UMA SOCIEDADE HUMANA?
Na sua segunda visita ao
Brasil, João Paulo II teve, no dia 17 de Outubro de 1991, um encontro com o
laicato católico em Campo Grande. Falou-lhes da família e, entre outras coisas,
dizia-lhes: “Não percais nunca a consciência de que, do fortalecimento e da
santidade da família, depende a inteira saúde do corpo social, pois a família,
por desígnio de Deus, é e será sempre a «célula primeira e vital da sociedade»”
[i].
Uma sociedade sadia é um
“organismo” formado por famílias sadias. A paz e o bem do mundo, em grande
parte, são o reflexo da paz e do bem das famílias. E o contrário também é
verdade: muitas famílias sem paz dão como resultado um mundo inquieto,
desconjuntado e agressivo, um mundo sem paz.
Por isso, presta-se um
imenso desserviço à sociedade quando, deixando a família na sombra, se
apresenta o bem social, simplesmente, como a soma dos bens particulares dos
indivíduos. O indivíduo seria, assim, a única coisa que interessaria. Não se
pensa que o indivíduo deva pôr-se a serviço do bem comum, a começar pelo bem da
família, mas julga-se que a família é que tem de ficar subordinada ao bem-estar
do indivíduo: se a família serve para a sua “realização”, bem; se não serve,
ele a quebra, como um palito usado, e atira-a fora.
Muitos não reparam na
medonha falsificação que há nessa mentalidade. A sociedade não é, absolutamente,
uma somatória de indivíduos, um agregado de sujeitos isolados, sem outra
relação entre eles que os acordos que consigam fazer para conjugar os seus
egoísmos.
A sociedade “humana” não
existe sem a família, que é o ambiente natural e sadio de onde surge o “homem
humano” de que falava Guimarães Rosa. A sociedade só é “sociedade” na medida em
que é uma constelação de famílias, da mesma maneira que um organismo sadio é
uma união de órgãos e células sãos. Por isso, o bem da família, a proteção à
família, é um dos deveres mais graves – se não o mais grave – dos governantes e
dos responsáveis pela formação da opinião pública. Todos os atentados
ideológicos ou práticos contra a família e contra os valores familiares são uma
traição à dignidade da pessoa humana e um crime contra a sociedade.
Ninguém ignora que essa
traição está sendo praticada com febril insistência e agressividade. Mediante
uma orquestração sistemática dos meios de comunicação social, a família é
bombardeada, ridicularizada, vista ironicamente como uma espécie em extinção,
como instituição obsoleta, inimiga das liberdades individuais, do progresso, da
mentalidade moderna, da necessária libertação de tabus. Basta ligar a maior
parte das telenovelas, visitar uma videoteca, folhear jornais de grande
circulação e revistas de todo o tipo, para achar diariamente a apologia do sexo
livre hedonista (homossexual ou
heterossexual, praticado por adultos, por adolescentes e por crianças
convenientemente “educadas” pelas sexologias oficiais), da aventura descomprometida,
da separação por motivos fúteis, da deslealdade justificada pelo simples
prazer, do aborto e de tantos outros dinamitadores do bem da família.
E os poderes públicos? E os
legisladores? Uns silenciam, outros vão na onda daquilo que os meios de comunicação,
manipulando falsamente os dados, apresentam como opinião da maioria; e, pouco a
pouco, vão-se abrindo fendas profundíssimas, vão-se acobertando aberrações,
vão-se escancarando legalmente portas para sistemas de vida demolidores da
família.
CORDAS REBENTADAS
Por que são cada vez mais
frequentes os casamentos meteóricos, que não chegam a durar um ano ou dois e,
por vezes, nem sequer uns poucos meses? É pura e simplesmente porque o “egoísmo
utilitarista” predominante arrebentou as boas cordas do coração de jovens e
menos jovens, deixando só as cordas mais desafinadas, aquelas que – vibradas
pelo orgulho e pelo comodismo – tocam a música monótona que canta: “Direito,
direito, eu tenho direito! Tenho o direito de ser feliz, tenho o direito de que
as coisas sejam a meu gosto, tenho o direito de não sofrer, de não ter que
aguentar!”
Por isso, ante a menor
contrariedade, as cordas do hedonista chiam, irritadas: “Ela perturba-me! Não
me faz feliz!”, “Ele não quer que eu faça as coisas do meu jeito, pisa a minha
independência! Ele – ou ela – dá trabalho, exige sacrifício, ousa solicitar
renúncias!
Não é o que esperava quando
me casei! Ele, ela, não me dá, não me «proporciona», não me «abastece», não
«alimenta» as minhas vontades, não me permite «consumir» o tipo de satisfações
que o meu apetite voraz anseia!”
É natural que as famílias
constituídas por pessoas assim, incapazes de amar, incapazes de dar, carentes
de toda a generosidade, vão caindo uma após outra, ao primeiro vento contrário,
como as folhas no outono. Essa incapacidade de ser fiel, que muitos meios de
comunicação apresentam como liberdade, na realidade é uma atrofia que inabilita
para amar: um “autismo” moral, que é a doença típica do homem e da mulher que
se autoproclamam “avançados”, “modernos”, mas que estão vazios de tudo, exceto
de si mesmos.
