DO ALTO DA CRUZ
Caná
é o início da vida pública de Cristo. O sacrifício da Cruz é o seu fecho e a
sua culminação. Procuremos agora aproximar-nos do coração de Maria e tentemos
captar o que “Maria guardava no coração” naquela hora em que a salvação da
humanidade se consumava por meio do sacrifício redentor de Jesus Cristo. São
João descreve a presença de Maria ao pé da Cruz, junto das santas mulheres, com
uma palavra cheia de têmpera: stabat. Literalmente, significa “estar firme, de
pé”. Mas o termo indica muito mais do que um simples modo de permanecer. A
expressão original empregada pelo Evangelho sugere um conteúdo moral, isto é,
que Maria acompanhava o sofrimento do Filho com fortaleza de alma; e que, no
seu coração, não só havia inteireza, mas adesão. Nessa “hora” definitiva, em
que o Filho dá a vida para a salvação de muitos [i], a atitude espiritual de Maria é exatamente a mesma que
no dia da Anunciação: fiat, “faça-se”. Adesão incondicional, plena, à vontade
de Deus, e concretamente ao plano salvífico que Cristo está realizando no
mundo, plano no qual Ela foi chamada a colaborar da forma mais estreita.
Podemos dizer que o fiat, a união com a vontade de Deus – como já mencionávamos
anteriormente – é a alma de Maria. Aquilo que faz dela a Mãe, no sentido mais
profundo, não é apenas nem primariamente o fato de ter gerado fisicamente
Jesus, mas de se ter unido perfeitamente à vontade de Deus em cada um dos
instantes da vida e da missão do Filho. Lembremo-nos de que, certo dia, quando
uma mulher da multidão louvou em voz alta o ventre que te trouxe e os peitos
que te amamentaram, Jesus lhe respondeu: Antes bem-aventurados os que ouvem a
palavra de Deus e a põem em prática [ii].
Teria
com isso desviado de Maria o louvor espontâneo daquela mulher? Não, sem dúvida,
pois porventura não foi a Virgem quem melhor ouviu e cumpriu a palavra de Deus?
Com essas palavras, Cristo mostrava de fato qual é a mais profunda razão para
louvá-la. Análogo sentido se deve ver no comentário, frio e distante na
aparência, feito por Jesus certa vez em que lhe advertiram que sua Mãe acabava
de chegar: Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, e minha irmã,
e minha mãe [iii].
Ao
pé da Cruz, a adesão de Maria à vontade divina atinge o seu cume. A Virgem
Santa conhecia bem – como todo o judeu piedoso – as profecias que, de um fundo
de séculos, prenunciavam o Messias como “Servo sofredor”, que seria levado à
morte como manso cordeiro conduzido ao sacrifício: pelas suas chagas, todos nós
seríamos curados [iv]. Por isso, ao dizer “faça-se” ao Anjo, Ela aceitara o
destino do seu Filho. Quando o apresentou no Templo a Deus Pai – já o lembrávamos
antes –, o seu gesto foi uma antecipação do oferecimento definitivo que iria
fazer ao pé da Cruz, aceitando a Paixão e a Morte de seu Filho pela nossa
salvação; mais ainda, oferecendo voluntariamente – com a alma transpassada de
dor e numa completa generosidade – o sacrifício de Jesus por nós, Maria – por
amor a Deus e por amor aos homens necessitados de redenção – aceitou morrer de
dor, no íntimo da sua alma, juntamente com Cristo. Uniu-se assim ao seu
sacrifício redentor e assumiu-o como próprio. Por isso é chamada Corredentora.
Foi, de fato, na Cruz que Cristo, dando a sua vida, mereceu para nós a vida
divina da graça. O seu holocausto de Amor, por ter um valor infinito – divino
–, é uma inesgotável fonte de méritos em favor dos homens. Pois bem, o Salvador
quis associar tão intimamente a sua Mãe bendita ao sacrifício da Redenção que a
Igreja pode afirmar que Maria mereceu com “mérito de conveniência” – como se
diz na linguagem teológica – todas as graças que Jesus nos mereceu por justiça
na Cruz [v]. Ela é, também por este título, a “Mãe da divina graça”.
A vida sobrenatural, que brota copiosamente da Cruz, também é, de alguma
maneira, vida dEla, vida que recebemos por Ela: isso a torna mais profundamente
a nossa Mãe. Convém lembrar ainda que Jesus Cristo, com os seus padecimentos,
pagou – expiou, satisfez – pelos nossos pecados: Fostes resgatados – escreve
São Pedro – (...) pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado
e sem mancha [vi].
A
Virgem Imaculada, unindo-se totalmente aos sofrimentos do Filho – com os mesmos
sentimentos de Cristo Jesus [vii] – aceitou, com amor imenso, pagar também Ela com a sua
própria dor pelos nossos pecados. Junto da Cruz, entregou a sua alma, fundida
com o sacrifício de Jesus, pela nossa salvação [viii].
