05/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO V

CAPÍTULO XVIII

…/2

— Se os Décios, entendendo que deveriam consagrar-se em obediência a alguns oráculos, ofereceram as suas vidas em sacrifício para que salvassem o exército romano — será que se irão de algum modo orgulhar os nossos santos mártires, como se tivessem feito alguma coisa de grande para merecerem a participação nesta pátria onde reina a verdadeira e eterna felicidade, quando, fiéis ao preceito, amaram, até derramarem o seu sangue, não apenas os irmãos por quem o derramaram mas também os inimigos por quem ele foi derramado, lutando com a fé da caridade e com a caridade da fé?
— Se Marco Pulvilo, que dedicava um templo a Júpiter, Juno e Minerva, quando lhe foi anunciada por invejosos a falsa notícia da morte de seu filho, para que, perturbado com esta mensagem, se retirasse e deixasse ao seu colega a glória da dedicação, se incomodou tão pouco com isso que até deu ordem para abandonarem o cadáver sem sepultura (triunfando no seu coração o desejo de gló­ria sobre a dor desta perda) será a declarar que fez uma grande coisa pela pregação do Santo Evangelho, pela qual são libertados de muitos erros e congregados os cidadãos da pátria celeste, aquele a quem o Senhor diz, quando ele se preocupava com a sepultura de seu pai:

Segue-me e deixa que mortos sepultem os seus mortos [i]?

— Se M. Régulo, para não quebrar a fé jurada a crudelíssimos inimigos, voltou de Roma para junto deles respondendo, conforme consta, aos Romanos que pretendiam retê-lo, que, depois de ter sido escravo dos Africanos, não podia conservar lá a dignidade de um honesto cidadão; e se os Cartagineses o sujeitaram com gravíssimos suplícios à morte porque ele contra eles procedeu no Senado Romano — que suplícios se não devem desprezar para guardar a fé naquela pátria a cuja felicidade a mesma fé nos conduz? Ou

        que retribuirá ao Senhor pelos bens que dele recebeu [ii],
o homem que, pela fé que lhe é devida, sofrer tormentos semelhantes aos que sofreu Régulo pela fé que devia a ferozes inimigos?
— Como é que um cristão se atreverá a gabar-se da sua pobreza voluntária, abraçada para caminhar cá, mais à vontade, na peregrinação que conduz à Pátria em que Deus é a verdadeira riqueza.
— quando ouve ou lê que Lúcio Valério, falecido durante, o seu consulado, era tão pobre que foi preciso pedir ao povo ofertas para assegurar a sua sepultura? Ou quando ouve ou lê que Quíncio Cincinato, dono de quatro geiras, que cultivava com as suas próprias mãos, foi afastado do arado para ser feito ditador, dignidade superior ao consulado, e que, depois de ter alcançado vitória sobre os inimigos, permaneceu na mesma pobreza?
— Será que ele virá a gabar-se de ter feito alguma coisa de grande por não se deixar separar por nenhuma recompensa terrestre da sua comunhão com a pátria eterna — quando aprendeu que Fabrício não pôde ser retirado à Cidade Romana pelos enormes presentes oferecidos por Pirro, rei do Epiro, nem mesmo pela promessa de lhe dar a quarta parte do seu reino, e preferiu continuar pobre e simples cidadão na sua pátria?

Com efeito, enquanto a república (res publica), isto é, a empresa do povo (res populi), a empresa da pátria (res patriae), a empresa comum (res communis), era opulentíssima, eram eles em suas casas de tal modo pobres que um deles, depois de ter sido duas vezes cônsul, foi expulso daquele senado de pobres sob a acusação censória de que lhe tinham sido encontradas dez libras de prata nuns vasos; eles próprios eram pobres, mas os seus triunfos enriqueciam o erário público; todos os cristãos que, num desígnio ainda mais elevado, põem as suas riquezas em comum, conforme o que está escrito nos Actos dos Apóstolos — «que se distribua a cada um conforme as suas necessidades e que ninguém diga que alguma coisa lhe pertence, mas que tudo lhes seja comum» — será que não compreendem que não devem dar-se ares arrogantes ao praticarem esse preceito para obterem a sociedade dos Anjos quando aqueles homens fizeram quase outro tanto para conservarem a glória dos Romanos?

Estes factos e outros que tais que se podem achar na sua literatura, teriam adquirido semelhante notoriedade, seriam celebrados com tal renome, se o Império Romano, que se estendeu em todas as direcções, não se tivesse desenvolvido devido a sucessos magníficos? Desta forma esse império, tão vasto, tão duradouro, célebre e glorioso pelas virtudes de tão grandes homens, foi para eles a recompensa a que aspiravam os seus esforços e oferece-nos a nós uma tão exemplar e necessária lição que sentiremos o espinho da vergonha se não praticarmos pela gloriosíssima Cidade de Deus as virtudes que eles praticaram, de forma um tanto semelhante, pela glória da cidade terrestre; e, se as praticarmos, não nos empertiguemos de soberba porque, como diz o Apóstolo,

os sofrimentos do tempo presente são de nada comparados com a glória futura que em nós será revelada [iii].

Mas para alcançar a glória humana, no tempo presente, considera-se bastante digna a vida deles.

Daí que, à luz do Novo Testamento, oculto no véu do Antigo (que nos sugere a adoração do único verdadeiro Deus, não para obtermos benefícios temporais e terrenos, concedidos pela divina Providência ao mesmo tempo a bons e a maus, mas sim para a vida eterna, para as recompensas perpétuas e para vivermos associados à Cidade Celeste), — à luz, repito, do Novo Testamento, os Judeus, que mataram Cristo, com toda a justiça foram submetidos para glória dos Romanos. Era justo, na verdade, que aqueles que procuraram e conseguiram a glória terrena pelas suas virtudes, sejam elas quais forem, triunfassem dos que pelos seus grandes vícios rejeitaram e mataram o dador da verdadeira glória e da cidade eterna.

