Em seguida devemos tratar da qualidade
de Cristo ressuscitado, E nesta questão discutem-se quatro artigos:
Art. 1 — Se Cristo depois da
ressurreição tinha um verdadeiro corpo.
Art. 2 — Se o corpo de Cristo ressuscitou
inteiro.
Art. 3 — Se o corpo de Cristo ressuscitou
glorioso.
Art. 4 — Se o corpo de Cristo devia ressuscitar
com cicatrizes.
Art.
1 — Se Cristo depois da ressurreição tinha um verdadeiro corpo.
O primeiro discute-se assim. Parece que
Cristo depois da ressurreição não tinha um verdadeiro corpo.
1. — Pois, um corpo verdadeiro não pode
coexistir com outro num mesmo lugar. Ora, o corpo de Cristo depois da
ressurreição coexistiu com outro corpo num mesmo lugar; pois, foi ter com os
seus discípulos, estando as portas fechadas, como refere o Evangelho. Logo,
parece que Cristo, depois da ressurreição não teve um verdadeiro corpo.
2. Demais. — Um corpo verdadeiro não se
desvanece aos olhos dos que o vêem, salvo se se corromper. Ora, o corpo de
Cristo desvaneceu-se aos olhos dos discípulos que o contemplavam, como diz o
Evangelho. Logo parece que Cristo depois da ressurreição não teve um verdadeiro
corpo.
3. Demais. — Todo corpo verdadeiro tem
uma figura determinada. Ora, o corpo de Cristo apareceu aos discípulos, de
outra forma, como está claro no Evangelho. Logo, parece que Cristo, depois da
ressurreição, não tinha um corpo verdadeiramente humano.
Mas, em contrário, diz o Evangelho, que tendo Cristo aparecido aos discípulos,
eles achando-se perturbados e espantados, cuidavam que viam algum espírito, por
pensarem que tinha um corpo, não verdadeiro, mas fantástico. E para sossegá-los
Cristo depois acrescentou: Apalpai e vê
de que um espírito não tem carne nem ossos como vós vedes que eu tenho.
Logo, não tinha um corpo fantástico, mas verdadeiro.
Como diz Damasceno, ressuscitar é próprio de quem caiu. Ora,
o corpo de Cristo caiu pela morte, por dele se ter separado a alma, que era a
sua perfeição formal. Por isso, para ser verdadeira a ressurreição de Cristo,
era necessário que o próprio corpo de Cristo de novo se lhe unisse à alma. E
como a verdadeira natureza do corpo lhe advém da forma, consequentemente, o
corpo de Cristo, depois da ressurreição, tanto foi um corpo verdadeiro, como
tinha a mesma natureza de antes. Se, ao contrário o seu corpo fosse fantástico,
a ressurreição não teria sido verdadeira, mas aparente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. —
O corpo de Cristo. depois da ressurreição, não por milagre, mas pela sua
condição gloriosa - dizem alguns — foi ter com os discípulos, estando
as portas fechadas, ocupando simultaneamente com outro corpo o mesmo lugar. O
facto, porém, de poder o corpo glorioso, em virtude de uma propriedade que lhe
seja inerente, coexistir com outro corpo num mesmo lugar, será discutido mais
adiante, quando tratarmos da ressurreição geral. Mas agora, no caso vertente,
basta dizermos que não foi pela natureza do corpo de Cristo, mas antes em
virtude da divindade que lhe estava unida, que chegou até os discípulos, embora
fosse verdade que entrou estando as portas fechadas. Por isso diz Agostinho,
num Sermão pascal, que alguns disputam e
perguntam como, sendo realmente corpo o que morreu na cruz e ressuscitou do
sepulcro, pôde entrar estando as portas fechadas? E responde: Se compreenderes o modo, verás que não houve
nenhum milagre. O que a razão não alcança a fé nos faz aceitar. E noutro
lugar: Ao corpo material, ao qual estava
unida a divindade, não podiam portas fechadas constituir um obstáculo; pois,
quem nasceu, sem causar detrimento à inviolabilidade da virgindade materna, bem
podia também entrar por portas fechadas. E o mesmo diz Gregório numa
homilia.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como dissemos,
Cristo ressuscitou para a vida imortal da glória. Ora, por disposição o corpo glorioso é espiritual, isto é,
sujeito do espírito, como diz o Apóstolo. Mas, para um corpo ser plenamente
sujeito do espírito é necessário que a totalidade da sua ação esteja sujeita à vontade
do espírito: Por outro lado, é pela acção
do objecto visível sobre a vista, que nós o vemos, como está claro no
Filósofo. Donde, quem quer que tenha um corpo glorificado tem o poder de ser
visto quando quiser e, quando não quiser, o de não o ser. Ora, Cristo, não só
pela condição do corpo glorioso, mas também por virtude da divindade - que pode
tornar milagrosamente invisíveis mesmo os corpos — teve esse poder.
Tal o caso de S. Bartolomeu, a quem foi milagrosamente concedido o poder de se
tornar visível ou não, conforme o quisesse. E diz a Escritura que Cristo se desvaneceu
aos olhos dos discípulos, não por se ter decomposto ou resolvido num ser
invisível, mas que, por vontade sua, se lhes desapareceu aos olhares, ou
estando ainda presente, ou por ter se separado deles pelo dom da agilidade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz
Severiano num Sermão pascal, ninguém deve
pensar que Cristo, com a sua ressurreição, mudou a forma do seu corpo. O que se
deve entender da disposição dos membros, pois nada de desordenado e disforme
havia no corpo de Cristo, concebido pelo Espírito Santo, que devesse ser
corrigido na ressurreição. Nesta, somente recebeu a glória da claridade.
Por isso no mesmo lugar se acrescenta: Mas,
a sua figura mudou, tornando-se de mortal, imortal; de modo que assim adquiriu
uma figura gloriosa, sem perder nada da sua substância real. — Nem, contudo apareceu aos discípulos sob
forma gloriosa; mas, como estava no seu poder tornar o seu corpo visível ou
invisível, assim também tinha o poder de manifestar-se aos olhos dos que o
contemplavam sob forma gloriosa, não gloriosa ou ainda mista, ou de qualquer
outro modo. Ora, basta uma pequena diferença para parecermos diferentes do que
somos.
Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.
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