02/01/2018

Leitura espiritual

Jesus Cristo o Santo de Deus
CAPÍTULO I

«SEMELHANTE A NÓS EM TUDO, EXCEPTO NO PECADO»

A santidade da humanidade de Cristo

Uma santidade absoluta

…/2

A ressurreição foi o momento em que o Espírito Santo convenceu o mundo «quanto à justiça» de Cristo [i].
Sem este juízo de Deus, teria sido vedada aos Apóstolos e a nós toda a possibilidade desse conhecimento.
A impecabilidade de Jesus, portanto, não resulta de um a priori, mas de um a posteriori, não resulta daquilo que aparece no início da Sua existência - união hipostática - mas daquilo que aparece no fim: a ressurreição.

Tudo isto constitui certamente um progresso.
Todavia, a perspectiva recente, querigmática, não contradiz e não torna inútil ou ultrapassada a perspectiva tradicional dos Padres e dos Concílios, como por vezes se procura fazer crer; pelo contrário, completa-a e é por ela completada; ambas se complementam.

Na ressurreição, Jesus foi manifestado e reconhecido sem pecado, do mesmo modo que - sempre na ressurreição – foi manifestado «Filho de Deus com poder» [ii].

Mas este facto exclui porventura que Ele fosse Filho de Deus antes daquele momento?

A ressurreição trouxe à luz a realidade, não a criou do nada; dizer o contrário equivaleria a recair na heresia adopcionista.
O mesmo se pode dizer da impecabilidade.
Ela não deixaria de ser uma realidade na vida de Cristo, mesmo que, por hipótese, ninguém tivesse reparado nela.
Os Padres não formulam portanto um falso problema, quando indagam sobre o fundamento desta impecabilidade e o descobrem na união, operada n'Ele, da humanidade com a divindade.

O que se deve fazer não é, por isso, repudiar a explicação tradicional ontológica, trocando-a pela querigmática moderna, nem, de modo inverso, repudiar a fecunda explicação moderna, para se perfilhar exclusivamente a antiga.
É preciso fazer uma síntese entre as duas.
Isto salva o princípio da Tradição que é a de se enriquecer progredindo, ao passo que o contrário o destrói, pondo no lugar do princípio de Tradição o de substituição.
Temos duas fontes de luz para descobrir, de vertentes opostas, a santidade de Jesus: a ressurreição e a encarnação.

A ressurreição permite-nos afirmar que em Cristo não houve qualquer pecado; a união hipostática permite-nos afirmar que em Cristo não poderia ter havido pecado.
Uma fundamenta a ausência de pecado em Cristo, a outra fundamenta também a Sua impecabilidade, o que é algo mais.
Devemos utilizar estas duas fontes de luz.
Cada uma delas, considerada isoladamente, apresenta o grave inconveniente de tornar praticamente irrelevante a santidade real do Jesus dos evangelhos que é, pelo contrário, o facto mais importante para a nossa imitação.
Fundamentar a santidade de Cristo unilateralmente sobre a Sua ressurreição, pode comportar também um perigo: o de se conceber tacitamente, a Ressurreição de Cristo – à luz do conceito luterano de justificação – como que uma imputação da justiça, a partir do interior; como uma absolvição, que se opera no sobrano juízo de Deus, prescindindo do facto se esta justiça e santidade existem ou não na pessoa.
A inocência ou a ausência de pecado em Cristo consistiria, neste caso, no juízo que Deus tem da mesma, ressuscitando Jesus da morte.

«Também a justiça de Jesus – lê-se num desses autores – assentava extra se, nas mãos do Pai, no juízo de Deus» [iii].

Admitem, é verdade, que «Jesus viveu, de facto, em Si mesmo, sem pecado», mas não parece que isto conte muito; ao passo que, para os autores do Novo Testamento, esse facto é tão importante que o abordam continuamente.

2. Uma santidade vivida

Não se deve ter receio, portanto-, mesmo no actual contexto teológico, de voltar aos evangelhos para contemplar neles a santidade de Cristo, como se esta santidade de Jesus fosse somente uma projecção para trás de uma convicção adquirida pelos Apóstolos só depois da Páscoa.

A observação dos evangelhos permite-nos logo saber que a santidade Jesus não é somente um princípio abstracto, ou uma dedução metafísica, mas uma santidade real, vivida momento a momento e nas situações mais concretas da vida.
As Bem-Aventuranças, para dar um exemplo, não são somente um belo programa de vida que Jesus traça para os, outros; é a Sua própria vida e a sua experiência que Ele revela aos discípulos, chamando-os a entrar na Sua esfera de santidade.
Ele ensina aquilo que faz por isso pôde dizer:

«Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração» [iv], Ele diz que perdoa aos inimigos, aliás supera-se a si mesmo, até perdoar aos que estavam a crucificá-l'O, com as palavras: «pai, perdoa--lhes, porque não sabem o que fazem» [v].

