Vol. 1
LIVRO
V
CAPÍTULO XVIII
…/2
—
Se os Décios, entendendo que deveriam consagrar-se em obediência a alguns
oráculos, ofereceram as suas vidas em sacrifício para que salvassem o exército
romano — será que se irão de algum modo orgulhar os nossos santos mártires,
como se tivessem feito alguma coisa de grande para merecerem a participação
nesta pátria onde reina a verdadeira e eterna felicidade, quando, fiéis ao
preceito, amaram, até derramarem o seu sangue, não apenas os irmãos por quem o
derramaram mas também os inimigos por quem ele foi derramado, lutando com a fé
da caridade e com a caridade da fé?
—
Se Marco Pulvilo, que dedicava um templo a Júpiter, Juno e Minerva, quando lhe
foi anunciada por invejosos a falsa notícia da morte de seu filho, para que,
perturbado com esta mensagem, se retirasse e deixasse ao seu colega a glória da
dedicação, se incomodou tão pouco com isso que até deu ordem para abandonarem o
cadáver sem sepultura (triunfando no seu coração o desejo de glória sobre a
dor desta perda) será a declarar que fez uma grande coisa pela pregação do
Santo Evangelho, pela qual são libertados de muitos erros e congregados os
cidadãos da pátria celeste, aquele a quem o Senhor diz, quando ele se
preocupava com a sepultura de seu pai:
—
Se M. Régulo, para não quebrar a fé jurada a crudelíssimos inimigos, voltou de
Roma para junto deles respondendo, conforme consta, aos Romanos que pretendiam
retê-lo, que, depois de ter sido escravo dos Africanos, não podia conservar lá
a dignidade de um honesto cidadão; e se os Cartagineses o sujeitaram com
gravíssimos suplícios à morte porque ele contra eles procedeu no Senado Romano
— que suplícios se não devem desprezar para guardar a fé naquela pátria a cuja
felicidade a mesma fé nos conduz? Ou
o
homem que, pela fé que lhe é devida, sofrer tormentos semelhantes aos que
sofreu Régulo pela fé que devia a ferozes inimigos?
— Como é que um cristão se atreverá a
gabar-se da sua pobreza voluntária, abraçada para caminhar cá, mais à vontade,
na peregrinação que conduz à Pátria em que Deus é a verdadeira riqueza.
— quando ouve ou lê que Lúcio Valério,
falecido durante, o seu consulado, era tão pobre que foi preciso pedir ao povo
ofertas para assegurar a sua sepultura? Ou quando ouve ou lê que Quíncio
Cincinato, dono de quatro geiras, que cultivava com as suas próprias mãos, foi
afastado do arado para ser feito ditador, dignidade superior ao consulado, e
que, depois de ter alcançado vitória sobre os inimigos, permaneceu na mesma
pobreza?
— Será que ele virá a gabar-se de ter feito
alguma coisa de grande por não se deixar separar por nenhuma recompensa
terrestre da sua comunhão com a pátria eterna — quando aprendeu que Fabrício
não pôde ser retirado à Cidade Romana pelos enormes presentes oferecidos por
Pirro, rei do Epiro, nem mesmo pela promessa de lhe dar a quarta parte do seu
reino, e preferiu continuar pobre e simples cidadão na sua pátria?
Com
efeito, enquanto a república (res publica),
isto é, a empresa do povo (res populi),
a empresa da pátria (res patriae), a
empresa comum (res communis), era
opulentíssima, eram eles em suas casas de tal modo pobres que um deles, depois
de ter sido duas vezes cônsul, foi expulso daquele senado de pobres sob a
acusação censória de que lhe tinham sido encontradas dez libras de prata nuns
vasos; eles próprios eram pobres, mas os seus triunfos enriqueciam o erário
público; todos os cristãos que, num desígnio ainda mais elevado, põem as suas
riquezas em comum, conforme o que está escrito nos Actos dos Apóstolos — «que
se distribua a cada um conforme as suas necessidades e que ninguém diga que
alguma coisa lhe pertence, mas que tudo lhes seja comum» — será que não
compreendem que não devem dar-se ares arrogantes ao praticarem esse preceito
para obterem a sociedade dos Anjos quando aqueles homens fizeram quase outro
tanto para conservarem a glória dos Romanos?
