CAPÍTULO V
O SUBLIME CONHECIMENTO DE CRISTO
3.
«A
fé termina nas coisas»
Revitalizar o dogma que fala
de Jesus como “uma pessoa” significa passar da consideração da essência da pessoa para a sua existência, isto é, aperceber-se que
Jesus Ressuscitado é uma pessoa viva que está à minha frente, que me chama pelo
nome, do mesmo modo que chamou Saulo.
É preciso que, também no
âmbito da fé, levemos a efeito o programa, tão querido do filósofo Husserl e de
toda a fenomenologia, de se “ir às coisas”; é preciso ultrapassar os conceitos,
as palavras, os enunciações de fé, para atingir as realidades da fé tais como
elas são.
Neste caso a realidade da fé
é Cristo Jesus ressuscitado e vivente.
“A fé não acaba nos
enunciados, mas sim nas coisas”, disse S. Tomás [i] .
Não nos podemos contentar
com o acreditar na fórmula “uma pessoa”, devemos atingir essa pessoa e, em
certo sentido, tocar-lhe.
Existe um conhecimento que é
experiência, isto é, o de alguém que provou e tocou,
Dela fala S. Paulo quando
diz: «Para que eu O possa conhecer a Ele…»
Aqui a palavra “conhecer” é
muito evidente, pois segundo a linguagem bíblica significa “possuir”.
Não conhecer através de
conceitos, mas de modo directo e imediato.
Falando de Jesus
ressuscitado, Stº Agostinho diz:
«Se alguém O não puder tocar
quando está sobre a terra, que, de entre os mortais, poderá tocar-Lhe, quando
estiver no Céu? Pois bem, esse toque [ii]
representa a fé! Toca em Cristo aquele que crê em Cristo [iii]»
Sucede, no conhecimento de
fé, que, às vezes por instantes o nosso espírito fica “deslumbrado pelo
esplendor da verdade como se fosse um relâmpago” e, então, estabelece-se “uma
espécie de contacto espiritual” (quidam spirittatis contactus) com a realidade
em que se crê [iv].
Não se trata de uma coisa
que está longe de ti; não está nem no céu nem para além do mar, mas no teu
próprio coração e falta somente sabê-la reconhecer.
Houve porventura um momento
da tua vida em que Cristo se apresentou ao teu olhar interior em toda a Sua
majestade, doçura e beleza, e em que, como o Apóstolo, te sentiste também tu
«conquistado por Cristo»? [v]
Terá sido um momento, talvez
breve, em que o mistério de Jesus e do Seu corpo místico te fascinou de tal
maneira que desejaste “dissolver-te para estares com Cristo” e conhecê-Lo como
Ele é?
Terá sido um momento –
talvez nos teus anos de juventude – em que, por um instante, te foi manifestada
claramente a “verdade” de Cristo, tanto que, por ela, poderias ter resistido ao
mundo inteiro?
A verdade das profecias, a
verdade dos evangelhos, a verdade de tudo quanto diz respeito a Cristo?
Pois foi esse o sublime
conhecimento de Cristo, operado em ti pelo Espírito Santo.
A fé termina assim
verdadeiramente nas “coisas”.
Tanto o Oriente como o
Ocidente concordam em afirmar este tipo de conhecimento que atinge a realidade
final.
«o nosso conhecimento das
coisas – diz Cabasillas – é duplo: aquele que se pode adquirir ouvindo, e o que
se ganha por experiência directa.
No primeiro não tocamos a
coisa, mas vêmo-la nas palavras como numa imagem, embora não seja uma imagem
exacta da sua forma.
De facto, entre as coisas
existentes, não é possível encontrar uma única que seja em tudo semelhante a
outra e que, sendo usada como modelo, seja suficiente para o conhecimento da
primeira.
Conhecer por experiência,
pelo contrário, significa atingir a coisa em si: então aqui a forma imprime-se
na alma e suscita o desejo como um vestígio proporcionado à sua beleza,
Mas quando somos privados da
ideia própria do objecto e recebemos dele uma imagem débil e obscura, extraída
das suas relações com os outros objectos, o nosso desejo torna-se proporcional
a esta imagem, e então não o amamos como devemos e não temos por ele os mesmos
sentimentos que ele poderia suscitar, porque não lhe saboreámos a forma.
Do mesmo modo que as formas
diversas das diferentes essências, imprimindo-se na alma, a configuram de
maneira diferente, assim sucede com o amor.
Portanto, quando o amor do
Salvador não deixa vislumbrar em nós nada de extraordinário e para além da
natureza, é sinal evidente que encontrámos somente vozes que falam d’Ele; mas
como é possível conhecer bem por este meio Aquele a Quem nada se assemelha,
Aquele que nada tem de comum com os outros, ao Qual nada pode ser comparado e a
nada pode comparar-Se?
Como conhecer a Sua beleza e
amá-lO de modo digno da Sua beleza?
Aqueles aos quais foi dado
um tal ardor que fora levados para fora da própria natureza e induzidos a
desejar e a poder realizar obras maiores do que as dos homens vulgares podem
conceber, esses foram feridos directamente pelo Esposo, foi Ele que lhes
infundiu no olhar um raio da Sua beleza: o tamanho de ferida indica a flecha, o
ardor revela aquele que feriu» [vi].
Quando o amor do Salvador
não deixa vislumbrar em nós nada de extraordinário, é sinal que encontrámos
somente vozes que falam d’Ele, Não a Ele!
Mas como poeremos restituir
à nossa fé, tornada árida pelas fórmulas, este realismo que foi a fonte da Sua
força nos Padres e nos Santos?
As fórmulas, os conceitos,
as palavras ganharam tanta importância que se transformaram frequentemente num
tremendo “isolador” que encobre as realidades e impede que elas nos sacudam.
Do mesmo modo que, na
Eucaristia, os sinais visíveis – o pão e o vinho - se desfazem de si, se põem
de lado, por assim dizer, e se reduzem a meros sinais, para dar lugar à
realidade do Corpo e do Sangue de Cristo que devem transmitir, assim também, ao
falarem de Deus, as palavras devem ser sinais humildes, preocupadas em afirmar
as realidades e as verdades vivas que contém e depois pôr-se de lado.
Só assim as palavras de
Cristo podem revelar-se por aquilo que são, isto é, «Espírito e vida» [vii].
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
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