CAPÍTULO I
«SEMELHANTE A NÓS EM TUDO, EXCEPTO NO
PECADO»
A santidade da humanidade de Cristo
Uma santidade absoluta
…/2
A ressurreição foi
o momento em que o Espírito Santo convenceu o mundo «quanto à justiça» de
Cristo [i].
Sem este juízo de
Deus, teria sido vedada aos Apóstolos e a nós toda a possibilidade desse
conhecimento.
A impecabilidade
de Jesus, portanto, não resulta de um a
priori, mas de um a posteriori,
não resulta daquilo que aparece no início da Sua existência - união hipostática
- mas daquilo que aparece no fim: a ressurreição.
Tudo isto
constitui certamente um progresso.
Todavia, a
perspectiva recente, querigmática, não contradiz e não torna inútil ou
ultrapassada a perspectiva tradicional dos Padres e dos Concílios, como por
vezes se procura fazer crer; pelo contrário, completa-a e é por ela completada;
ambas se complementam.
Na ressurreição,
Jesus foi manifestado e reconhecido sem pecado, do mesmo modo que - sempre na
ressurreição – foi manifestado «Filho de Deus com poder» [ii].
Mas este facto
exclui porventura que Ele fosse Filho de Deus antes daquele momento?
A ressurreição
trouxe à luz a realidade, não a criou do nada; dizer o contrário equivaleria a
recair na heresia adopcionista.
O mesmo se pode
dizer da impecabilidade.
Ela não deixaria
de ser uma realidade na vida de Cristo, mesmo que, por hipótese, ninguém
tivesse reparado nela.
Os Padres não
formulam portanto um falso problema, quando indagam sobre o fundamento desta
impecabilidade e o descobrem na união, operada n'Ele, da humanidade com a
divindade.
O que se deve
fazer não é, por isso, repudiar a explicação tradicional ontológica, trocando-a
pela querigmática moderna, nem, de modo inverso, repudiar a fecunda explicação
moderna, para se perfilhar exclusivamente a antiga.
É preciso fazer
uma síntese entre as duas.
Isto salva o
princípio da Tradição que é a de se enriquecer progredindo, ao passo que o
contrário o destrói, pondo no lugar do princípio de Tradição o de substituição.
Temos duas fontes
de luz para descobrir, de vertentes opostas, a santidade de Jesus: a
ressurreição e a encarnação.
A ressurreição
permite-nos afirmar que em Cristo não houve
qualquer pecado; a união hipostática permite-nos afirmar que em Cristo não poderia ter havido pecado.
Uma fundamenta a
ausência de pecado em Cristo, a outra fundamenta também a Sua impecabilidade, o
que é algo mais.
Devemos utilizar
estas duas fontes de luz.
Cada uma delas,
considerada isoladamente, apresenta o grave inconveniente de tornar
praticamente irrelevante a santidade real do Jesus dos evangelhos que é, pelo
contrário, o facto mais importante para a nossa imitação.
Fundamentar a
santidade de Cristo unilateralmente sobre a Sua ressurreição, pode comportar
também um perigo: o de se conceber tacitamente, a Ressurreição de Cristo – à
luz do conceito luterano de justificação – como que uma imputação da justiça, a
partir do interior; como uma absolvição, que se opera no sobrano juízo de Deus,
prescindindo do facto se esta justiça e santidade existem ou não na pessoa.
A inocência ou a
ausência de pecado em Cristo consistiria, neste caso, no juízo que Deus tem da
mesma, ressuscitando Jesus da morte.
«Também a justiça
de Jesus – lê-se num desses autores – assentava extra se, nas mãos do Pai, no juízo de Deus» [iii].
Admitem, é
verdade, que «Jesus viveu, de facto, em Si mesmo, sem pecado», mas não parece
que isto conte muito; ao passo que, para os autores do Novo Testamento, esse
facto é tão importante que o abordam continuamente.
2. Uma santidade vivida
Não se deve ter
receio, portanto-, mesmo no actual contexto teológico, de voltar aos evangelhos
para contemplar neles a santidade de Cristo, como se esta santidade de Jesus
fosse somente uma projecção para trás de uma convicção adquirida pelos
Apóstolos só depois da Páscoa.
A observação dos
evangelhos permite-nos logo saber que a santidade Jesus não é somente um
princípio abstracto, ou uma dedução metafísica, mas uma santidade real, vivida
momento a momento e nas situações mais concretas da vida.
As
Bem-Aventuranças, para dar um exemplo, não são somente um belo programa de vida
que Jesus traça para os, outros; é a Sua própria vida e a sua experiência que
Ele revela aos discípulos, chamando-os a entrar na Sua esfera de santidade.
