10/01/2018

Leitura espiritual

Jesus Cristo o Santo de Deus

CAPÍTULO II

JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO

1.   Obediência e novidade

Resta-nos agora clarificar brevemente a última questão:
Como se apresenta o homem novo revelado por Cristo e qual é o traço essencial que o distingue do homem «velho»?
De facto, temos de conhecer este homem novo, já que fomos chamados a «revestir-nos dele».
Chegámos também, desta vez, ao ponto em que devemos passar do querigma para a paréneses, passar da contemplação de Cristo homem «novo» para a imitação da novidade que é a Sua.

A diferença entre os dois tipos de humanidade é resumida por São Paulo na antítese: desobediência-obediência.
«Assim como, pela desobediência de um só homem, todos os outros se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, todos se tornarão justos» [i].
Por isso, dizia eu mais atrás que, para se descobrir que «tipo de homem é Jesus», é preciso olhar também para o mistério pascal. Porque é lá que o novo Adão se revela obediente.

O homem novo é um homem que nada faz «por Si mesmo», ou «para Si mesmo» ou para Sua glória. É Aquele cujo alimento é fazer a vontade do Pai. É Aquele que leva a Sua obediência até à morte e à morte na cruz. O homem novo é Aquele que vive em total e absoluta dependência de Deus e encontra nessa dependência a Sua força, a sua Alegria e a Sua liberdade. Não encontra nela o Seu limite, mas o caminho para superar o Seu limite, numa palavra, encontra nessa dependência o Seu ser:
«Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, - disse Jesus – então sabereis que Eu sou, e que não faço nada por Mim mesmo, mas como o Pai Me ensinou, assim Eu faço» [ii].
«Eu sou» porque «nada faço por Mim mesmo». O ser de Cristo radica-se na Sua submissão ao Pai. Ele «é» porque «obedece».

O ser do homem mede-se pelo grau da sua dependência de Deus, seu criador, até coincidir no seu último vértice que é Jesus Cristo, com o Ser absoluto que é o próprio Deus, e poder dizer também como homem: «Eu sou»! Eis em que consiste a verdadeira «afirmação» do homem e o verdadeiro «humanismo». Os seguidores de outro tipo de humanismo podem não aceitar esta afirmação e até revoltar-se contra ela, mas nós sabemos que é a verdade. Se o homem não é só natureza, mas também, vocação, é aqui que se realiza a vocação do homem e é a de se à imagem e semelhança de Deus.

Os crentes devem fazer duas coisas, acerca deste homem novo: proclamá-lo e revestir-se dele., isto é, vivê-lo.
Ao proclamá-lo servem-nos de exemplo os grandes Padres da Igreja do século IV: Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório Nisseno, Agostinho… todos eles eram homens embebidos pela cultura do seu tempo; podiam dizer falando dos seus interlocutores:
«São Gregos? Também eu!»
Mas eles converteram-se, tornando-se estultos aos olhos dos sábios, abraçando a humanidade de Cristo, e tornaram-se assim o «berço» em tomou forma um novo modo de pensar, uma nova visão do homem, o «cadinho» em que o helenismo se cristianizou e o cristianismo se helenizou, no bom sentido, isto é, se fez «grego com os gregos».
Eles assumiram a ideia de homem da sua cultura, aproveitando o que ela tinha de válido – como por exemplo, a afirmação de que «nós somos da linhagem de Deus» [iii] - e corrigindo o que havia de errado, como a afirmação de que «a carne não é capaz de salvação».
O mesmo devemos fazer nós hoje também, na nossa cultura que não tem dificuldade em admitir a salvação e a bondade da matéria, ao passo que tem dificuldade em admitir que «somos da linhagem de Deus», criados por Ele.
Eles, os Padres, salvaram também a sua cultura, obrigando-a a abrir-se por dentro a novos horizontes. Souberam também reconhecer as grandes conquistas da cultura do seu tempo e não apontar-lhe somente as suas carências; o mesmo devemos fazer nós também.
No seu tempo um dos pontos nevrálgicos era constituído pela «sabedoria»; hoje um dos pontos nevrálgicos «é a liberdade».
São Paulo dizia:
«Os gregos procuram a sabedoria; nós pregamos a Cristo crucificado, o que é um escândalo para os gentios, mas para aqueles que são chamados é virtude de Deus e liberdade de Deus!».

Todas as aberrações que hoje se ouvem acerca da humanidade de Cristo e das Sua presumíveis lutas e rebeliões, como a ideia, por exemplo, de que Cristo não seria completo se não tivesse uma «personalidade humana», derivam do facto de que se acabou por aceitar o pressuposto do humanismo ateu segundo o qual existe uma surda rivalidade e incompatibilidade entre Deus e o homem e «onde nasce Deus, morre o homem».
Em vez de destruir os raciocínios que se levantam contra a fé e submetendo à fé toda a inteligência humana, é à fé que, desate modo, se sujeita a inteligência humana.

2.       «Se o Filho vos libertar…»

Proclamar Cristo homem «sem pecado» não tem certamente por finalidade refutar o undo e o homem de hoje, mas pelo contrário, incutir-lhe confiança e esperança. Poucos são os temas evangélicos que têm tanta força libertadora como este.
Lembro-me ainda da primeira vez que «descobri» a santidade de Cristo. Fazendo um exame de consciência aos meus actos e aos meus pensamentos eu ia com clareza que não havia um único desses actos que se pudesse considerar totalmente puro e que de algum modo não estivesse inquinado pelo meu «eu» de pecado. Esta situação leva-me a procurara com o pensamento uma saída como quando São Paulo exclamou:
«Quem me libertará deste corpo de morte?» [iv].
Foi então que descobri «Jesus sem pecado» e compreendi pela primeira vez o valor incomensurável que este incisivo «absque peccato» tem na Bíblia! Esta visão incutia-me na alma uma grande paz e confiança, como o náufrago que encontrou qualquer coisa a que se agarrar. O pecado, portanto – repetia comigo mesmo – não é omnipresente e se não é omnipresente também não é omnipotente!
Houve – e existe ainda – um ponto no universo onde começou a sua retirada, a qual se concluirá irremediavelmente com a sua definitiva irradicação. Veio-me então o desejo de abrir a Bíblia com a esperança de entrar nela uma palavra que, de algum modo, me falasse deste Jesus sem pecado. E o meu olhar fixou-se no texto de São João no qual Jesus diz:
«Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado… Por isso, se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres» [v].
Compreendi que Jesus não fala aqui de toda a liberdade ou da liberdade em geral, mas da libertação do pecado: se o Filho vos libertar do pecado sereis verdadeiramente livres. Um dia também nós seremos livres do pecado, isto é, «verdadeiramente» livres, teremos uma liberdade que agora nem sequer conseguimos imaginar.
Comentando o texto (Onde está o espírito do Senhor aí está a liberdade» [vi], Santo Agostinho revela-nos o segredo da verdadeira liberdade:
«Onde está o Espírito do Senhor já não se é aliciado pelo prazer de pecar, e isto é a liberdade.
Onde não está o espírito do Senhor é-se aliciado pelo prazer de pecar e isto é a escravidão»[vii ].
O Espírito do Senhor é o Espírito do Senhor Jesus!

(cont)

rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] Rm 5,19
[ii] Jo 8,28
[iii] Act 17,28
[iv] Rm 7,24
[v] Jo 8,34-36
[vi] 2Cor 3,17
[vii] Santo Agostinho, De Spiritu et Littera, 16,28 (CSEL 60,181

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