Vol. 2
LIVRO XI
CAPÍTULO XXXIII
Duas sociedades angélicas distintas e opostas que, com razão, se podem chamar luz e trevas.
Que alguns anjos pecaram e foram precipitados nos abismos deste mundo que para eles se tornou como que um cárcere até à sua derradeira condenação no dia do juízo — é o que clarissimamente mostra o apóstolo Pedro quando diz que Deus não poupou os anjos pecadores e os encerrou nos tenebrosos cárceres do Inferno, conservando-os para serem castigados no dia do juízo. Quem pode duvidar de que entre estes anjos pecadores e os outros estabeleceu Deus, na sua presciência, ou de facto, a separação e que, com justiça, aos outros chamou luz? Mesmo nós, que vivem os ainda na fé e na esperança de nos tornarmos a eles iguais, sem ainda o termos conseguido, somos já apelidados de luz pelo Apóstolo ao dizer:
Mas que os anjos desertores têm sido com toda a clareza chamados trevas, sem dúvida que o notam todos os que crêem ou sabem que eles são piores que os homens infiéis.
E por isso que, ainda que fosse preciso ver uma outra luz nesta passagem desse livro onde se lê:
e outras trevas onde está escrito:
— para nós, todavia, há duas cidades de anjos:
uma que goza de Deus, e outra que intumesce de
orgulho;
orgulho;
uma à qual se diz:
e outra cujo chefe diz:
uma abrasada no santo amor de Deus, e outra ardendo num amor impuro da sua própria grandeza. E porque, segundo está escrito:
uma habita no mais alto dos Céus
— a outra foi de lá expulsa e anda a causar a
desordem nas regiões inferiores do céu aéreo;
uma é tranquila na piedade luminosa
— a outra turbulenta nas suas tenebrosas
paixões;
uma, atenta aos sinais de Deus, socorre com clemência e executa com justiça
— a
outra, sob o aguilhão do orgulho, ferve em desejo de dominar e de prejudicar;
uma, por todo o bem que pretende fazer, põe-se ao serviço da bondade de Deus
—
a outra, com medo de não fazer todo o mal que pretende, é retida pelo freio do poder
de Deus;
uma faz troça da segunda quando, com pesar desta, tira proveito das suas perseguições — esta inveja a primeira ao vê-la recolher os seus peregrinos.
Portanto, para nós estas duas cidades de anjos, desiguais e contrárias, uma boa por sua natureza e vontade, a outra boa por sua natureza e má por sua vontade, cremos, segundo outros testemunhos mais claros das Sagradas Escrituras, que, ainda nesse livro chamado Génesis, elas são designadas pelas palavras luz e trevas. Mesmo que quem isto escreveu lhes tenha dado nesta passagem outra significação, não creio que tenha sido inútil ter sondado a obscuridade do seu pensamento: se não penetrámos na intenção do autor desse livro, pelo menos não nos afastámos da regra de fé que é tão bem conhecida dos fiéis através de outras passagens das Sagradas Escrituras com a mesma autoridade. Embora, na verdade, as obras de Deus aqui mencionadas sejam corpóreas, não há dúvida de que têm certa semelhança com as realidades espirituais conforme disse o Apóstolo:
Se é assim que também pensa quem isto escreveu, a nossa intenção alcançou o perfeito fim da disputa; na verdade, não é de crer que um homem de Deus, penetrado de sabedoria divina, ou melhor, o Espírito de Deus nele, ao enumerar as obras de Deus até ao seu completo acabamento no sexto dia, tenha deixado de mencionar os anjos, qualquer que seja o sentido da passagem:
quer «no princípio» (in principio) queira dizer que foram os primeiros a serem criados — quer «no princípio» queira dizer (o que é mais provável) que Deus os tenha feito no Verbo, seu Filho único. Estas palavras «o Céu e a Terra»
— designam a criação universal não só do espiritual mas
também do corpóreo, ou então (o que é mais provável) designam as duas grandes partes do mundo que englobam todos os seres criados: de modo que a Escritura, primeiro, apresenta-nos o conjunto e, logo a seguir, as partes do mundo segundo o número místico dos seis dias.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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