Vol. 2
LIVRO XI
CAPÍTULO
V
Não se deve imaginar uma extensão infinita de tempos antes do Mundo, nem também uma extensão infinita de lugares fora do Mundo, porque antes do Mundo não há tempos nem fora dele há lugares.
Quanto àqueles que admitem connosco que Deus é o autor do Mundo, mas nos põem a objecção do tempo do Mundo, vejamos o que esses mesmos respondem acerca do lugar do Mundo. Porque da mesma forma que nos perguntam: — porque o fez Ele em tal momento em vez de o ter feito em tal outro?, assim também se lhes pode perguntar: — porque o fez aí em vez de o ter feito noutro sítio? Efectivamente, se imaginam antes do Mundo extensões infinitas de tempos no decurso das quais, parece-lhes, Deus não podia ficar inactivo, — pois imaginem também, fora do Mundo, extensões infinitas de lugares. E se disserem que também aí o Omnipotente não se pode manter inactivo, não serão eles obrigados a sonhar, como Epicuro, com inúmeros mundos (com a única diferença de que em vez de, como ele, atribuírem a sua formação e dissolução aos movimentos fortuitos dos átomos, dirão que foram criados por Deus)? Não será o que se conclui, se não admitirem que Deus se mantém inactivo na imensidade sem limites desses lugares que se estendem por todos os lados à volta do Mundo, nem será o que se conclui, se não admitirem que esses mundos não poderão ser destruídos por causa alguma, como eles pensam também do nosso Mundo? Lidamos com os que pensam, como nós, que Deus é um ser incorpóreo, criador de todas as naturezas distintas da sua. Quanto aos outros, seria demasiado indigno admiti-los nesta discussão acerca da religião; principalmente porque, àqueles que crêem que se deve prestar culto a uma multidão de deuses, estes filósofos os superam em nobreza e autoridade e por isso, por muito afastados que pareçam estar da verdade, estão, todavia, dela mais próximos que todos os outros.
A respeito da substância de Deus, que não incluem num lugar, nem nele a delimitam, nem fora dele a deixam, mas antes, como convém pensar acerca de Deus, reconhecem que ela está inteiram ente toda com um a presença incorpórea em toda a parte — acaso dirão que ela está ausente desses espaços tamanhos que se estendem para fora do Mundo? Acaso dirão que ela ocupa unicamente o lugar deste Mundo tão exíguo em comparação dos espaços infinitos? Não creio que cheguem a cair em tal palavriado. Reconhecem, pois, que não há senão um Mundo, formando sem dúvida uma massa corpórea imensa, mas limitada e circunscrita no seu lugar e que é obra de Deus. O que
eles respondem a propósito dos espaços que se estendem sem limites para fora do Mundo quando perguntam: porque é que Deus nada fez aí? que o digam a si próprios a propósito dos tempos ilimitados decorridos antes do Mundo, quando perguntam: porque é que Deus nada fez então? Se Deus estabeleceu o Mundo no lugar onde está e não noutro, quando nesses espaços infinitos todos os lugares tinham os mesmos direitos de serem escolhidos, — não se segue por certo que Ele o fez por acaso e não por uma razão divina, embora esta razão escape a toda a inteligência humana. Pela mesma razão não é lógico atribuir a uma decisão fortuita que Deus criou o Mundo em tal tempo em vez de em tal outro, mesmo que no passado tenha havido uma infinidade de tempos igualmente anteriores sem diferença algum a para ser preferido um tempo a outro.
Se dizem que são vãos os pensamentos dos homens que imaginam espaços infinitos, pois que não há lugar algum fora do Mundo, responder-se-lhes-á que também é vão imaginar tempos passados em que Deus nada fazia, já que tempo não há antes do Mundo.
CAPÍTULO VI
Para o Mundo como para os tempos o começo é o mesmo: um não precede o outro.