A
dilacerante agonia do seu coração, junto do Crucificado, foi então como que um
novo parto – desta vez com dor –, através do qual Maria nos deu à luz
espiritualmente. Não se trata de uma frase poética, mas de uma inefável
realidade: todos e cada um de nós nascemos de Maria naquele momento. Aí, perto
da árvore da Cruz, Ela se tornou plenamente a “nova Eva”, a nova e verdadeira
“mãe dos viventes”, como gostava de repetir a piedade mariana dos primeiros
séculos [ix].
EIS O TEU FILHO
Logo
após as palavras pronunciadas por Cristo na Cruz – “eis a tua Mãe”, “eis o teu filho”
– , conta o Evangelho que desta hora em diante, o discípulo a levou para sua
casa [x]. Esse “discípulo” – já o víamos no começo destas páginas
– representava todos os discípulos: os que na altura seguiam Jesus e todos os
homens chamados depois a segui-Lo, fazendo parte do Povo de Deus que é a
Igreja. O facto de o discípulo ter assumido ao pé da letra a “filiação” a
Maria, “levando-a para sua casa”, reflete bem a intenção de Cristo – que João
compreendeu – de que a Igreja, a que São Paulo chama o Corpo de Cristo [xi], tivesse a sua existência inseparavelmente unida à Mãe
de Jesus. Ela é a Mãe da Cabeça deste Corpo – de Cristo –, e é a Mãe dos
membros deste Corpo, que somos nós. É a Mãe da Igreja, do “Cristo total”, como
gostava de dizer Santo Agostinho. Na mente de Deus, portanto, a Igreja é
concebida também como uma família, como um lar que tem uma Mãe. No centro dessa
família, pulsa o Coração da Virgem e nela irradia o aconchego da sua
maternidade. É muitíssimo significativo que a Igreja tenha nascido no dia de
Pentecostes, quando os discípulos e as santas mulheres estavam reunidos – em
união de corações e de preces – com Maria, a Mãe de Jesus [xii].
São
Lucas, o evangelista que melhor captou o papel de Maria no começo da vida do
Redentor, é o mesmo que nos Atos dos Apóstolos sublinha a presença central de
Nossa Senhora nos começos da vida da Igreja, mostrando que a Igreja recebeu o
Espírito Santo – a sua alma divina – estando aglutinada como uma família em
volta da Virgem Santíssima.
O CORAÇÃO DE MARIA NO TEMPO E NA
ETERNIDADE
Havia
de chegar, porém, um dia em que a presença de Maria já não seria visível para
os olhos dos seus filhos. Deus a chamou a Si. João, o discípulo-filho por
excelência, a vislumbrará então gloriosa – Mãe, sempre Mãe – no céu. Assim
descreve a sua visão no livro do Apocalipse: Depois, apareceu no céu um grande
sinal: uma mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, e uma coroa de
doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida e clamava com dores de parto... [xiii].
Adivinha-se
nesta imagem celeste a Virgem-Mãe, aquela que víamos associada ao sacrifício de
Jesus, dando à luz com dor os filhos de Deus. A visão de São João mostra-nos
que, desde que foi glorificada no céu – Rainha coroada de estrelas –, Maria
continua a ser Mãe de todos os homens, dos filhos de Deus e irmãos de Jesus
Cristo, até o fim dos séculos. Uma das mais doces verdades da nossa fé é o
mistério da Assunção de Nossa Senhora em corpo e alma aos céus. A cheia de
graça, a que nunca pecou, não podia ficar sujeita à corrupção da morte,
estabelecida por Deus como castigo do pecado. Por isso, a Igreja definiu
solenemente – expressando uma verdade que, desde tempos antiquíssimos, era
património da fé do povo cristão – que “a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem
Maria, completado o curso da sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à
glória do Céu” [xiv].
Eis
a consoladora verdade: a nossa Mãe Santa Maria, na glória do céu, está agora
junto da Trindade Santíssima em corpo e alma. Compreendemos bem o que isto
significa? Quer dizer que Maria vive no céu a cuidar de nós, a olhar-nos, a
interceder por nós, com o mesmo coração, com os mesmos sentimentos e com os
mesmos afetos que tinha na terra. Não é um puro espírito. É uma Mãe humana,
glorificada, mas plenamente humana. Agora, junto de Deus, Ela contempla – na
luz da glória divina – todos e cada um dos seus filhos, em todos e cada um dos
momentos da sua existência, e olha por eles: nas horas de alegria e de dor, nos
transes difíceis, nos tempos de solidão, nas suas quedas e nos seus
reerguimentos... Não há um passo da nossa vida, não há um latejar do nosso
coração, que não esteja sendo acompanhado amorosamente pelo Coração humano da
nossa Mãe. E não há um passo que não esteja sendo assumido – visto e sentido
como algo próprio – por esse Coração. Contemplando este mistério delicado,
Mons. Escrivá aponta-nos uma das suas consequências: “Surge assim em nós, de
forma espontânea e natural, o desejo de procurarmos a intimidade com a Mãe de
Deus, que é também a nossa Mãe; de convivermos com Ela como se convive com uma
pessoa viva, já que sobre Ela não triunfou a morte, antes está em corpo e alma
junto de Deus Pai, junto de seu Filho, junto do Espírito Santo” [xv]. É nesse clima de intimidade filial que discorre a
devoção a Nossa Senhora.
(cont)
FRANCISCO
FAUS. [xvi]
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