Vol. 2
LIVRO IX
CAPÍTULO IV
Opinião dos
peripatéticos e dos estoicos acerca das perturbações da alma.
São duas as opiniões dos filósofos acerca dos movimentos
da alma a que alguns dos nossos, com o Cícero, chamam «perturbações» (perturbationes);
outros chamam-lhes «disposições» (affectiones) ou «afectos» (affectus), e
ainda outros, como o citado Apuleio, «paixões»
(passiones) — termo que melhor traduz
a palavra grega. Dizem certos filósofos que estas perturbações, disposições ou
paixões atingem mesmo o sábio. Mas, no sábio, elas são moderadas e submetidas à
razão, cuja autoridade lhes impõe leis que, de certo modo, as contêm nos seus
limites necessários. É este o sentimnto quer dos platónicos quer dos
aristotélicos, pois Aristóteles, fundador da escola peripatética, foi discípulo
de Platão.
Segundo outros, como os estoicos, tais paixões nunca
atingem o sábio. Cícero, porém, nos seus livros De finibus bonorum et malorum [i] convence os estoicos de que estão em desacordo, mais em
palavras do que na realidade, com os platónicos ou os peripatéticos. E que os estoicos
se recusam a chamar «bens» às comodidades corporais e exteriores, porque, a seu
ver, não há para o homem «bem» fora da virtude: esta é que é a arte de viver bem
e só reside na alma. Mas estes (os platónicos), usando de linguagem simples e
corrente, chamam-lhes «bens», embora, em comparação com a virtude, que assegura
a rectidão da vida, os considerem pequenos e medíocres. Donde se conclui que,
chame-lhes cada um como quiser — «bens» ou «comodidades» —, ambos os têm em
igual estima, e nesta questão os estoicos mais não procuram que a novidade das
palavras. Também a mim me parece que, quando se pergunta se as paixões do
espírito podem afectar o sábio ou se este está delas totalmente livre, a
discussão versa mais sobre palavras do que sobre realidades. Parece-me, pois,
que o sentimento dos estoicos é idêntico ao dos platónicos e dos aristotélicos,
se não quanto à expressão pelo menos quanto ao âmago da questão.
Para não me tornar demasiado extenso, ponho de parte
outros argumentos e apenas exporei um que é bem revelador. Conta Aulo Gélio,
varão de elegantíssimo estilo e de vasta e profunda erudição, no seu livro que
tem por título Noctes Atticae (Noites
Áticas), que, certo dia, viajava no mar com um reputado filósofo estoico. Esse
filósofo, como mais larga e copiosamente refere Aulo Gélio e eu resumo aqui, ao
ver o barco sacudido por um céu medonho e um mar perigosíssimo, devido ao medo
começou a empalidecer. Isto foi notado pelos presentes, que, apesar da morte
vizinha, curiosamente perguntavam se a alma de um filósofo se perturbaria.
Depois, passada que foi a tempestade e quando a segurança deu aso à troca de
impressões e mesmo de gracejos, um dos passageiros, faustoso rico asiático,
increpou o filósofo por ter tido medo e empalidecido, ao passo que ele se
manteve intrépido perante a morte iminente. Mas o outro contou-lhe a resposta
do socrático Aristipo: este, ao ouvir, em iguais circunstâncias, as mesmas
palavras de um indivíduo da mesma laia, respondeu-lhe que tinha feito muito bem
em não se apoquentar com a vida de um velhaco, mas que devia recear pela vida
de um Aristipo.
O rico ficou confundido com esta resposta, mas Aulo
Gélio, não com vontade de atacar, mas de aprender, logo perguntou ao filósofo
qual a razão do seu pavor. Este, para satisfazer um homem inflamado do desejo
de aprender, tirou da sacola um livro do estoico Epicteto, em que este
consignava as suas ideias concordantes com os princípios de Zenão e Crisipo,
fundadores, com o se sabe, da escola estoica. Diz Aulo Gélio ter lido nesse
livro que os estoicos admitem certas percepções da alma a que chamam
«fantasias», de que não está em nosso poder saber em que condições e em que momento
se produzem na alma. Quando provêm de acontecimentos terríveis, espantosos,
comovem fatalmente a alma do próprio sábio — e de tal sorte que, por momentos, também
este experimenta o calafrio do medo e a angústia da tristeza, antecipando-se,
por assim dizer, estas paixões ao exercício da inteligência e da razão, sem
que, contudo, o espírito se contagie com o mal, as aprove ou nelas consinta.
Isto é o que está em nosso poder, dizem os estoicos — e é nisto que reside a
diferença entre a alma do sábio e a do néscio: no néscio, ela cede às paixões e
aceita o assentimento da mente, ao passo que no sábio, embora se veja por
necessidade a elas submetido, mantém com mente imperturbável o verdadeiro e
estável juízo acerca do que deve apetecer e do que deve razoavelmente evitar.
Estas ideias que Aulo Gélio recorda ter lido no livro de Epicteto e declara
tê-las achado conformes com os princípios dos estoicos, expu-las, julgo eu, não
com mais elegância do que aquele, mas, certamente, com maior concisão e
clareza.
Se isto é assim, não há, ou quase não há diferença entre
a opinião dos estoicos e a dos outros filósofos acerca das paixões e
perturbações da alma. Tanto uns como outros defendem a mente e a razão do
sábio, do domínio daquelas. Se os estoicos dizem que elas não atingem o sábio,
é talvez porque jamais elas obscurecerão com algum erro ou mancharão com algum
a nódoa essa sabedoria que o torna sábio: sem alterarem a serenidade da alma do
sábio, podem afectar-lha com o que chamamos comodidade ou incomodidade, já que
não querem chamar-lhes «bens» ou «males».
Seguramente que, se na verdade o tal filósofo não desse
qualquer apreço aos bens que sentia fugirem-lhe no naufrágio — tais como a vida
e a saúde do corpo —, ele não teria tremido de pavor perante o perigo ao ponto
de mostrar a sua palidez. Mas essa mesma emoção podia muito bem suportá-la mantendo-se
firmemente convencido de que a vida e a saúde do corpo, ameaçadas de serem
levadas pela furiosa tempestade, não são os bens que, como a justiça, tornam
bons os que as possuem. Que se deva chamar-lhes, com o eles dizem, não bens,
mas comodidades — é uma guerra de palavras e não uma questão sobre a realidade.
Que interessa que se lhes chame, com maior exactidão, bens ou comodidades, se a
ameaça de os perder faz igualmente empalidecer e tremer tanto o estoico como o
peripatético, os quais, sem lhes darem o mesmo nome, os apreciam da mesma
forma? O certo é que tanto uns como outros declaram que, se fossem
constrangidos a cometer um acto injusto ou criminoso que pusesse em perigo
esses bens ou comodidades sem de outro modo poderem salvá-los, prefeririam
perder tudo o que garante a saúde e a vida a violar a justiça, cometendo esse
acto. Assim a mente, em que esta convicção está alicerçada, não permite que em
si possa prevalecer perturbação alguma contra a razão, mesmo que essa
perturbação se verifique nas regiões inferiores da alma; mais ainda: a razão
exerce sobre elas o seu domínio, e — nelas não consentindo, mas, pelo
contrário, resistindo-lhes, — faz com que reine a virtude. É assim que Vergílio
descreve Eneias quando diz:
O seu espírito mantém-se inquebrantável e é em vão que as
lágrimas correm [ii].
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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