MARIA NA PERSPECTIVA DE DEUS UM
TESTAMENTO DE CRISTO
Faltam
apenas alguns minutos para que Cristo, no alto da Cruz, entregue a sua alma ao
Pai.
O
Seu olhar inclina-se para baixo e busca primeiro os olhos de sua Mãe; depois,
desvia-se para João, o discípulo amado.
Os
seus lábios esforçam-se por articular umas poucas palavras. Jesus está exausto,
agonizante, mas quer falar.
A
sua voz enfraquecida esforça-se por dizer exatamente o que o Filho de Deus,
naquele momento em que se consuma a Redenção dos homens, está querendo dizer.
Vendo
Jesus a sua Mãe e junto dela o discípulo que ele amava, disse à sua Mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao
discípulo: Eis aí a tua Mãe. E, desta hora em diante, o discípulo a levou para
sua casa [i].
É
da maior importância perceber o que Cristo, nessa hora, realmente quis afirmar.
O
seu pensamento humano tinha toda a lucidez do pensamento divino; e, por sua
vez, essas derradeiras palavras, pouco antes de morrer, possuíam a força de uma
mensagem precisa, que devia ficar gravada sem equívocos, pois expressava uma
“última vontade” de Deus feito homem.
Qual
foi, portanto, o sentido dessa dupla afirmação: “Eis a tua Mãe” e “eis o teu filho”?
Para
o compreendermos com exatidão, pode ser conveniente que pensemos primeiro
naquilo que Jesus não disse.
Poderia,
por exemplo, ter pedido a João:
“Cuida da minha Mãe, toma conta dela”.
Mas
não o disse, e seria pouco explicável que a sua intenção se polarizasse apenas
nisso – o cuidado material da Mãe –, tendo em conta que Maria, conforme sabemos
pelo Evangelho, tinha perto dela parentes próximos, que eventualmente a podiam
atender, e nos consta que em parte já o estavam fazendo [ii].
Também
não teria sido lógico que, com as palavras “Eis
aí o teu filho”, quisesse
e
colocar o discípulo sob o amparo de uma nova mãe adoptiva, Maria. É bem
conhecido, pelo Evangelho, que o discípulo amado tinha a mãe viva, Salomé, que
esta era uma das santas mulheres que fielmente seguiam Jesus [iii], e que, além disso, zelava maternalmente, até
exageradamente, pelos seus filhos Tiago e João, ao ponto de ter pedido a Cristo
que lhes concedesse os primeiros lugares no seu Reino [iv].
Fica
excluído, por isso, que na sua última hora Jesus tenha pretendido resolver
apenas, ou principalmente, problemas relativos ao futuro da Mãe ou do
discípulo.
Resta
então uma só hipótese, a que se depreende das palavras de Jesus, tal como João
– que escreve no Evangelho as suas recordações vividas – as compreendeu. João
era, na agonia de Jesus, o único discípulo que se encontrava ao pé da Cruz.
E
é precisamente com essa palavra – “discípulo” – que se designa a si mesmo.
Entende
que a sua condição de discípulo de Jesus vale mais do que o seu nome e a sua
ascendência.
Naquele
momento, com efeito, ele era acima de tudo “o discípulo”, aquele que encarnava
e, por assim dizer, representava todos os discípulos, mais ainda, todos os
homens resgatados na Cruz pelo divino Mestre e chamados a segui-Lo.
Sendo
assim, a intenção de Cristo torna-se transparente.
Está
proclamando uma nova e sobrenatural maternidade, atribuída por Deus a Maria
sobre todos os chamados a ser discípulos do Redentor.
É
a clara expressão da Vontade de Deus, que confere a Maria – dentro dos planos
da Salvação – uma maternidade de ordem espiritual sobre todos os homens e,
especialmente, sobre aqueles que, por serem “discípulos”, têm em Jesus, o Filho
de Maria, o Primogénito entre muitos irmãos [v].
Toda
a vinculação da alma cristã com Maria se resume, assim, nos laços de uma
relação filial: “Eis a tua Mãe”.
Ora,
a filiação – como a maternidade – é um vínculo real e também, inseparavelmente,
um sentimento; e o sentimento, mais do que a razão, atinge o coração, aquelas
fibras secretas e íntimas da afectividade que a razão só muito a custo consegue
penetrar.
Tendo
a devoção a Maria – o amor filial a Maria – raízes fundas e próprias no coração
dos cristãos, é natural que extravase com frequência naqueles modos e “razões
do coração” que – como dizia Pascal – “a razão não conhece”. E é também
explicável que esse amor filial, ao desabrochar ao ritmo pouco esquematizado do
afecto, se expresse em transbordamentos cordiais e detalhes espontâneos, que
façam estremecer os moldes mentais um tanto geométricos do pensamento
racionalista.
Seria
muito difícil chegar a ter autêntico acesso a uma mãe pela via do raciocínio
filosófico ou da lógica estreita e bem comportada. Sem dúvida é por isso –
melhor, por não ter compreendido isso – que alguns se escandalizam com o que
julgam “exageros” católicos da devoção a Maria.
Quem
é que não conta no seu histórico com a lembrança de uma conversa – talvez de
uma discussão – com um amigo protestante de boa fé, que recriminava à Igreja
Católica os “absurdos” da devoção a Maria? – Vocês, os católicos, fazem da
devoção a Nossa Senhora uma idolatria; será que não percebem que esse culto a
Maria chega a ser uma verdadeira superstição? Até parece que colocam Maria num
plano de igualdade ou mesmo acima de Cristo, esquecendo-se de que só Ele é o
Salvador, o único Mediador entre Deus e os homens...
Uma
vez por outra, todos tivemos de tentar esclarecer invectivas deste tipo.
Na
realidade, a única coisa que essas censuras pretendem afirmar é que a Igreja
Católica, com a devoção a Maria – santuários, rezas, velas, procissões, imagens
em todas as igrejas, nos lares, etc. – se teria afastado da pureza do
Evangelho, introduzindo no cristianismo uma excrescência espúria, ou no mínimo
um exagero supersticioso, que toldaria, se não desvirtuaria, a autenticidade
evangélica da fé cristã.
É
possível que, ao surgirem essas questões, nos tenhamos esforçado por aduzir as
nossas razões em favor da devoção a Maria.
Se
eram apenas razões pessoais, mal fundamentadas, pouco peso podiam ter.
Na
realidade, o que afinal importa não é o que nós, católicos ou protestantes,
possamos pensar ou dizer particularmente a respeito da Mãe de Jesus.
O
que é absolutamente decisivo é o que Deus pensa e diz de Maria.
Estas
páginas pretendem ser, sobretudo, uma escuta atenta e serena precisamente
disso: que nos diz Deus sobre Maria?
O
que é que Ele afirma sobre o papel de Maria na salvação dos homens?
Uma vez colocado assim o problema, é natural
que se levante uma pergunta: como é que nós podemos sabê-lo?
Se
Deus não tivesse falado, certamente não o poderíamos.
Acontece,
porém, que Deus falou. Se há um ponto de absoluta coincidência entre todos os
cristãos, católicos ou não, é que a Bíblia contém a palavra de Deus, e que essa
palavra se tornou plena na Palavra – no Verbo – que se fez carne, isto é, em
Jesus Cristo e no seu Evangelho.
É
nele, portanto, que deve ser buscada e achada a resposta, antes de mais nada.
Qualquer
esclarecimento válido deve mergulhar aí as suas raízes e deduzir daí as suas
conclusões.
(cont)
FRANCISCO
FAUS. [vi]
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