São Josemaria
CRISTO QUE
PASSA
9
O sal da mortificação
Para se santificar, o
cristão corrente - que não é um religioso e não se afasta do mundo, porque o
mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem
sinais distintivos.
Os seus sinais são
internos: a constante presença de Deus e o espírito de mortificação.
Na realidade, são uma só
coisa, porque a mortificação é apenas a oração dos sentidos.
A vocação cristã é
vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos de reparar pelos
nossos pecados (já voltámos a cara tantas vezes para não vermos Deus!) e por
todos os pecados dos homens. Precisamos de seguir de perto os passos de Cristo:
trazendo sempre no nosso corpo a mortificação, a abnegação de Cristo, o seu
abatimento na Cruz, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos
corpos.
O nosso caminho é de
imolação e, nesta renúncia, encontraremos o gaudium
cum pace, a alegria e a paz.
Não contemplamos o mundo
com um olhar triste.
Talvez
involuntariamente, prestaram um fraco serviço à catequese os biógrafos de
santos que queriam encontrar a todo o custo coisas extraordinárias nos servos
de Deus, logo desde os primeiros vagidos. E contam de alguns deles que na sua
infância não choravam, não mamavam às sextas-feiras por mortificação...
Tu e eu nascemos a
chorar, como Deus manda; e sugámos o peito da nossa mãe sem nos preocuparmos
com Quaresmas nem Têmporas...
Agora, com o auxílio de
Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias (aparentemente sempre iguais) spatium verae penitentiae, tempo de
verdadeira penitência; e nesses instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa
vida.
Este é o caminho para
nos predispormos à graça e às inspirações do Espírito Santo na alma.
E com essa graça -
repito - vem o gaudium cum pace, a
alegria, a paz e a perseverança no caminho.
A mortificação é o sal
da nossa vida.
E a melhor mortificação
é a que combate - em pequenos pormenores, durante todo o dia - a concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba de vida.
Mortificações que não
mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais
abertos a todos.
Tu não podes ser mortificado
se és susceptível, se só vives os teus egoísmos, se dominas os outros, se não
sabes privar-te do supérfluo e, por vezes, até do necessário e, enfim, se te
entristeces quando as coisas não correm como tu tinhas previsto.
Serás, pelo contrário,
mortificado se souberes fazer-te tudo para todos para salvar a todos.
10
A fé e a inteligência
A vida de oração e de
penitência e a consideração da nossa filiação divina transformam-nos em
cristãos profundamente piedosos, como meninos pequenos diante de Deus.
A piedade é a virtude
dos filhos e, para que o filho possa entregar-se nos braços do seu pai, há-de
ser e sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com frequência na vida de
infância espiritual, que não se contrapõe à fortaleza, porque requer uma
vontade rija, uma maturidade bem temperada, um carácter firme e aberto.
Piedosos, portanto, como
meninos; mas não ignorantes, porque cada um há-de esforçar-se, na medida das
suas possibilidades, pelo estudo sério e científico da fé.
E o que é isto, senão
teologia?
Piedade de meninos, sim,
mas doutrina segura de teólogos.
O afã por adquirir esta
ciência teológica - a boa e firme doutrina cristã - deve-se, em primeiro lugar,
ao desejo de conhecer e amar a Deus.
Simultaneamente é
consequência da preocupação geral da alma fiel por alcançar a mais profunda
compreensão deste mundo, que é uma realização do Criador.
Com periódica monotonia,
há pessoas que procuram ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e
a ciência, entre a inteligência humana e a Revelação divina.
Tal incompatibilidade só
pode surgir, e só na aparência, quando não se entendem os termos reais do
problema.
Se o mundo saiu das mãos
de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe deu uma chispa da
sua luz, o trabalho da inteligência deve ser - embora seja um trabalho duro -
desentranhar o sentido divino que naturalmente já têm todas as coisas.
E, com a luz da fé,
compreendemos também o seu sentido sobrenatural, que resulta da nossa elevação
à ordem da graça.
Não podemos admitir o
medo da ciência, visto que qualquer trabalho, se é verdadeiramente científico,
tende para a verdade.
E Cristo disse: Ego sum veritas.
Eu sou a verdade.
O cristão precisa de ter
fome de saber.
Desde o estudo dos
saberes mais abstractos até à habilidade do artesão, tudo pode e deve conduzir
a Deus.
Efectivamente não há
tarefa humana que não seja santificável, motivo para a nossa própria
santificação e oportunidade para colaborar com Deus na santificação dos que nos
rodeiam.
A luz dos seguidores de
Jesus Cristo não deve estar no fundo do vale, mas no cume da montanha para que
vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.
Trabalhar assim é
oração.
Estudar assim é oração.
Investigar assim é oração.
Nunca saímos afinal do
mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar a nossa
intimidade contínua com Ele, da manhã à noite.
Todo o trabalho honrado
pode ser oração e todo o trabalho que é oração é apostolado.
Deste modo, a alma
fortalece-se numa unidade de vida simples e forte.
11
A esperança do Advento
Nada mais queria
dizer-vos neste primeiro domingo do Advento, quando já começamos a contar os
dias que nos aproximam do Natal do Salvador.
Vimos a realidade da
vocação cristã, ou seja, como o Senhor confiou em nós para levar as almas à
santidade, para as aproximar d'Ele, para as unir à Igreja e estender o reino de
Deus a todos os corações. O Senhor quer-nos entregues, fiéis, dedicados, com
amor. Quer-nos santos, muito seus.
Por um lado, a soberba,
a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a entrega, a
misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria.
Tens de escolher.
Foste chamado a uma vida
de fé, esperança e caridade.
Não podes cruzar os
braços e refugiar-te num medíocre isolamento.
Em certa ocasião, vi uma
águia encerrada numa jaula de ferro. Estava suja e meia depenada.
Tinha entre as garras um
pedaço de carne podre.
Pensei então no que
seria de mim se abandonasse a vocação recebida de Deus.
Tive pena daquele animal
solitário, enjaulado, que tinha nascido para subir muito alto e olhar de frente
o Sol.
Podemos ascender até às
humildes alturas do amor de Deus, do serviço a todos os homens.
Para isso, porém, é
preciso que não haja na alma recantos escondidos, onde não possa entrar o sol
de Jesus Cristo.
Temos de deitar fora
todas as preocupações que nos afastem d'Ele; e assim terás Cristo na tua
inteligência, Cristo nos teus lábios, Cristo no teu coração, Cristo nas tuas
obras.
Toda a vida - o coração
e as obras, a inteligência e as palavras - cheia de Deus.
Olhai e levantai as
vossas cabeças porque está próxima a vossa redenção, lemos no Evangelho.
O tempo do Advento é o
tempo da esperança.
Todo o panorama da nossa
vocação cristã, a unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, Nosso
Pai, pode e deve ser uma realidade diária.
Invoca comigo Nossa
Senhora, e imagina como passaria Ela aqueles meses à espera do Filho que havia
de nascer.
E Nossa Senhora, Santa
Maria, fará com que sejas alter Christus,
ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
(cont)