01/03/2017

Leitura espiritual

Civita Dei
A CIDADE DE DEUS 

Vol. 1

LIVRO VIII

CAPÍTULO XX

Será de crer que os deuses bons preferem comunicar com os demónios a fazê-lo com os homens?

Realmente há um motivo urgente e dos mais prementes que exige a mediação dos demónios entre os deuses e os homens: o de haver quem apresente os desejos dos homens aos deuses e o de haver quem traga destes o favor aos homens. Que motivo é esse? Qual a importância desta necessidade? É que, dizem, nenhum deus se pode misturar com o homem.

Preclara santidade, não há dúvida, a de um deus que não tem contactos com o homem suplicante, mas os tem com um demónio arrogante;
não se põe em contacto com o homem penitente, mas fá-lo com o demónio enganador;
não contacta com o homem que se refugia na divindade, mas comunica com o demónio que se finge divindade;
não se mistura com o homem que pede perdão, mas mistura-se com o demónio que aconselha a corrupção;
não comunica com o homem que nos seus livros filosóficos expulsa os poetas da cidade bem organizada, mas comunica com o demónio que solicita aos príncipes e aos pontífices da cidade que, em cena, se representem as galhofas dos poetas;
não se mistura com o homem que proíbe que se inventem crimes à conta dos deuses, mas põe-se em contacto com o demónio que se compraz nesses falsos crimes;
não se põe em comunicação com o homem que castiga os crimes da magia com leis justas, mas comunica com o demónio que ensina e pratica as artes mágicas;
não se mistura com o homem que procura não imitar os demónios, mas mistura-se com o demónio que espreita a ocasião de enganar o homem.

CAPÍTULO XXI

Será que os deuses se utilizam dos demónios como mensageiros e intérpretes? Será que não sabem que são enganados? Ou querem sê-lo?

Tamanho absurdo, tamanha indignidade, não há dú­vida de que se impõe fortemente, se, realmente, os deuses etéreos que se ocupam das questões humanas, nunca vierem a saber o que fazem os homens, se os demónios aéreos não lho comunicarem, — pois que o éter está longe da terra e suspenso lá no alto, mas o ar, esse está contíguo ao éter e à terra.

Ó sabedoria admirável! Que pensarão estes filósofos de tais deuses, que têm por óptimos, senão que eles se ocupam das questões humanas apenas para que pareça que não são indignos de culto — mas que, devido à distância dos elementos, eles as ignoram? Julgam que os demónios são indispensáveis e que, portanto, se lhes deve prestar culto já que é por eles que os deuses podem saber o que se passa entre os homens e prover às suas necessidades quando for preciso. Porque assim é, o demónio é mais conhecido dos deuses bons devido à proximidade do seu corpo do que o homem devido à bondade da sua alma. Que deplorável estupidez! Ou antes — que ridícula e detestável vacuidade, para não dizer vã divindade! Realmente, se pelo seu espírito, livre de todo o obstáculo corporal, os deuses podem ver o nosso espírito, não terão necessidade para isso dos demónios como intermediários. Mas se é por intermédio dos corpos, das manifestações corporais da alma, (tais como a linguagem, a fisionomia, o gesto), que os deuses etéreos percebem — e daí inferem o que os demónios lhes anunciam — então podem ser ludibriados pelas mentiras dos demónios. Mas se a divindade não pode ser enganada pelos demónios, também a mesma divindade não pode ignorar o que fazemos.

Eu quereria, portanto, que me dissessem então:
— se os demónios comunicaram aos deuses que as fantasias dos poetas acerca dos crimes dos deuses desagradaram a Platão e se os mesmos demónios esconderam aos deuses que se compraziam com tais crimes;
— ou se se calaram acerca destes dois pontos, preferindo deixar os deuses na ignorância do caso;
— ou se lhes revelaram estes dois pontos — a piedosa sabedoria de Platão a respeito dos deuses e a sua própria libertinagem ultrajante para com os deuses;
— ou então se lhes encobriram as decisões de Platão de proibir que a licenciosa impiedade dos poetas desonrasse os deuses com pretensos crimes sem que eles por sua vez, nem temessem nem se envergonhassem de revelar o seu iníquo amor pelos jogos cénicos que celebram as ignomí­nias dos deuses.

Escolham a resposta que quiserem a estas quatro questões que lhes pus; mas reparem no mal que pensam dos deuses bons, seja qual for a resposta.

