Vol. 1
LIVRO
VIII
CAPÍTULO XX
Será de crer que os deuses
bons preferem comunicar com os demónios a fazê-lo com os homens?
Realmente
há um motivo urgente e dos mais prementes que exige a mediação dos demónios
entre os deuses e os homens: o de haver quem apresente os desejos dos homens
aos deuses e o de haver quem traga destes o favor aos homens. Que motivo é
esse? Qual a importância desta necessidade? É que, dizem, nenhum deus se pode
misturar com o homem.
Preclara
santidade, não há dúvida, a de um deus que não tem contactos com o homem
suplicante, mas os tem com um demónio arrogante;
não se põe em contacto com o homem penitente,
mas fá-lo com o demónio enganador;
não contacta com o homem que se refugia na
divindade, mas comunica com o demónio que se finge divindade;
não se mistura com o homem que pede perdão,
mas mistura-se com o demónio que aconselha a corrupção;
não comunica com o homem que nos seus livros
filosóficos expulsa os poetas da cidade bem organizada, mas comunica com o
demónio que solicita aos príncipes e aos pontífices da cidade que, em cena, se
representem as galhofas dos poetas;
não se mistura com o homem que proíbe que se
inventem crimes à conta dos deuses, mas põe-se em contacto com o demónio que se
compraz nesses falsos crimes;
não se põe em comunicação com o homem que
castiga os crimes da magia com leis justas, mas comunica com o demónio que
ensina e pratica as artes mágicas;
não se mistura com o homem que procura não
imitar os demónios, mas mistura-se com o demónio que espreita a ocasião de
enganar o homem.
CAPÍTULO XXI
Será que os deuses se
utilizam dos demónios como mensageiros e intérpretes? Será que não sabem que
são enganados? Ou querem sê-lo?
Tamanho
absurdo, tamanha indignidade, não há dúvida de que se impõe fortemente, se,
realmente, os deuses etéreos que se ocupam das questões humanas, nunca vierem a
saber o que fazem os homens, se os demónios aéreos não lho comunicarem, — pois
que o éter está longe da terra e suspenso lá no alto, mas o ar, esse está
contíguo ao éter e à terra.
Ó
sabedoria admirável! Que pensarão estes filósofos de tais deuses, que têm por
óptimos, senão que eles se ocupam das questões humanas apenas para que pareça
que não são indignos de culto — mas que, devido à distância dos elementos, eles
as ignoram? Julgam que os demónios são indispensáveis e que, portanto, se lhes
deve prestar culto já que é por eles que os deuses podem saber o que se passa
entre os homens e prover às suas necessidades quando for preciso. Porque assim
é, o demónio é mais conhecido dos deuses bons devido à proximidade do seu corpo
do que o homem devido à bondade da sua alma. Que deplorável estupidez! Ou antes
— que ridícula e detestável vacuidade, para não dizer vã divindade! Realmente,
se pelo seu espírito, livre de todo o obstáculo corporal, os deuses podem ver o
nosso espírito, não terão necessidade para isso dos demónios como
intermediários. Mas se é por intermédio dos corpos, das manifestações corporais
da alma, (tais como a linguagem, a fisionomia, o gesto), que os deuses etéreos
percebem — e daí inferem o que os demónios lhes anunciam — então podem ser
ludibriados pelas mentiras dos demónios. Mas se a divindade não pode ser
enganada pelos demónios, também a mesma divindade não pode ignorar o que
fazemos.
Eu quereria, portanto, que me dissessem
então:
— se os demónios comunicaram aos deuses que
as fantasias dos poetas acerca dos crimes dos deuses desagradaram a Platão e se
os mesmos demónios esconderam aos deuses que se compraziam com tais crimes;
— ou se se calaram acerca destes dois pontos,
preferindo deixar os deuses na ignorância do caso;
— ou se lhes revelaram estes dois pontos — a
piedosa sabedoria de Platão a respeito dos deuses e a sua própria libertinagem
ultrajante para com os deuses;
— ou então se lhes encobriram as decisões de
Platão de proibir que a licenciosa impiedade dos poetas desonrasse os deuses
com pretensos crimes sem que eles por sua vez, nem temessem nem se
envergonhassem de revelar o seu iníquo amor pelos jogos cénicos que celebram as
ignomínias dos deuses.
Escolham
a resposta que quiserem a estas quatro questões que lhes pus; mas reparem no
mal que pensam dos deuses bons, seja qual for a resposta.