CAPÍTULO XIX

Diferem entre si a paixão da glória e a paixão de domínio.

É evidente que há diferença entre a paixão da glória humana e a paixão de domínio. Com certeza que quem põe todas as suas complacências na glória humana está inclinado a também desejar ardentemente o domínio; todavia, os que aspiram à verdadeira glória, mesmo que seja a dos louvores humanos, põem todo o cuidado em não desagradar aos bons julgadores. Há efectivamente muitos aspectos bons do comportamento que muitos avaliam correctamente embora deles careçam. E por esses bons aspectos que aspiram à glória, ao poder e ao domínio aqueles de quem fala Salústio:

Segue o verdadeiro caminho [iv].

Mas aquele que, sem ter ambições de glória que provoca o temor de desagradar aos bons julgadores, deseja o poder e o domínio, procura quase sempre obter o que ama mesmo por meio de crimes evidentes. Por isso o que deseja a glória, ou «segue o verdadeiro caminho» ou pelo menos procura-o com manhas e mentiras, querendo parecer o homem de bem que não é. Assim, para o que tem virtudes é uma grande virtude desprezar a glória, porque este desprezo Deus o vê mas escapa ao juízo dos homens.

Na verdade, tudo o que fizer aos olhos dos homens para que vejam que despreza a glória, pode ser que por alguns suspeitosos seja isso tomado como maneira de procurar louvores, isto é, uma glória maior — sem poder mostrar-lhes que é diferente do que dele suspeitam. Mas o que despreza o juízo dos que o louvam, despreza também os juízos temerários dos que suspeitam; mas, se é verdadeiramente bom, não se desinteressa da salvação deles. É que, na realidade, é tão grande a justiça daquele cujas virtudes são um dom do Espírito de Deus, que ele até aos seus inimigos ama e ama-os de tal forma que chega a querer para os que o odeiam e o caluniam a sua emenda e a sua companhia, não na pátria terrestre mas na suprema. Quanto aos aduladores, embora não faça caso dos seus elogios, nem por isso despreza a sua afeição, nem quer enganar os que o louvam, não vá decepcionar os que lhe querem bem. Por isso é que faz ardentes esforços por que seja antes louvado Aquele que concede ao homem tudo o que nele merece ser louvado.

Mas o que, desprezando embora a glória, é ávido de domínio, supera as bestas, quer pela crueldade quer pela luxúria. Tais foram certos Romanos. Tendo deixado de se preocupar com a reputação, não lhes faltou a paixão de domínio. A história nos refere que muitos disso foram exemplo. Mas foi Nero o primeiro César que atingiu o cume e como que o cúmulo deste vício: tamanha foi a sua luxúria, que dele parece nada havia de viril a recear — e tamanha foi a sua crueldade, que, se não fosse conhecido, pareceria que nada tinha de efeminado. Mas mesmo a tais homens o poder do mundo não é dado senão pela providência de Deus Supremo quando julga que as empresas humanas são dignas de tais senhores. E claramente acerca desta questão que a voz divina se faz ouvir pela voz da Sabedoria de Deus:

Por mim reinam os reis, por mim dominam a Terra os tiranos [v].

Mas não se julgue que tiranos foram reis perversos e déspotas, mas homens poderosos, conforme o antigo significado. Daí o que diz Vergílio:

Será para mim um penhor de paz ter apertado a mão direita do tirano [vi].

E noutra passagem se diz claramente de Deus:

Por causa da perversidade do povo é que ele faz reinar o homem hipócrita [vii].

Expliquei suficientemente, tanto quanto me foi possível, quais foram as razões por que Deus uno, verdadeiro e justo ajudou os Romanos, que eram bons à maneira da cidade terrestre, a obterem a glória dum tão grande império. Talvez haja também uma outra razão mais secreta — a dos méritos diversos do género humano, melhor conhecidos de Deus do que de nós. De facto, entre as pessoas verdadeiramente religiosas é ponto assente que sem a verdadeira piedade, isto é, sem o verdadeiro culto do verdadeiro Deus, ninguém poderá possuir a verdadeira virtude e que a virtude não é verdadeira quando se põe ao serviço da glória humana — todavia os que não são cidadãos da Cidade Eterna, chamada pelas Sagradas Escrituras a Cidade de Deus, são mais úteis à cidade da Terra, quando possuem mesmo uma tal virtude, do que quando nem essa possuem.

Mas aqueles que, dotados de verdadeira piedade, levam uma vida impoluta, se possuem a ciência de governar os povos, — nada há de mais feliz para as empresas humanas do que se por misericórdia divina detêm o poder. Mas tais homens, por maiores que sejam as virtudes que possam ter nesta vida, atribuem-nas unicamente à graça de Deus que as concedeu aos seus desejos, à sua fé, às suas. orações — e ao mesmo tempo, compreendem quanto lhes falta para chegarem à perfeição da justiça, tal como ela é na sociedade dos santos Anjos na qual se esforçam por entrar. E, por muito que louve e apregoe a virtude que, privada da verdadeira piedade, se põe ao serviço da glória humana, de forma nenhuma ela se poderá comparar aos débeis começos dos santos, cuja esperança está firmada na graça e na misericórdia do verdadeiro Deus.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Mc., VIII, 22.
[ii] Salmo C X V , 3.
[iii] Rom., VIII, 18.
[iv] Salústio, Catii, XI, 2.
[v] Prov., VIII, 15.
[vi] Vergílio, Eneida, VIII, 266.
[vii] Job, XXXIV , 30.

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