Se escolherem a primeira, terão que conhecer que não foi permitido aos deuses bons comunicarem com o bom Platão quando este procurava proibir que tais deuses fossem injuriados, mas era-lhes permitido comunicar com os demónios quando estes se compraziam com essas injú­rias. Realmente, os deuses bons não conheciam este homem bom, deles tão distante, senão por intermédio dos demónios maus a quem não podiam conhecer apesar de serem vizinhos.

Se escolherem o segundo e disserem que ambos os casos tinham sido ocultados pelos demónios de maneira a que os deuses ignorassem totalmente não só a religiosíssima lei de Platão, mas também a sacrílega complacência dos demónios — que é que de útil podem os deuses conhecer acerca dos homens por intermédio dos demónios mensageiros, se nem sequer conhecem as decisões que em sua honra tomou a piedade dos homens bons contra o desregramento dos demónios maus?

Se escolherem o terceiro e responderem que os deuses conheceram por mediação dos demónios, não só a decisão de Platão de proibir os ultrajes aos deuses, mas também a malícia dos demónios que exultam de alegria perante esses ultrajes — constituirá isso uma mediação ou um insulto? Os deuses ouvem uma coisa e outra, de uma e de outra tomam conhecimento — e não expulsam da sua presença os malignos demónios cujos desejos e actos se opõem à dignidade dos deuses e ao espírito religioso de Platão, e, pelo contrário, transmitem ao bom e distante Platão os seus benefícios por intermédio destes perversos vizinhos? De tal modo estão sujeitos a esta como que prisão dos elementos que podem aliar-se aos seus caluniadores, mas não o podem fazer com os que os defendem. Conhecem uma e outra — a calúnia e a defesa — mas não podem mudar o peso do ar e da terra.

Se escolherem o último, o quarto, escolhem o que de todos é o pior. Se os demónios deram conhecimento aos deuses das criminosas ficções dos poetas acerca deles imortais e das ultrajantes chacotas teatrais — e do ardente apetite e da deleitosa complacência que experimentam em tudo isto; se, por outro lado, lhes esconderam que Platão, com filosófica gravidade, achou por bem que todas estas coisas deviam ser expulsas de uma república excelente — quem pode suportar que os deuses bons se vejam forçados a conhecer por tais intermediários os males dos perversos, mesmo os dos próprios intermediários, e não podem conhecer os bens dos filósofos, àqueles contrários, sendo certo que aqueles são uma injúria para com os deuses e que estes são para os mesmos deuses uma honra?

C A P ÍT U L O XXII

Contra a opinião de Apuleio, impõe-se a rejeição do culto dos demónios.

Pois que é impossível escolher qualquer das quatro hipóteses sem fazer dos deuses tão mau conceito, só nos resta deixar de crer naquilo que Apuleio se esforça, com os filósofos do seu parecer, por nos convencer: — que, entre os deuses e os homens, os demónios exercem o papel de mensageiros e intérpretes para levarem aos deuses os nossos pedidos e deles nos trazerem o seu auxílio. Pelo contrário, são espíritos ávidos de malfazer, totalmente alheados da justiça, inchados de soberba, pálidos de inveja, destros em enganos. Habitam certamente no ar porque precipitados das alturas do Céu Superior devido a falta inexplicável, foram condenados a habitarem esta espécie de prisão apropriada ao seu estado. Todavia, lá porque o ar está acima da terra e das águas, nem por isso são superiores em mérito aos homens. Estes ultrapassam-nos à vontade, não pelo seu corpo terrestre, mas pela piedade da sua mente que escolheu para seu amparo o verdadeiro Deus.

Sem dúvida que dominam muitos homens indignos de participarem da verdadeira religião, tornando-os seus prisioneiros e escravos. A maioria destes homens deixou-se persuadir de que os demónios eram deuses devido ao aspecto falsamente miraculoso dos seus actos e das suas predições. Mas outros, reparando nos seus vícios com um pouco mais de atenção e de cuidado, não puderam admitir a sua divindade. É por isso que os demónios se fingiram intermediários entre os deuses e os homens e intercessores dos seus benefícios. Pelo menos esta honra, julgaram que lha não deviam recusar aqueles que não acreditavam na sua divindade, já que eram maus e os deuses são todos bons; todavia não ousavam declará-los totalmente indignos das honras divinas com receio sobretudo de ofenderem povos que viam inveterados na superstição e entregues ao seu culto com tantos ritos e templos.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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