28/08/2018

Leitura espiritual


São Josemaria

CRISTO QUE PASSA


9
             
O sal da mortificação

Para se santificar, o cristão corrente - que não é um religioso e não se afasta do mundo, porque o mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem sinais distintivos.
Os seus sinais são internos: a constante presença de Deus e o espírito de mortificação.
Na realidade, são uma só coisa, porque a mortificação é apenas a oração dos sentidos.

A vocação cristã é vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos de reparar pelos nossos pecados (já voltámos a cara tantas vezes para não vermos Deus!) e por todos os pecados dos homens. Precisamos de seguir de perto os passos de Cristo: trazendo sempre no nosso corpo a mortificação, a abnegação de Cristo, o seu abatimento na Cruz, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos corpos.
O nosso caminho é de imolação e, nesta renúncia, encontraremos o gaudium cum pace, a alegria e a paz.

Não contemplamos o mundo com um olhar triste.
Talvez involuntariamente, prestaram um fraco serviço à catequese os biógrafos de santos que queriam encontrar a todo o custo coisas extraordinárias nos servos de Deus, logo desde os primeiros vagidos. E contam de alguns deles que na sua infância não choravam, não mamavam às sextas-feiras por mortificação...
Tu e eu nascemos a chorar, como Deus manda; e sugámos o peito da nossa mãe sem nos preocuparmos com Quaresmas nem Têmporas...

Agora, com o auxílio de Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias (aparentemente sempre iguais) spatium verae penitentiae, tempo de verdadeira penitência; e nesses instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa vida.
Este é o caminho para nos predispormos à graça e às inspirações do Espírito Santo na alma.
E com essa graça - repito - vem o gaudium cum pace, a alegria, a paz e a perseverança no caminho.

A mortificação é o sal da nossa vida.
E a melhor mortificação é a que combate - em pequenos pormenores, durante todo o dia - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba de vida.
Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais abertos a todos.
Tu não podes ser mortificado se és susceptível, se só vives os teus egoísmos, se dominas os outros, se não sabes privar-te do supérfluo e, por vezes, até do necessário e, enfim, se te entristeces quando as coisas não correm como tu tinhas previsto.
Serás, pelo contrário, mortificado se souberes fazer-te tudo para todos para salvar a todos.

10
          
A fé e a inteligência

A vida de oração e de penitência e a consideração da nossa filiação divina transformam-nos em cristãos profundamente piedosos, como meninos pequenos diante de Deus.
A piedade é a virtude dos filhos e, para que o filho possa entregar-se nos braços do seu pai, há-de ser e sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com frequência na vida de infância espiritual, que não se contrapõe à fortaleza, porque requer uma vontade rija, uma maturidade bem temperada, um carácter firme e aberto.

Piedosos, portanto, como meninos; mas não ignorantes, porque cada um há-de esforçar-se, na medida das suas possibilidades, pelo estudo sério e científico da fé.
E o que é isto, senão teologia?
Piedade de meninos, sim, mas doutrina segura de teólogos.

O afã por adquirir esta ciência teológica - a boa e firme doutrina cristã - deve-se, em primeiro lugar, ao desejo de conhecer e amar a Deus.
Simultaneamente é consequência da preocupação geral da alma fiel por alcançar a mais profunda compreensão deste mundo, que é uma realização do Criador.
Com periódica monotonia, há pessoas que procuram ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e a ciência, entre a inteligência humana e a Revelação divina.
Tal incompatibilidade só pode surgir, e só na aparência, quando não se entendem os termos reais do problema.

Se o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe deu uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência deve ser - embora seja um trabalho duro - desentranhar o sentido divino que naturalmente já têm todas as coisas.
E, com a luz da fé, compreendemos também o seu sentido sobrenatural, que resulta da nossa elevação à ordem da graça.
Não podemos admitir o medo da ciência, visto que qualquer trabalho, se é verdadeiramente científico, tende para a verdade.
E Cristo disse: Ego sum veritas.
Eu sou a verdade.

O cristão precisa de ter fome de saber.
Desde o estudo dos saberes mais abstractos até à habilidade do artesão, tudo pode e deve conduzir a Deus.
Efectivamente não há tarefa humana que não seja santificável, motivo para a nossa própria santificação e oportunidade para colaborar com Deus na santificação dos que nos rodeiam.
A luz dos seguidores de Jesus Cristo não deve estar no fundo do vale, mas no cume da montanha para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.

Trabalhar assim é oração.
Estudar assim é oração. Investigar assim é oração.
Nunca saímos afinal do mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar a nossa intimidade contínua com Ele, da manhã à noite.
Todo o trabalho honrado pode ser oração e todo o trabalho que é oração é apostolado.
Deste modo, a alma fortalece-se numa unidade de vida simples e forte.

11
           
A esperança do Advento

Nada mais queria dizer-vos neste primeiro domingo do Advento, quando já começamos a contar os dias que nos aproximam do Natal do Salvador.
Vimos a realidade da vocação cristã, ou seja, como o Senhor confiou em nós para levar as almas à santidade, para as aproximar d'Ele, para as unir à Igreja e estender o reino de Deus a todos os corações. O Senhor quer-nos entregues, fiéis, dedicados, com amor. Quer-nos santos, muito seus.

Por um lado, a soberba, a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a entrega, a misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria.
Tens de escolher.
Foste chamado a uma vida de fé, esperança e caridade.
Não podes cruzar os braços e refugiar-te num medíocre isolamento.

Em certa ocasião, vi uma águia encerrada numa jaula de ferro. Estava suja e meia depenada.
Tinha entre as garras um pedaço de carne podre.
Pensei então no que seria de mim se abandonasse a vocação recebida de Deus.
Tive pena daquele animal solitário, enjaulado, que tinha nascido para subir muito alto e olhar de frente o Sol.
Podemos ascender até às humildes alturas do amor de Deus, do serviço a todos os homens.
Para isso, porém, é preciso que não haja na alma recantos escondidos, onde não possa entrar o sol de Jesus Cristo.
Temos de deitar fora todas as preocupações que nos afastem d'Ele; e assim terás Cristo na tua inteligência, Cristo nos teus lábios, Cristo no teu coração, Cristo nas tuas obras.
Toda a vida - o coração e as obras, a inteligência e as palavras - cheia de Deus.

Olhai e levantai as vossas cabeças porque está próxima a vossa redenção, lemos no Evangelho.
O tempo do Advento é o tempo da esperança.
Todo o panorama da nossa vocação cristã, a unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, Nosso Pai, pode e deve ser uma realidade diária.

Invoca comigo Nossa Senhora, e imagina como passaria Ela aqueles meses à espera do Filho que havia de nascer.
E Nossa Senhora, Santa Maria, fará com que sejas alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.

(cont)