O vetusto termo helénico «arkhe» significava
fundamentalmente isso que, anipotético, primeiríssimo, literalmente «fora de
série», servia de razão de ser a tudo o mais. Nas suas diferentes formas, «isso»
era o divino. Mais do que as variações, poeticamente interessantes todas elas,
desse mesmo princípio, interessava o sentido que «isso» tinha como o fundamento
absoluto de tudo o mais». «Isso» era o que, absolutamente, se opunha ao nada.
De todas as formas, guardámos estruturalmente em nossa civilização a versão
platónica de um bem actual e infinito positivamente que, ao modo análogo do sol,
irradiava ser de forma totalmente gratuita. Com as mudanças necessárias à
constituição de versões próprias, foi este ícone de «o princípio» que
guardámos.
Até que se resolveu – parece que de forma incausada –
substituir o princípio por valor, em termos universais; princípios por valores,
em termos mundanos.
Ora, há uma diferença abissal entre uma coisa e a outra. O
princípio é absolutamente objectivo, dispensando mesmo, em termos teóricos, um
sujeito que o pense (embora para que se possa tal dizer tenha de haver um
sujeito). Numa analogia pobre e de baixo custo intelectual, podemos dizer que o
princípio funciona como a chamada «lei dos graves» (na realidade, é o
«princípio natural dos graves»): na relação comigo como sujeito, posso eu
julgar que a gravidade não me deve «puxar» para o centro de massa da Terra (e
outros), que a gravidade continuará sendo o que é, enquanto a natureza for o
que é (parece mesmo que a natureza é o conjunto destes mesmos princípios na
coordenação com isso de que são princípios).
O valor, por sua vez, depende sempre de um qualquer
avaliador. Sem este avaliador e o seu ato de avaliação, um valor não pode ser
um «valor». Será outra coisa qualquer, mas um «valor» não é. Ora, sem que se
recorra à absoluta objectividade do princípio, quando se avalia seja o que for,
não há como proceder a tal ato de forma que não seja submetido ao arbítrio do
avaliador. Este pode ser sempre qualquer, daqui sendo implicado que a avaliação
possa ser sempre uma qualquer. Pode até ser “divinamente” justa. Mas como
saber? Estamos no campo minado pela invencível dúvida, como muito bem verificou
o velho Descartes.
Não admira que a nossa dita civilização esteja no estado
caótico em que efectivamente está insistindo em ser fundada sobre valores. É o
preço a pagar por se ter prescindido da objectividade dos princípios e se ter
optado pela subjectividade inultrapassável dos valores
O valor vale sempre e só o que «valer» o ato do avaliador
e este ato vale o que vale o avaliador precisamente como avaliador. Quem avalia
o que o avaliador vale como avaliador?
A tentação de dizer: alguém independente da valoração.
Mas, então, não terá de ser alguém que se apoie em algo como um princípio?
Sendo assim, para que serve a valoração, se tem de ser ela própria valorada
segundo princípios, ou nunca se poderá dizer que valha algo de positivo?
Poderíamos complicar um pouco mais, porque o assunto a
tal se presta. Mas o que nos interessa mostrar é que não admira que a nossa
dita civilização esteja no estado caótico em que efectivamente está (parece que
apenas a guarda pretoriana do caos pensa que isso que guarda não é caótico),
insistindo em ser fundada sobre valores. É o preço a pagar por se ter
prescindido da objectividade dos princípios e se ter optado pela subjectividade
inultrapassável dos valores.
E, não, não são as buscas de consensos que podem
substituir a ausência de princípios. O consenso não é objectivo senão como uma
espécie de algoritmo político obtido por uma operação qualquer de integração de
subjectividades. O que resulta é tão subjectivo quanto cada uma das partes. Uma
assembleia não é objectiva senão nos resultados do que através do algoritmo
subjectivo das suas decisões – consensuais ou não – decide. Não nos esqueçamos
do algoritmo de consensualidade entre suficientes alemães capaz de em janeiro
de 1933 levar Hitler ao poder.
Foi um ato de valoração, que valorou positivamente os novos
valores propostos em Mein Kampf. Poucos perceberam ou quiseram perceber que
tais valores violavam mortalmente princípios como o da universal dignidade
humana.
É tempo de regressar à objectividade dos princípios.
Poder-se-ia começar pelo «imperativo categórico» kantiano: laico e anticaótico.
Américo Pereira, Universidade Católica Portuguesa,
Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 16.01.2017
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