SITUAÇÃO OU VOCAÇÃO
É inútil tentar resolver
essa “incapacidade de fazer família” com panos quentes: acompanhamento
psiquiátrico (fora de casos patológicos), aprendizado das dez “técnicas” de convívio
feliz publicadas – com a costumeira superficialidade – pelas revistas do
coração.
A solução, a única solução,
está em algo de muito mais profundo. Não há, em muitos rapazes e moças,
capacidade de “fazer família”, porque se perdeu a noção do que “é a família”.
Não há capacidade de criar amor familiar, porque se perdeu a noção do
verdadeiro amor. Não há capacidade de conseguir, no lar, um clima de bondade,
paciência, serenidade, alegria, caridade e paz, porque todos esses valores
positivos são virtudes ou fruto das virtudes e, hoje, a maioria das pessoas, em
vez de aprenderem virtudes, passam os anos a aprender interesses e
conveniências. Entram, assim, nas lutas da vida como um combatente moralmente
desarmado.
Que é, afinal, a família?
Hoje, mais do que nunca, é preciso fazer ressoar, com a força de uma verdade
jubilosa e de um apelo premente, que o casamento e a família não são uma
situação, nem uma solução, mas uma vocação e uma missão.
Uma situação. Uma solução. É
assim que muitos dos que ainda concedem algum papel ao casamento e à família
costumam considerá-los. “Eu – pensam eles – situo-me profissionalmente,
situo-me familiarmente, e tento manter nos dois campos, enquanto for
conveniente para mim, a situação que, no momento, vejo como a solução mais
conveniente”.
A família não é isso. É algo
muito maior. Para compreendê-la, escutemos uma das vozes que têm proclamado com
maior clareza o sentido divino, cristão, do casamento e da família. Refiro-me
ao Bem-aventurado Josemaria Escrivá. Contemplando ele, sob o foco luminoso da
fé, o sentido da existência humana, dizia: “Para que estamos no mundo? Para
amar a Deus com todo o nosso coração e com toda a nossa alma, e para estender
esse amor a todas as criaturas [...]. Deus não deixa nenhuma alma abandonada a
um destino cego; para todas tem um desígnio, a todas chama com uma vocação
pessoalíssima, intransferível”.
Esta afirmação categórica –
“o matrimônio é vocação” – feita por Mons. Escrivá já desde os começos dos anos
trinta, surpreendia e desconcertava, de início, os seus ouvintes.
Depois, quando penetravam
nessa verdade e lhe descobriam as consequências, deslumbrava-os e rasgava-lhes
empolgantes horizontes de vida.
“Há quase quarenta anos –
dizia o Bem-aventurado, em 1968 – que venho pregando o sentido vocacional do
matrimónio. Que olhos cheios de luz vi mais de uma vez quando – julgando eles e
elas incompatíveis na sua vida a entrega a Deus e um amor humano nobre e limpo
– me ouviam dizer que o matrimónio é um caminho divino na terra!”
Se o matrimónio é uma
vocação, quer dizer que é uma chamada de Deus para “algo”, ou seja, que é um
apelo divino para o cumprimento de uma missão. Ilustrando essa verdade, na
mesma ocasião, o Beato Josemaria continuava a dizer: “O matrimónio existe para
que aqueles que o contraem se santifiquem nele e santifiquem através dele: para
isso os cônjuges têm uma graça especial, conferida pelo sacramento instituído
por Jesus Cristo.
Quem é chamado ao estado
matrimonial encontra nesse estado – com a graça de Deus – tudo o que necessita
para ser santo, para se identificar cada dia mais com Jesus Cristo e para levar
ao Senhor as pessoas com quem convive.
“Por isso penso sempre com
esperança e com carinho nos lares cristãos, em todas as famílias que brotaram
do Sacramento do Matrimónio, que são testemunhos luminosos desse grande
mistério divino – Sacramentum magnum! (Ef 5, 32), sacramento grande – da união
e do amor entre Cristo e a sua Igreja. Devemos trabalhar para que essas células
cristãs da sociedade nasçam e se desenvolvam com ânsia de santidade [...]. Os
esposos cristãos devem ter consciência de que são chamados a santificar-se santificando,
de que são chamados a ser apóstolos, e de que o seu primeiro apostolado está no
lar. Devem compreender a obra sobrenatural que supõe a fundação de uma família,
a educação dos filhos, a irradiação cristã na sociedade. Desta consciência da
própria missão dependem, em grande parte, a eficácia e o êxito da sua vida: a
sua felicidade” [iii].
(cont)
[ii]
Josemaria
Escrivá, Questões actuais do cristianismo, 3a. ed., Quadrante, São Paulo, 1986,
n. 106;
[iii]
ibid.,
n. 91; ver também, do mesmo autor, a homilia O Matrimônio, vocação cristã, em É
Cristo que passa, 2a. ed., Quadrante, São Paulo, 1975, ns. 22-30;
[iv] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom;
Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da
consciência.
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