30/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO XII

CAPÍTULO XIX

Contra os que afirmam que nem a ciência de Deus é capaz de abarcar o infinito.

Quanto aos que dizem que nem a ciência de Deus pode abarcar o infinito, só falta, para se afundarem na voragem da sua profunda impiedade, que tenham a ousadia de afirmar que Deus não conhece todos os números. Que eles são realmente infinitos — é absolutamente certo.
Porque em qualquer número que julgues ter chegado ao fim, esse mesmo podes tu aumentá-lo, não digo acrescentando-lhe mais um, mas, por maior que seja e por enorme quantidade que expresse, pode, em razão da sua natureza e graças à ciência dos números, duplicar-se e até multiplicar-se. Aliás, cada número está limitado pelas suas propriedades de forma que nenhum pode ser idêntico ao outro. São desiguais e diferentes entre si, cada um deles finito singularmente e todos infinitos como totalidade. Assim Deus não chegaria a conhecê-los todos devido à sua infinidade e a sua ciência apenas abarcaria um a certa quantidade de números ignorando o resto: Qual é o insensato capaz de sustentar uma afirmação destas? Eles não se atreverão a desprezar os números e a dizer que eles nada têm que ver com a ciência de Deus. Platão, que entre eles goza de grande autoridade, apresenta Deus a formar o mundo com números. E entre nós lê-se o que por Deus foi
dito:

Tudo dispuseste com medida, número e peso.[i]


E a propósito diz o profeta:

Produziu o século com número;[ii]

e o Salvador declara no Evangelho:

Todos os nossos cabelos estão numerados.[iii]

Longe de nós, portanto, duvidar de que todo o número não é conhecido daquele de quem canta o salmo:

Cuja inteligência não tem medida.[iv]

A infinidade do número, embora não exista número algum infinito de números, não é, todavia, incompreensí­vel Àquele cuja inteligência não tem número. Pois bem, se tudo o que a ciência abarca está definido e limitado pela compreensão do sábio, certamente que a infinidade é, decerta maneira inefável, finita para Deus porque não é incompreensível para a sua própria ciência. Por isso, se a infinidade dos números não pode ser infinita para a ciência de Deus que a contém, a essa infinidade — quem, afinal, somos nós, fracos homens, para ousarmos fixar limites à ciência divina, argumentando que, se as coisas temporais não se estão repetindo em ciclos periódicos, Deus na criação dos seres não é capaz de prever todos os que vai fazer, nem a todos conhecer depois de feitos? A sua sabedoria, múltipla na sua simplicidade e multiforme na sua uniformidade, compreende todas as coisas incompreensíveis com uma com preensão tão incompreensível que, se sempre quisesse estar criando obras novas, todas diferentes das precedentes, não poderia fazê-lo de forma imprevista e desordenada, nem as planearia de um momento para o outro, mas abarcá-las-ia a todas na sua eterna presciência.


CAPÍTULO XX

Os séculos dos séculos.

Aquilo a que se chama «os séculos dos séculos» não me atrevo a definir 
se isto designa os séculos ligados em conjunto numa cadeia contínua, mas diferentes uns dos outros e fluindo numa diversidade bem ordenada, — permanecendo sem fim na sua bem-aventurada imortalidade apenas aqueles que se vão libertando das suas misérias, ou então se se deve entender por «séculos dos séculos» os séculos que se mantêm estáveis e inquebrantáveis na sabedoria de Deus e são com o que os geradores dos séculos que fluem no tempo.

Talvez, de facto, se possa dizer «o século» por «os séculos», de maneira que «o século do século» tenha o mesmo sentido que «os séculos dos séculos», como «o Céu do Céu» quer dizer o mesmo que «os Céus dos Céus». Porque Deus chamou «Céu» ao firmamento sobre o qual estão as águas e, contudo, o salmo diz
:
E que as águas que estão acima dos céus louvem o nome do Senhor'.[v]

E uma questão muito profunda saber se serve uma destas explicações da expressão «séculos dos séculos», ou se haverá outra para compreender tal expressão. O que tratamos agora permite-nos remeter o seu exame para mais tarde — quer para que possamos chegar a uma solução, quer para que um estudo atento nos torne mais prudentes e cautelosos, não se vá afirmar à toa alguma coisa acerca de tão obscuro problema. Por agora combatemos a opinião que sustenta os ciclos eternos e necessários, reconduzindo periodicamente os mesmos seres à existência. Qualquer que seja, porém, o verdadeiro sentido da expressão «séculos dos séculos», ela não tem relação alguma com 
esses ciclos; porque:

— quer com isso se entenda os séculos que, sem retorno dos mesmos factos, fluem encadeados uns nos outros na maior ordem, de tal maneira que as almas libertadas perseveram na beatitude e nunca mais caem na desgraça

— quer se entenda por «séculos dos séculos» as causas eternas que regem os seres temporais — em ambos os casos ficam excluídos os tais ciclos que fazem voltar novamente as coisas. A vida dos santos refuta-o rotundamente.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Sab. Salomão, XI, 21.
[ii] Isaías, XL, 26 (Setenta)
[iii] Mt X, 30.
[iv] Salmo CXLVI, 5.
[v] Salmo CXLVII, 4.

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