Vol. 2
LIVRO X
O que pensa o platónico Plotino da iluminação do Alto.
Nesta questão nenhuma divergência existe entre nós e esses eminentes filósofos: viram, e de várias maneiras e desenvolvidamente o disseram nos seus escritos, que a felicidade destes seres, tal qual como a nossa, procede de um objecto inteligível pela luz, que para eles é Deus, mas que é algo diferente deles — o qual os esclarece de tal forma que ficam iluminados e, participando dessa luz, permanecem perfeitos e felizes. Muitas vezes e insistentemente afirma Plotino, desenvolvendo o pensamento de Platão, que a alma, que se crê seja a alma do mundo, não recebe a sua felicidade de fonte diversa da nossa; e esta fonte é uma luz distinta da alma, a qual criou a alma, e cuja iluminação inteligível a fez inteligivelmente resplandecer. Fez também uma comparação entre estes seres incorpóreos e os corpos celestes explêndidos e graciosos: Deus seria o Sol e a alma a Lua. Julga-se, de facto, que a Lua é iluminada por acção do Sol. Assim, pois, para este grande platónico, a alma racional — digamos antes intelectual e este género, no seu pensamento, encerra também as almas dos seres imortais e bem-aventurados, cujas residências ele coloca, sem hesitar, nas moradas celestes — não tem acima de si qualquer outra natureza além da de Deus, que fez o mundo e por quem ela própria foi feita. E que esses seres celestes não têm outra fonte de vida feliz e de luz para entenderem a verdade, que não seja a que nós temos, — também ele o diz, no que está de acordo com o Evangelho onde se lê:
Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João. Veio como testemunha para dar testemunho da luz, para que todos por seu intermédio cressem n 'Ele. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da luz. Havia uma verdadeira luz que ilumina
todo o homem que vem a este mundo [i].
Esta distinção basta para mostrar que a alma racional ou intelectual, tal com o a refere João, não podia ser por si própria a luz, mas que a participação em um a outra luz, a verdadeira, a tornava luminosa. O próprio João o confessa quando o testemunha dizendo
CAPÍTULO III
Do verdadeiro culto de Deus de que se afastaram os platónicos porque, embora tenham conhecido o criador do universo, prestaram honras divinas aos anjos, quer aos bons quer aos maus.
Se assim é, se os platónicos ou quaisquer outros que seguem estas opiniões, conhecendo a Deus, com o Deus o glorificassem e lhe rendessem graças, não se teriam «perdido no vazio dos seus pensamentos» — tornando-se uns, às vezes, causadores dos erros populares ou, outras vezes, não se atrevendo a resistir a tais erros. Teriam, sem dúvida, reconhecido que a esses seres imortais e bem-aventurados, assim com o a nós infelizes e mortais, para obterem a imortalidade e a felicidade se impõe o culto do único Deus dos deuses que é o nosso e o deles.
A este devemos o serviço chamado em grego λατρεία, quer nos ritos sagrados quer em nós próprios. Porque todos, em conjunto e cada um, somos o seu templo: ele digna-se habitar quer na concórdia de todos nós quer em cada um em particular; não está mais em todos do que em cada um; nem se alarga pela massa nem se diminui pela participação. Quando se eleva para Ele, o nosso coração torna-se altar seu: o seu Unigénito é o Sacerdote com que o aplacamos; oferecemos-lhe vítimas cruentas quando, pela sua verdade, lutamos até ao sangue; oferecemos-lhe suavíssimo incenso quando na sua presença estamos abrasados em religioso e santo amor; dedicamos-lhe e devolvemos-lhe os dons que nos concede e a nós próprios; publicamos e consagramos a memória dos seus benefícios em festas solenes em dias certos com receio de que, no decorrer do tempo, se infiltre em nós um ingrato esquecimento; sacrificamos-lhe no altar do nosso coração uma hóstia de humildade e de louvor ao fogo duma fervente caridade. Para o vermos com o pode ser visto e para nos unirmos a Ele, purificamo-nos de toda a mancha do pecado e dos maus desejos e consagramo-nos ao seu nome. Realmente Ele é a fonte da nossa felicidade e a meta de todas as nossas aspirações. Elegendo-o, ou melhor reelegendo-o, — pois tínhamo-lo perdido por negligência — reelegendo-o a Ele (religentes — donde vem, diz-se, a palavra «religião»), nós caminhamos para Ele por amor para descansarmos quando a Ele chegarmos: e assim seremos felizes porque em tal meta alcançamos a perfeição. Porque o nosso bem, acerca de cuja meta surge entre os filósofos um grave problema, mais não é do que estarmos unidos a Deus, o único cujo abraço incorpóreo, se é que é permitido falar nestes termos, fecunda a alma intelectual e a enche de verdadeiras virtudes. É-nos ordenado que amemos este bem com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, com todas as nossas forças. E para Ele que nos devem conduzir aqueles que nos amam: é para Ele que devemos conduzir aqueles que amamos. Cumprem-se assim os dois preceitos de que dependem toda a lei e os profetas:
Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração,
com toda a tua alma, com todo o teu espírito,[iii]
com toda a tua alma, com todo o teu espírito,[iii]
e
Para que o homem saiba de facto amar-se a si próprio, foi-lhe fixado um fim, ao qual, para ser feliz, deve referir todos os seus actos; — porque quem se ama, mais não quer que ser feliz: e este fim consiste em unir-se a Deus.
Quando, portanto, àquele que já sabe amar-se a si próprio se prescreve que ame o seu próximo com o a si mesmo — que é que se lhe ordena senão que exorte o seu próximo a amar a Deus com todas as suas forças? Este é que é o culto de Deus, esta é que é a verdadeira religião, esta é que é a recta piedade, este é que é o serviço só a Deus devido!
Portanto, toda a imortal potestade, por maior que seja a sua virtude, se ela nos ama como a si mesma, deseja ver-nos submetidos, para sermos felizes, àquele em quem ela própria encontra a sua felicidade pela submissão. E, portanto, se não presta culto a Deus, é infeliz, porque está privada de Deus. Se lhe presta culto, não quer ser adorada
em vez de Deus. Bem ao contrário, aplaude e adere com todas as forças do seu amor a esta máxima divina:
CAPÍTULO IV
O sacrifício só é devido ao verdadeiro Deus.
Não falo, por agora, das outras homenagens religiosas que
prestamos a Deus: pelo menos o sacrifício, ninguém se atreva a dizer que ele é
devido a outrem que não a Deus. Muitos ritos acabaram por ser retirados do
culto de Deus para serem desviados para as honras humanas, devido quer a um a
excessiva humildade quer a pestilenta adulação. Todavia, eram tidos por homens
aqueles que assim se homenageavam por se considerarem dignos de culto, de
veneração e, acabando-se por forçar as coisas, de adoração. Mas quem vez alguma
pensou que devia oferecer sacrifícios a outro que não àquele que se sabe, se
julga ou se finge ser Deus? Quão antigo é o culto prestado a
Deus por sacrifícios mostram-no cabalmente os dois irmãos Caim e Abel: Deus reprovou o sacrifício do mais velho e olhou complacente para o do mais novo.
Deus por sacrifícios mostram-no cabalmente os dois irmãos Caim e Abel: Deus reprovou o sacrifício do mais velho e olhou complacente para o do mais novo.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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