentar
contra tudo aquilo que, na sua vida, não é de Deus: contra a soberba, a
sensualidade, o egoísmo, a superficialidade, a estreiteza do coração.
É inútil clamar pelo
sossego exterior se falta tranquilidade nas consciências, no fundo da alma,
porque é do coração que saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios,
as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfémias.
74
Luta, compromisso de amor
e de justiça
Mas não parece antiquada
esta linguagem?
Porventura não foi
substituída por um vocabulário de moda feito de claudicações pessoais
encobertas com uma roupagem pseudo-científica?
Não existirá hoje um
acordo tácito em que os bens reais são apenas o dinheiro que tudo compra, o
poder temporal, a astúcia para ficar sempre por cima, a sabedoria humana que se
autodefine como adulta e pensa ter superado o sagrado?
Não sou nem nunca fui
pessimista, porque a fé me diz que Cristo venceu definitivamente e nos deu,
como prémio da sua conquista, um mandato, que é também um compromisso: lutar.
Nós, cristãos, temos um
empenho de amor, que aceitamos livremente com a chamada da graça divina: uma
obrigação que nos anima a lutar com tenacidade.
Sabemos que somos tão
frágeis como os outros homens, mas também não podemos esquecer-nos de que, se
usarmos os devidos meios, seremos o sal, a luz e a levedura do mundo.
Seremos o consolo de Deus.
O nosso empenho de
perseverar com firmeza neste propósito de Amor é, além disso, um dever de
justiça.
E a matéria desta
exigência, comum a todos os fiéis, traduz-se numa batalha constante.
A tradição da Igreja
sempre se referiu aos cristãos como milites Christi, soldados de Cristo; soldados
que dão serenidade aos outros enquanto combatem continuamente contra as suas
próprias más inclinações.
Às vezes, por falta de
sentido sobrenatural, por uma descrença prática, não querem compreender de
forma alguma como milícia a vida na Terra.
Insinuam maliciosamente
que, se nos consideramos milites Christi,
há o perigo de utilizarmos a fé para fins temporais de violência, de sedições.
Esse modo de pensar é um
triste e pouco lógico simplismo, que costuma andar unido ao comodismo e à
cobardia.
Nada há de mais estranho à
fé católica do que o fanatismo.
Este conduz a estranhas
confusões, com os mais diversos matizes, entre o que é profano e o que é
espiritual.
Tal perigo não existe, se
a luta se entende como Cristo no-la ensinou, isto é, como guerra de cada um
consigo mesmo, como esforço sempre renovado por amar mais a Deus, por desterrar
o egoísmo, por servir todos os homens.
Renunciar a esta contenda,
seja com que desculpa for, é declarar-se de antemão derrotado, aniquilado, sem
fé, com a alma caída e dissipada em complacências mesquinhas.
Para o cristão, o combate
espiritual diante de Deus e de todos os irmãos na fé é uma necessidade, uma
consequência da sua condição. Por isso, se alguém não luta, está a trair Jesus
Cristo e todo o Corpo Místico, que é a Igreja.
(continua)