Ele ensina aquilo
que faz por isso pôde dizer:
«Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de
coração» [iv], Ele diz que perdoa aos inimigos, aliás supera-se
a si mesmo, até perdoar aos que estavam a
crucificá-l'O, com as palavras: «pai, perdoa--lhes, porque não sabem o que
fazem» [v].
De
resto, não é este ou aquele episódio que se presta para ilustrar a santidade de
Jesus, mas sim todas as acções, todas as palavras saídas da Sua boca.
No
Seu amor não havia distância alguma entre a exigência da lei e o seu
cumprimento, nem sequer de um momento, de um sentimento, de um projecto.
Ele
não disse que sim como o primeiro irmão e não disse que não como o segundo [vii], pois que o Seu alimento era fazer a vontade do Pai [viii].
Assim,
Ele era uma coisa só com o Pai, uma coisa só com todas as exigências da lei, de
modo que a Sua única necessidade era cumpri-la.
Nele,
o amor era uma acção contínua.
Não
houve momento algum da Sua vida, nem por um só instante, em que o Seu amor se
dissipasse no vazio de um sentimento, contentando-Se com palavras que o tempo
dispersa, em que tivesse havido uma simples impressão de comprazimento de Si
mesmo; não, o Seu amor é uma acção constante; mesmo quando chorou, isso não foi
uma perda de tempo, porque Jerusalém não conheceu aquilo que servia para a sua
paz. [ix]
Mas
Ele sabia-o.
E
se os que rodeavam, chorosos, o sepulcro de Lázaro não sabiam o que iria
acontecer, Ele sabia o que deveria fazer.
O
Seu amor estava presente tanto em todas as pequenas como nas grandes coisas; e
Ele não Se concentrava com maior intensidade nalguns momentos grandiosos, como
se as outras horas da vida quotidiana fossem alheias à exigência da lei.
Ele
era igual em todos os momentos: mesmo quando expirou sobre a cruz do Calvário,
não foi mais grandioso que quando nasceu na gruta de Belém» [x]
Este
texto revela a perfeição de Jesus considerada sob o ponto de vista do amor. A
história da espiritualidade cristã deu-nos a conhecer muitas e diversas formas
de santidade e ou consciência, de nele não haver pecado, e de que fazia sempre
a vontade do Pai.
A
consciência de Jesus é transparente como cristal!
Não
existe nele a mais ínfima admissão de ofensa, ou pedido de desculpa e de
perdão, tanto em relação a Deus como em relação aos homens.
Existe
nele sempre a certeza tranquila de
estar com a verdade e a justiça e de ter agido bem.
Isto
é bem diferente da presunção humana de justiça.
Uma
tal ausência de culpa não está ligada a este ou àquele passo do Evangelho, de
cuja historicidade se possa duvidar, mas ressalta de todo o Evangelho.
É
um estilo de vida que se reflecte em tudo.
Pode
procurar-se nos trechos mais recônditos dos Evangelhos, que o resultado é
sempre o mesmo.
Isto
é um sinal totalmente divino, um sinal de que este homem não é somente homem,
embora excelso.
Para
explicar tudo isto, não é suficiente a ideia de uma humanidade excepcionalmente
santa e exemplar.
De
facto, esta seria antes desmentida por esse sinal.
Uma
tal segurança, uma tal omissão de pecado como se verifica em Jesus de Nazaré,
indicaria, sim, uma humanidade excepcional, mas excepcional no orgulho e não na
santidade.
Uma
consciência formada deste modo ou é, em si mesma, o maior dos pecados jamais
cometido, maior ainda que o de Lúcifer, ou então é a pura verdade.
A
ressurreição de Cristo veio demonstrar que era a pura verdade.
A
consciência que Jesus tinha de que Ele era isento de pecado é mais fácil de
explicar do que a consciência de que era o Filho de Deus.
De
facto, a culpa, quando existe, manifesta-se sob a forma de sentimento de culpa
e de remorso.
Existe
toda uma fenomenologia do pecado que cai sob a nossa observação.
Como
homem, Jesus podia não ter a consciência de ser o Filho unigénito do Pai ou, se
a tinha, nós não podemos explicar como tal acontecia visto que há no meio o salto
de uma natureza para a outra.
Todavia,
como homem, Ele podia perfeitamente ter conhecimento de que em Si não havia
pecado algum, porque essa faculdade pertence ao âmbito da própria natureza
humana.
É
este conhecimento de ausência de culpa que João quis afirmar, ao pôr na boca de
Jesus aquelas inauditas palavras que já atrás recordámos:
«Quem
de entre vós pode convencer-me de pecado?»
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
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