Vol. 2
LIVRQ XIV
CAPÍTULO VIII
As três perturbações que os estóicos dizem haver na alma do sábio, com exclusão da dor ou da tristeza, que a fortaleza de alma devem considerar com o uma virtude.
Aquilo que os gregos chamam εύπαθείας, e a que Cícero chama em latim constantia, reduzem os estóicos a três «perturbações» da alma do sábio, pondo a vontade em lugar do desejo, o gozo em lugar da alegria e a precaução em lugar do temor. quanto à «doença» ou «dor», a que temos preferido chamar «tristeza» para evitar a ambiguidade, negaram eles que possa existir na alma do sábio. Dizem eles que a vontade aspira ao bem que o sábio pratica; que o gozo nasce da posse do bem que o sábio encontra em toda a parte; que a precaução evita o mal que o sábio deve evitar. quanto à tristeza ela diz respeito ao mal já sucedido — e, como são de parecer que nenhum mal pode acontecer ao sábio, julgam impossível que alguma destas coisas subsista na sua alma. É assim que eles falam: querer, gozar, precaver — apenas ao sábio pertencem; desejar, alegrar-se, temer, contristar-se — são próprios apenas do insensato. Aqueles três afectos são as «permanências» (constantiae); os quatro seguintes são, na opinião de Cícero, «perturbações» (perturbationes) ou, como lhes chama a maioria, «paixões» (passiones). Mas em grego, como disse, aquelas três chamam-se εύπάθειαι, e estas quatro πάθη.
Procurei saber, com a diligência que me foi possível, se esta m aneira de falar tinha correspondente nas Sagradas Escrituras e o que nelas encontrei foi este dito do profeta:
com o se os ímpios pudessem no mal experimentar mais gozo do que alegria, pois o gozo é propriamente dos bons e piedosos. Por sua vez esta frase do Evangelho:
parece ter este significado: ninguém pode querer qualquer coisa de mau ou vergonhoso, mas apenas desejá-la. E, por causa da frequência desta expressão, acabaram alguns intérpretes por acrescentar à frase a palavra bens (bona), ficando assim:
Pensaram esses intérpretes que desta forma evitavam que alguém pudesse desejar ser obsequiado com coisas desonestas tais como — para não falarmos de outras mais torpes — banquetes licenciosos e pudesse pensar que, correspondendo com coisas semelhantes, cumpria este preceito. Mas no Evangelho grego, donde se traduziu para latim, não se lê a palavra bens (bona) mas apenas:
Creio que ao dizer «quiserdes» (vultis), o Evangelho quis com isto dizer «bens» (bona) pois não disse «desejardes» (cupitis).
Nem sempre é preciso refrear a nossa língua com esta propriedade de termos; mas um a vez por outra convém falar com propriedade; quando lemos os autores cuja autoridade não nos é permitido afastar, tomemos as suas palavras no sentido próprio sempre que uma correcta interpretação não nos mostrar outra saída. Tais são as passagens que, como exemplos, tiramos do Profeta ou do Evangelho. Quem é que na verdade ignora que os ímpios exultam de alegria? E, todavia,
£ porquê, senão porque «gozar» é algo de diferente ao tomar-se a palavra no sentido próprio e restrito? Pela mesma razão quem poderá negar que não é justo o m andamento dado aos homens para que façam aos outros o que eles desejam que se lhes faça — para que não se deleitem mutuamente com a torpeza do prazer ilícito? E, todavia, é justíssimo e muito salutar este preceito:
E porque é que assim é senão porque desta passagem se usou no sentido próprio da palavra «vontade» que não pode ser tomada em mau sentido? Numa linguagem mais corrente, — que é a mais frequente na conversação habitual — não se diria:
se não houvesse também uma vontade má, distinta pela sua perversão daquela que os anjos proclamaram ao dizer:
Seria, de facto, uma redundância acrescentar bonae (de boa) se a vontade só pudesse ser boa. Teria o Apóstolo feito um grande elogio da caridade ao dizer que ela não se regozija com a iniquidade se a mentira não experimentasse esse prazer?
Os escritores profanos em pregam indiferentemente estas palavras. Efectivamente, o tão brilhante orador que foi Cícero diz:
Uma vez que ele em prega a palavra cupio (desejo) no bom sentido, haverá alguém tão ignorante que entenda que ele não devia ter dito cupio (desejo) mas volo (quero)? Em Terêncio, pelo contrário, um adolescente libertino, ardendo em insana lascívia, diz:
A esta resposta de um seu servo mais sensato mostra bem que esta vontade é um capricho sensual, ao dizer, realmente, ao seu senhor:
Quão melhor seria para ti, se te esforçasses por arrancar
do teu coração esse amor, do que inutilmente assanhares a tua sensualidade com tais propósitos.[xi]
do teu coração esse amor, do que inutilmente assanhares a tua sensualidade com tais propósitos.[xi]
E que estes escritores em pregaram a palavra gozo também no m au sentido, testemunha-no-lo o verso Vergiliano que tão concisamente resume estas quatro «perturbações»:
O mesmo escritor refere ainda
Assim querem, precavêem-se e gozam, ou, dizendo o mesmo por outras palavras, assim desejam, receiam e se alegram tanto os bons com o os maus; mas os primeiros bem e os últimos mal, conforme têm uma recta ou perversa vontade.
A própria tristeza, em substituição da qual os estóicos nada admitem na alma do sábio, também ela é empregada no bom sentido, sobretudo nos nossos escritores. Assim o Apóstolo louva os Coríntios por se terem contristado como a Deus apraz. Mas talvez alguém venha dizer que o Apóstolo se congratulou com eles porque se entristeceram por arrependimento — e tal tristeza só nos que pecaram é que pode existir. Foi assim que ele disse:
Vejo que aquela carta vos contristou, embora por pouco tempo. Mas agora
alegro-me, não por terdes estado tristes, mas porque essa tristeza é para emenda. Contristastes-vos realmente
como a Deus apraz, sem da minha parte sofrerdes qualquer pena. Porque a
tristeza como a Deus apraz produz um salutar arrependimento que não é de
desprezar — ao passo que a tristeza do mundo produz a morte. Eis como essa
tristeza, como a Deus apraz, produz em vós tão grande empenho![xiv]
A isto podem os estóicos responder, em defesa dos seus pontos de vista, que a tristeza parece que é útil para cada um se arrepender de ter pecado — mas que ela não pode existir na alma do sábio pois que esta não cai em pecado cujo arrependimento o entristeceria, ou em qualquer outro mal cujo sentimento o poderia contristar. Conta-se também que Alcibíades (se não me falha a memória do nome da pessoa), que se considerava feliz, chorou quando Sócrates, num a discussão, o convenceu de que era infeliz porque era estulto. Esta estultícia foi, portanto, para ele a causa de uma tristeza útil e desejável que leva o homem a afligir-se por ser o que não deve ser. Mas os estóicos dizem que quem não pode nunca estar triste é o sábio, e não o estulto.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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