De resto, não é este ou aquele episódio que se presta para ilustrar a santidade de Jesus, mas sim todas as acções, todas as palavras saídas da Sua boca.
«Nunca - escreve Kierkegaard - foi encontrada mentira na Sua boca [vi], tudo n'Ele era verdade.
No Seu amor não havia distância alguma entre a exigência da lei e o seu cumprimento, nem sequer de um momento, de um sentimento, de um projecto.
Ele não disse que sim como o primeiro irmão e não disse que não como o segundo [vii], pois que o Seu alimento era fazer a vontade do Pai [viii].
Assim, Ele era uma coisa só com o Pai, uma coisa só com todas as exigências da lei, de modo que a Sua única necessidade era cumpri-la.
Nele, o amor era uma acção contínua.
Não houve momento algum da Sua vida, nem por um só instante, em que o Seu amor se dissipasse no vazio de um sentimento, contentando-Se com palavras que o tempo dispersa, em que tivesse havido uma simples impressão de comprazimento de Si mesmo; não, o Seu amor é uma acção constante; mesmo quando chorou, isso não foi uma perda de tempo, porque Jerusalém não conheceu aquilo que servia para a sua paz. [ix]
Mas Ele sabia-o.
E se os que rodeavam, chorosos, o sepulcro de Lázaro não sabiam o que iria acontecer, Ele sabia o que deveria fazer.
O Seu amor estava presente tanto em todas as pequenas como nas grandes coisas; e Ele não Se concentrava com maior intensidade nalguns momentos grandiosos, como se as outras horas da vida quotidiana fossem alheias à exigência da lei.
Ele era igual em todos os momentos: mesmo quando expirou sobre a cruz do Calvário, não foi mais grandioso que quando nasceu na gruta de Belém» [x]
Este texto revela a perfeição de Jesus considerada sob o ponto de vista do amor. A história da espiritualidade cristã deu-nos a conhecer muitas e diversas formas de santidade e ou consciência, de nele não haver pecado, e de que fazia sempre a vontade do Pai.
A consciência de Jesus é transparente como cristal!
Não existe nele a mais ínfima admissão de ofensa, ou pedido de desculpa e de perdão, tanto em relação a Deus como em relação aos homens.
Existe nele sempre a certeza tranquila de estar com a verdade e a justiça e de ter agido bem.
Isto é bem diferente da presunção humana de justiça.
Uma tal ausência de culpa não está ligada a este ou àquele passo do Evangelho, de cuja historicidade se possa duvidar, mas ressalta de todo o Evangelho.
É um estilo de vida que se reflecte em tudo.
Pode procurar-se nos trechos mais recônditos dos Evangelhos, que o resultado é sempre o mesmo.
Isto é um sinal totalmente divino, um sinal de que este homem não é somente homem, embora excelso.
Para explicar tudo isto, não é suficiente a ideia de uma humanidade excepcionalmente santa e exemplar.
De facto, esta seria antes desmentida por esse sinal.
Uma tal segurança, uma tal omissão de pecado como se verifica em Jesus de Nazaré, indicaria, sim, uma humanidade excepcional, mas excepcional no orgulho e não na santidade.
Uma consciência formada deste modo ou é, em si mesma, o maior dos pecados jamais cometido, maior ainda que o de Lúcifer, ou então é a pura verdade.
A ressurreição de Cristo veio demonstrar que era a pura verdade.
A consciência que Jesus tinha de que Ele era isento de pecado é mais fácil de explicar do que a consciência de que era o Filho de Deus.
De facto, a culpa, quando existe, manifesta-se sob a forma de sentimento de culpa e de remorso.
Existe toda uma fenomenologia do pecado que cai sob a nossa observação.
Como homem, Jesus podia não ter a consciência de ser o Filho unigénito do Pai ou, se a tinha, nós não podemos explicar como tal acontecia visto que há no meio o salto de uma natureza para a outra.
Todavia, como homem, Ele podia perfeitamente ter conhecimento de que em Si não havia pecado algum, porque essa faculdade pertence ao âmbito da própria natureza humana.
É este conhecimento de ausência de culpa que João quis afirmar, ao pôr na boca de Jesus aquelas inauditas palavras que já atrás recordámos:
«Quem de entre vós pode convencer-me de pecado?»

(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] (cfr. Jo 16,10)
[ii] (Rm 1,4)
[iii] w. pannenmberg, Grundzuge der Christologie, Gutersloh, 1964, pp. 337sss.
[iv] Mt 2,29
[v] Lc 23,34
[vi] cfr. lpd 2,22
[vii] cfr. Mt 21,28ss
[viii] cfr. Jo 4,34
[ix] Cfr. Lc 19, 41
[x] S. Kierkgaard, Os actos de amor, C. Fabro, Milão, 1983, p. 260.

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