23/01/2018

Leitura espiritual

CAPÍTULO IV

«ELE É O VERDADEIRO DEUS
                          E A VIDA ETERNA»            

Divindade de Cristo e anúncio da eternidade

3. Passar do dogma para a vida

4. Eternidade, eternidade!

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Secularismo significa esquecer, ou pôr entre parêntesis, o desejo eterno do homem, agarrando-se exclusivamente ao ”saeculum”, isto é, ao tempo presente e a este mundo.
É considerado a heresia mais difundida e insidiosa da era moderna e, infelizmente, de um modo ou de outro, todos somos ameaçados por ele.
Também nós que, em teoria, lutamos contra o secularismo somos frequentemente seus cúmplices ou vítimas.
Somos “mundanizados”; perdemos o sentido, o gosto e a familiaridade daquilo que é eterno.
Sobre a palavra “eternidade”, ou “o além” (que é o seu equivalente em termos espaciais”, desabou primeiramente a conjectura marxista, segundo a qual desvia do compromisso histórico para transformara o mundo e melhorar as condições da vida presente e é, por isso, uma espécie de alibi e de evasão.
Pouco a pouco, com a desconfiança, caiu sobre ela o esquecimento e o silêncio.
O materialismo e o consumismo fizeram o resto na sociedade opulenta, fazendo até parecer estranho ou quase inconveniente que se fale ainda de eternidade entre pessoas cultas e que acompanham a evolução dos tempos.
Que é que hoje ousa ainda falar dos “Novíssimos”, isto é, das últimas coisas – Morte, Juízo, Inferno, Paraízo – que são, respectivamente, o começo e as formas da eternidade?
Quando foi que nós ouvimos a última pregação sobre avida eterna?
E, no entanto, pode dizer-se que Jesus, no Evangelho, não fala de outra coisa.

Qual é a consequência prática deste eclipse a ideia de eternidade?
S. Paulo refere a intenção daqueles que não creem na ressurreição da morte:
«Comamos, bebamos, que amanhã morreremos» [i].
O desejo natural de viver “sempre”, deformado, torna-se desejo, ou frenesim, de viver “bem”, isto é, agradavelmente.
A qualidade resolve-se na quantidade.
Acaba por faltar uma das motivações mais eficazes da vida moral.

Este enfraquecimento da ideia de eternidade não se processa, por ventura, do mesmo modo, em todos os crentes e não leva a uma conclusão tão grosseira como a que é referida pelo Apóstolo; mas opera também neles, diminuindo-lhes sobretudo a capacidade para enfrentar o sofrimento com coragem.
Imaginemos um homem com uma balança na mão: uma daquelas balanças que se seguram com uma só mão e têm num lado um prato em que se colocam os objectos e, no outro, uma barra a qual regista o peso ou a medida,
Se cair por terra ou se se perder a medida, tudo aquilo que se coloca no prato faz levantar a barra e fazer pender a balança.
A mais ínfima coisa adquire supremacia, até mesmo um punhado de penas [ii].

Pois bem, assim somos nós, pois que a isso estamos limitados.
Perdemos o peso, a medida de tudo o que é a eternidade e, assim, as coisas e os sofrimentos deste mundo deitam facilmente por terra a nossa alma.
Tuod nos parece demasiado pequeno e excessivo.
Jesus dizia:
«Se a tua mão te escandaliza, corta-a; se o teu olho te escandaliza, arranca-o, é melhor para ti entrar na vida com uma só mão ou um só olho, do que, tendo as duas mãos ou os dois olhos, seres lançado no fogo eterno [iii]»
Vê-se aqui como actua a medida da eternidade quando ela está presente e operante, e o que ela é capaz de estimular.
Nós, porém, tendo perdido de vista a eternidade, achamos até excessivo que nos seja pedido para fecharmos os olhos perante um espectáculo inconveniente.

Ao contrário, quando estiveres prostrado, ao ponto de te sentires esmagado pelas tribulações, lança com a fé, para o outro lado da balança, o peso desmesurado que é o pensamento da eternidade; verás, então, que o peso das agruras se tornará mais leve e suportável.
Digamos a nós mesmos:
“Que é isto comparado com a eternidade? Mil anos são como um só dia” [iv].
São “como o dia de ontem que passou, como um turno da vigília da noite” [v].
Mas porque digo eu “um só dia”?
São um instante, ainda menos que um sopro.

A propósito de pesos e de medidas, recordemos o que diz S. Paulo a quem coube a sorte de ter de sofrer uma medida invulgarmente abundante.
“Porque o que presentemente é para nós tribulação momentânea e ligeira, produz em nós um peso eterno de uma extraordinária e incomparável glória, não atendendo nós às coisas que se vêm, mas sim às que se não vêm; porque as coisas que se vêm são passageiras e as que se não vêm são eternas” [vi].
O peso da tribulação é “ligeiro” precisamente porque é momentâneo, e o peso da glória é “extraordinário” porque é “eterno”.
Por isso o próprio Apóstolo pôde dizer:
«Eu tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória vindoura, que se manifestará em nós»[vii].


(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] 1Cor 15,32
[ii] Cfr. S. Kierkegaard, O Evangelho do sofrimento,  6
[iii] Cfr. Mt 18,8-9
[iv] 2 Pd 3,8
[v] Sl, 90,4
[vi] 2Cor 4,17-18
[vii] Rm 8,18

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