Se, de facto, a verdadeira diferença entre a eternidade e o tempo consiste em que não há tempo sem mudança sucessiva, ao passo que a eternidade não admite mudança alguma, — quem não verá que o empo não teria existido, se não tivesse sido feita uma criatura que desloca tal ou tal coisa por um qualquer movimento? Essa mudança, esse movimento cedem o seu lugar e sucedem-se, e, não podendo existir ao mesmo tempo em intervalos mais curtos ou prolongados de espaço, dão origem ao tempo. Pois que Deus, cuja eternidade exclui a menor mudança, é o criador e o ordenador dos tempos, como é que se poderá dizer que Ele criou o Mundo depois dos espaços de tempo? Eu não o vejo — a não ser que se diga que antes do Mundo já existia uma criatura cujos movimentos teriam determinado o curso dos tempos. Mas as Sagradas Escrituras, absolutamente verídicas, afirmam que «no princípio fez Deus o Céu e a Terra» (Gén. I, 1), para nos darem a entender que Ele nada tinha feito antes; porque, se tivesse feito alguma coisa antes de tudo o que fez, seria dessa coisa que estaria escrito «no princípio Deus fê-la». Está, pois, fora de dúvida que o Mundo foi feito, não no tempo, mas com o tempo. O que efectivamente se faz
no tempo, faz-se depois de algum tempo e antes de outro — depois do que foi (praeteritum), antes do que será (juturum). Mas não poderia haver passado algum, porque não havia criatura alguma capaz, pelos seus movimentos sucessivos de realizar o tempo. Foi, pois, com o tempo que o Mundo foi feito pois que, ao criar o Mundo, Deus criou nele o movimento sucessivo. Assim o demonstra a própria ordem dos seis ou sete primeiros dias: estão lá nomeadas uma manhã e uma tarde, até que, acabadas todas as obras de Deus no sexto dia, o sétimo nos descobre, num grande mistério, o repouso de Deus. Mas de que dias se trata — é difícil, impossível mesmo, fazer disso uma ideia, quanto mais exprimi-la.
CAPÍTULO VII
Natureza dos primeiros dias que, segundo a tradição, tiveram manhã e tarde ainda antes da criação do Sol.
Com o, efectivamente, vemos, os dias, com o os conhecemos, têm tarde porque há um ocaso, e têm manhã porque há nascer do Sol. Mas os três primeiros dias decorreram sem Sol, feito, segundo a Escritura, ao quarto dia. É certo que ela nos conta que a luz foi feita em primeiro lugar pela palavra de Deus e que Deus a separou das trevas chamando dia à luz e noite às trevas. Mas que luz era esta e por que movimento alternante fazia ela a tarde e a manhã, é coisa que escapa aos nossos sentidos e não podemos compreender o que seja. Todavia, devemo-lo crer sem hesitação. De facto, ou é um a luz corpórea situada longe dos nossos olhares nas regiões superiores do mundo — um fogo de que mais tarde se iluminou o Sol; ou a palavra luz designa a Cidade Santa dos anjos e dos espíritos bem-aventurados de que fala o Apóstolo:
Ela é a Jerusalém do alto, nossa mãe
eterna nos céus.[i]
e noutro lugar:
se é que nós podemos compreender a tarde e a manhã desse dia.
Comparada à ciência do Criador, a
ciência da criatura é semelhante a um crepúsculo; também ela começa a clarear e
a tornar-se com o que manhã, quando é dirigida ao louvor e ao amor do Criador.
E não pende para a noite senão quando abandona o Criador para amar a criatura. Enfim,
a Escritura, quando enumera aqueles dias pela sua ordem, em parte nenhum a
intercala a palavra noite. Efectivamente, em parte nenhum a diz: a noite foi
feita, mas sim:
E da mesma maneira, do segundo e dos outros dias. Na verdade, a ciência da criatura em si mesma é, por assim dizer, mais descolorida do que quando se conhece na Sabedoria de Deus com o no modelo de que ela procede. Por isso, o nome de tarde convém melhor do que o de noite. Todavia, com o disse, quando essa ciência se dirige ao louvor e ao amor do Criador, torna-se manhã,
quando a ciência se realiza no
conhecimento de si própria, isto é o primeiro dia;
quando ela se realiza no
conhecimento do firmamento, que, situado entre as águas do alto e de baixo, se chama
Céu, é o segundo dia;
quando se realiza no conhecimento da
terra e do mar e de todos os seres que se reproduzem, que se continuam através
das raízes da terra, é o terceiro dia;
quando se realiza no conhecimento
dos luzeiros maior e menor e dos astros, é o quarto dia;
quando se realiza no dos animais que
nadam nas águas e voam, é o quinto dia;
e quando se realiza no dos animais
terrestres e do próprio homem, é o sexto dia.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[1] Gál., IV, 6.
[1] 1 Tessal., V, 5
[1] Gen., I, 5.
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