Se
escolherem a primeira, terão que conhecer que não foi permitido aos deuses bons
comunicarem com o bom Platão quando este procurava proibir que tais deuses
fossem injuriados, mas era-lhes permitido comunicar com os demónios quando
estes se compraziam com essas injúrias. Realmente, os deuses bons não
conheciam este homem bom, deles tão distante, senão por intermédio dos demónios
maus a quem não podiam conhecer apesar de serem vizinhos.
Se
escolherem o segundo e disserem que ambos os casos tinham sido ocultados pelos
demónios de maneira a que os deuses ignorassem totalmente não só a
religiosíssima lei de Platão, mas também a sacrílega complacência dos demónios
— que é que de útil podem os deuses conhecer acerca dos homens por intermédio
dos demónios mensageiros, se nem sequer conhecem as decisões que em sua honra
tomou a piedade dos homens bons contra o desregramento dos demónios maus?
Se
escolherem o terceiro e responderem que os deuses conheceram por mediação dos
demónios, não só a decisão de Platão de proibir os ultrajes aos deuses, mas
também a malícia dos demónios que exultam de alegria perante esses ultrajes —
constituirá isso uma mediação ou um insulto? Os deuses ouvem uma coisa e outra,
de uma e de outra tomam conhecimento — e não expulsam da sua presença os
malignos demónios cujos desejos e actos se opõem à dignidade dos deuses e ao
espírito religioso de Platão, e, pelo contrário, transmitem ao bom e distante
Platão os seus benefícios por intermédio destes perversos vizinhos? De tal modo
estão sujeitos a esta como que prisão dos elementos que podem aliar-se aos seus
caluniadores, mas não o podem fazer com os que os defendem. Conhecem uma e
outra — a calúnia e a defesa — mas não podem mudar o peso do ar e da terra.
Se
escolherem o último, o quarto, escolhem o que de todos é o pior. Se os demónios
deram conhecimento aos deuses das criminosas ficções dos poetas acerca deles
imortais e das ultrajantes chacotas teatrais — e do ardente apetite e da
deleitosa complacência que experimentam em tudo isto; se, por outro lado, lhes
esconderam que Platão, com filosófica gravidade, achou por bem que todas estas
coisas deviam ser expulsas de uma república excelente — quem pode suportar que
os deuses bons se vejam forçados a conhecer por tais intermediários os males
dos perversos, mesmo os dos próprios intermediários, e não podem conhecer os
bens dos filósofos, àqueles contrários, sendo certo que aqueles são uma injúria
para com os deuses e que estes são para os mesmos deuses uma honra?
C A P ÍT U L O XXII
Contra a opinião de Apuleio,
impõe-se a rejeição do culto dos demónios.
Pois
que é impossível escolher qualquer das quatro hipóteses sem fazer dos deuses
tão mau conceito, só nos resta deixar de crer naquilo que Apuleio se esforça,
com os filósofos do seu parecer, por nos convencer: — que, entre os deuses e os
homens, os demónios exercem o papel de mensageiros e intérpretes para levarem
aos deuses os nossos pedidos e deles nos trazerem o seu auxílio. Pelo
contrário, são espíritos ávidos de malfazer, totalmente alheados da justiça,
inchados de soberba, pálidos de inveja, destros em enganos. Habitam certamente
no ar porque precipitados das alturas do Céu Superior devido a falta
inexplicável, foram condenados a habitarem esta espécie de prisão apropriada ao
seu estado. Todavia, lá porque o ar está acima da terra e das águas, nem por
isso são superiores em mérito aos homens. Estes ultrapassam-nos à vontade, não
pelo seu corpo terrestre, mas pela piedade da sua mente que escolheu para seu
amparo o verdadeiro Deus.
Sem
dúvida que dominam muitos homens indignos de participarem da verdadeira
religião, tornando-os seus prisioneiros e escravos. A maioria destes homens
deixou-se persuadir de que os demónios eram deuses devido ao aspecto falsamente
miraculoso dos seus actos e das suas predições. Mas outros, reparando nos seus
vícios com um pouco mais de atenção e de cuidado, não puderam admitir a sua
divindade. É por isso que os demónios se fingiram intermediários entre os
deuses e os homens e intercessores dos seus benefícios. Pelo menos esta honra,
julgaram que lha não deviam recusar aqueles que não acreditavam na sua
divindade, já que eram maus e os deuses são todos bons; todavia não ousavam
declará-los totalmente indignos das honras divinas com receio sobretudo de
ofenderem povos que viam inveterados na superstição e entregues ao seu culto
com tantos ritos e templos.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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