04/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO XIII

Nele se demonstra que, entre os homens, a morte constitui um castigo e procede do pecado de Adão.

CAPÍTULO I

A mortalidade é consequência da queda do primeiro homem.

Resolvidas questões tão difíceis como as da origem do nosso século, e do começo do género humano, o plano da obra leva-nos a tratar da queda do primeiro, ou antes, dos primeiros homens, bem como da origem e transmissão da morte na humanidade. Deus não tinha criado os homens da mesma maneira que os anjos, isto é, incapazes de morrer mesmo que pecassem, mas, depois de terem cumprido o dever de obediência, deviam, sem passar pela morte, obter a imortalidade dos anjos e a sua eternidade bem-aventurada. Todavia, se desobedecessem, a morte seria o seu justo castigo — com o, de resto, já dissemos no livro precedente.

CAPÍTULO II

Da morte que pode atingir a alma destinada, todavia, a, de algum modo, viver sempre e da morte a que está sujeito o corpo.

Mas vejo que é preciso examinar com um pouco mais de cuidado a natureza da morte. Embora a alma, de facto, seja realmente imortal, também ela tem, porém, a sua morte própria. Diz-se que é imortal porque, sob qualquer forma, por pequena que seja, não deixa de viver e de sentir — ao passo que o corpo é mortal porque pode ser privado de toda a vida, de modo nenhum podendo viver por si mesmo. A alma morre quando Deus a abandona, assim como o corpo morre quando a alma o deixa. Por isso a morte da alma e do corpo, isto é, do homem todo, surge quando a alma, abandonada por Deus, abandona por sua vez o corpo. E que então nem ela vive já de Deus nem o corpo vive já da alma.

A esta morte do homem todo segue-se a morte a que a palavra sagrada chama, com toda a sua autoridade, a segunda morte. E a esta que se refere o Salvador quando diz:

Temei aquele que tem o poder de perder o corpo e a alma na geena.
[i]

E, como isto não pode acontecer antes de a alma estar unida ao corpo, de tal forma que nada os possa separar mais, — poderá parecer estranho afirmar que o corpo perece com uma morte em que não é abandonado pela alma e que conserva a vida e os sentidos no meio dos tormentos. Nesse castigo supremo e eterno, de que oportunamente trataremos com mais pormenores, bem se pode dizer que a alma morre porque já não vive de Deus; mas como é que se pode dizer que o corpo morre se vive ainda da alma? De facto, ele não poderá sentir de outra maneira os tormentos corporais que hão-de seguir-se à ressurreição. Sendo a vida, qualquer vida, um bem, e a dor um mal – será que teremos então de dizer que não vive um corpo no qual a alma não é a causada vida, mas da dor?

A alma vive, pois, de Deus quando vive no bem.

Não pode, na verdade, viver no bem se Deus nela não operar o que é bom. Mas o corpo vive da alma quando o corpo nele, viva ou não ela de Deus. Avida que há no corpo dos ímpios não é, portanto, vida da alma, mas do corpo; e essa vida até as almas mortais (isto é abandonadas de Deus), apodem dar, embora nelas não cesse a sua própria vida pela qual são imortais.

Mas na condenação derradeira, embora o homem não deixe de sentir, todavia, melhor é chamar-lhe morte do que vida, visto esta sensibilidade não se tornar agradável pelo prazer nem salutar pelo repouso, mas antes penosa pela dor. E chama-se-lhe «segunda» porque se segue a uma primeira em que se realiza a ruptura de naturezas unidas, quer de Deus e da alma, quer da alma e do corpo. Da primeira parte do corpo se pode, pois, que é um bem para os bons e um mal para os maus; mas a segunda, como não é, com certeza, própria de nenhum bem, para ninguém é boa.

CAPÍTULO III

Se a morte que, devido ao pecado dos primeiros homens, atinge todos os homens, constitui também para os santos pena do pecado.

Surge, porém, um a questão que se não deve escamotear: — a morte, separação da alma e do corpo, é, na realidade, um bem para os bons? Se assim é com o se poderá sustentar que ela é também a pena do pecado? Com certeza que, se os primeiros homens não tivessem pecado, não a teriam suportado. Com o poderá então ser um bem para os bons se não pode acontecer senão aos maus? Mas se ela não pode acontecer senão aos maus, não devia ser um bem para os bons, mas simplesmente não ser. Realmente, porquê um a pena para quem nada tem que deva ser punido?

Deve-se, pois, reconhecer que os primeiros homens foram, na verdade, criados para não sofrerem qualquer género de morte se não tivessem pecado. Mas tendo-se tornado os primeiros pecadores, foram punidos com a morte e, além disso, todos os que da sua estirpe viessem deviam doravante sofrer esse castigo. É que deles nada podia nascer deles diferente. Realmente, a magnitude da sua falta acarretou uma sanção que alterou para pior a sua natureza: o que não passava de uma pena para os primeiros homens pecadores, tornou-se natureza para todos os seus descendentes. Porque o homem não nasce do homem como o homem nasceu do pó. O pó foi matéria para fazer o homem — mas o homem, para o homem que gera, é um pai. Assim a terra não é carne embora de terra tenha sido a carne feita — e o que é o pai, isto é, o homem, isso mesmo é o filho, o homem. Portanto, todo o género humano que devia propagar-se pela mulher estava no primeiro homem quando essa união dos cônjuges recebeu a sentença divina da sua condenação. E aquilo em que se tornou o homem , não quando foi criado mas quando pecou e foi castigado, transmitiu-o ele aos seus descendentes no que diz respeito à origem do pecado e da morte.

A verdade é que o homem não foi reduzido pelo pecado e pela pena a esse embotamento e debilidade de corpo e de espírito que notamos nas crianças (Deus quis que fossem com o os primórdios dos cachorrinhos os dos homens cujos pais se tinham rebaixado à vida e morte dos
animais, com o está escrito:

O homem quando era levantado em dignidade não compreendeu; comparou-se aos animais carentes de entendimento e tomou-se a eles semelhante, [ii]

com a diferença de que, no exercício e movimento dos seus membros e no instinto das apetências e das defesas, vemos que as crianças são mais débeis que os mais tenros filhotes dos animais — tudo se passando como se a energia humana se elevasse tanto mais acima dos outros viventes quanto mais tempo conservou retido e contraído o seu ímpeto como a flecha no arco bem retesado; o primeiro homem não foi, portanto, precipitado ou lançado, por sua presunção culpável e por justa condenação, para estes começos infantis. Mas a natureza humana ficou nele de tal forma viciada e mudada que sofre nos seus membros a desobediência e a revolta da concupiscência e se sente necessariamente ligada à morte — e assim, aquilo em que se tom ou pelo crime e pelo castigo, é isso mesmo que gera, isto é: seres sujeitos ao pecado e à morte. As crianças do laço do pecado são libertadas pela graça de Cristo mediador, não podem sofrer senão essa morte que separa a alma do corpo; mas, libertados da dívida do pecado, não passam pela segunda morte que é castigo sem fim.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Mt X, 28.
[ii] Salmo XLVIII, 13

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