04/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO XV

Depois de nos quatro livros precedentes, ter tratado dos primórdios das duas cidades — Terrestre e Celeste —, Agostinho acrescenta mais quatro acerca do seu desenvolvimento. Encaminha-se o seu propósito para o estudo dos principais capítulos da História Sagrada pertinentes ao mesmo assunto, comentando primeiramente, neste décimo quinto livro, o que no Génesis se lê desde Abel e Caim até ao Dilúvio.


CAPÍTULO I

Acerca das duas séries de gerações humanas que, desde a origem, tomam destinos diversos.

Acerca da felicidade do Paraíso, acerca do próprio paraíso, acerca da vida que aí viveram os primeiros homens, acerca do seu pecado e do seu castigo, muitas coisas se pensaram, muitas coisas se disseram, muitas coisas se escreveram. Também nós, nos livros precedentes, tratámos, em conformidade com as Sagradas Escrituras, desses assuntos e, de acordo com a sua autoridade, expusemos o que tínhamos lido ou podido compreender. Mas, se se examinarem mais profundam ente estas questões, elas geram múltiplas e multímodas discussões que teriam de constar de mais livros do que os que permitem esta obra e o tempo de que dispomos, muito curto para nos demorarmos em todas as questões que as pessoas ociosas e meticulosas, mais dispostas a interrogar do que capazes de compreender, podem pôr. Acho, porém, que já me alonguei bastante acerca dos grandes e dificílimos problemas das origens do Mundo, da alma e do próprio género humano, que separamos em dois grupos: o dos que vivem como ao homem apraz e o dos que vivem como apraz a Deus. Em linguagem figurada chamamos-lhes também duas cidades, isto é, duas sociedades de homens das quais Uma está predestinada a reinar eternamente com Deus e a outra a sofrer um suplício eterno com o Diabo. Mas este é o fim delas; dele tratarem os mais tarde. Mas por agora — Pois que já disse o suficiente acerca dos seus começos, quer dos anjos, cujo número ignoramos, quer dos dois Primeiros homens — parece-me conveniente tratar do seu desenvolvimento desde o dia em que os dois começaram a procriar até ao dia em que os homens hão-de deixar de procriar. Efectivamente, todo esse tempo ou século durante o qual uns desaparecem, morrendo, e outros aparecem, nascendo, é que constitui o desenvolvimento das duas cidades de que estamos a falar.

Caim, o primeiro a nascer dos dois pais do género humano, pertence à cidade dos homens; e Abel, o segundo pertence à cidade de Deus.

Assim com o, num só homem, constatam os o que diz o Apóstolo:

O espiritual não é o que nasceu primeiro: primeiro nasceu o animal depois o espiritual [i]

(cada um saindo dum tronco condenado, deve primeiro nascer de Adão, mau e carnal; e se, renascendo em Cristo, progredir, tornar-se-á bom e espiritual),
— assim também em todo o género humano: quando por nascimentos e mortes as duas cidades começaram a desenvolver-se, primeiro nasceu o cidadão deste século, em segundo lugar nasceu o estrangeiro neste século e membro da cidade de Deus, predestinado e eleito pela graça, peregrino cá em baixo pela graça e pela graça cidadão do Alto. Pelo que lhe respeita, ele nasce da mesma massa, toda ela condenada desde a origem; mas Deus, como um oleiro (esta comparação introduziu-a o Apóstolo não com falta de respeito, mas bem a propósito), fez da mesma massa um vaso de honra e outro de ignomí­nia. O vaso de ignomínia foi o primeiro a ser feito e depois o outro — o de honra, porque num só e mesmo homem, como já disse, está primeiro o que é reprovável, pelo qual devemos necessariamente começar, sem sermos obrigados a lá permanecer; e em seguida está o que e louvável aonde, avançando, chegaremos e, uma vez chegados, permaneceremos. Consequentemente, nem todo o homem mau será bom; mas ninguém será bom que antes não tenha sido mau, e quanto mais depressa se mudar para melhor, tanto mais depressa também se tornará notado o e substituirá o seu antigo nome pelo novo.

Está escrito que Caim fundou uma cidade; como peregrino que era, não a fundou, porém, Abel. É que a cidade dos santos é a do Alto, embora procrie cá cidadãos entre os quais ela vai peregrinando até que chegue o tempo do seu reino. Então ela reunirá a todos, ressuscitados nos seus corpos, dando-lhes o reino prometido onde reinarão para sempre com o seu Chefe, o Rei dos séculos.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] I Cor., XV, 46.

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