Estes
factos e outros que tais que se podem achar na sua literatura, teriam adquirido
semelhante notoriedade, seriam celebrados com tal renome, se o Império Romano,
que se estendeu em todas as direcções, não se tivesse desenvolvido devido a
sucessos magníficos? Desta forma esse império, tão vasto, tão duradouro,
célebre e glorioso pelas virtudes de tão grandes homens, foi para eles a
recompensa a que aspiravam os seus esforços e oferece-nos a nós uma tão
exemplar e necessária lição que sentiremos o espinho da vergonha se não
praticarmos pela gloriosíssima Cidade de Deus as virtudes que eles praticaram, de
forma um tanto semelhante, pela glória da cidade terrestre; e, se as
praticarmos, não nos empertiguemos de soberba porque, como diz o Apóstolo,
os
sofrimentos do tempo presente são de nada comparados com a glória futura que em
nós será revelada [iii].
Mas
para alcançar a glória humana, no tempo presente, considera-se bastante digna a
vida deles.
Daí
que, à luz do Novo Testamento, oculto no véu do Antigo (que nos sugere a
adoração do único verdadeiro Deus, não para obtermos benefícios temporais e
terrenos, concedidos pela divina Providência ao mesmo tempo a bons e a maus,
mas sim para a vida eterna, para as recompensas perpétuas e para vivermos
associados à Cidade Celeste), — à luz, repito, do Novo Testamento, os Judeus,
que mataram Cristo, com toda a justiça foram submetidos para glória dos
Romanos. Era justo, na verdade, que aqueles que procuraram e conseguiram a
glória terrena pelas suas virtudes, sejam elas quais forem, triunfassem dos que
pelos seus grandes vícios rejeitaram e mataram o dador da verdadeira glória e
da cidade eterna.
CAPÍTULO XIX
Diferem entre si a paixão da
glória e a paixão de domínio.
É
evidente que há diferença entre a paixão da glória humana e a paixão de
domínio. Com certeza que quem põe todas as suas complacências na glória humana
está inclinado a também desejar ardentemente o domínio; todavia, os que aspiram
à verdadeira glória, mesmo que seja a dos louvores humanos, põem todo o cuidado
em não desagradar aos bons julgadores. Há efectivamente muitos aspectos bons do
comportamento que muitos avaliam correctamente embora deles careçam. E por
esses bons aspectos que aspiram à glória, ao poder e ao domínio aqueles de quem
fala Salústio:
Mas
aquele que, sem ter ambições de glória que provoca o temor de desagradar aos
bons julgadores, deseja o poder e o domínio, procura quase sempre obter o que
ama mesmo por meio de crimes evidentes. Por isso o que deseja a glória, ou
«segue o verdadeiro caminho» ou pelo menos procura-o com manhas e mentiras,
querendo parecer o homem de bem que não é. Assim, para o que tem virtudes é uma
grande virtude desprezar a glória, porque este desprezo Deus o vê mas escapa ao
juízo dos homens.
Na
verdade, tudo o que fizer aos olhos dos homens para que vejam que despreza a
glória, pode ser que por alguns suspeitosos seja isso tomado como maneira de
procurar louvores, isto é, uma glória maior — sem poder mostrar-lhes que é
diferente do que dele suspeitam. Mas o que despreza o juízo dos que o louvam,
despreza também os juízos temerários dos que suspeitam; mas, se é
verdadeiramente bom, não se desinteressa da salvação deles. É que, na
realidade, é tão grande a justiça daquele cujas virtudes são um dom do Espírito
de Deus, que ele até aos seus inimigos ama e ama-os de tal forma que chega a
querer para os que o odeiam e o caluniam a sua emenda e a sua companhia, não na
pátria terrestre mas na suprema. Quanto aos aduladores, embora não faça caso
dos seus elogios, nem por isso despreza a sua afeição, nem quer enganar os que
o louvam, não vá decepcionar os que lhe querem bem. Por isso é que faz ardentes
esforços por que seja antes louvado Aquele que concede ao homem tudo o que nele
merece ser louvado.
Mas
o que, desprezando embora a glória, é ávido de domínio, supera as bestas, quer
pela crueldade quer pela luxúria. Tais foram certos Romanos. Tendo deixado de
se preocupar com a reputação, não lhes faltou a paixão de domínio. A história
nos refere que muitos disso foram exemplo. Mas foi Nero o primeiro César que
atingiu o cume e como que o cúmulo deste vício: tamanha foi a sua luxúria, que
dele parece nada havia de viril a recear — e tamanha foi a sua crueldade, que,
se não fosse conhecido, pareceria que nada tinha de efeminado. Mas mesmo a tais
homens o poder do mundo não é dado senão pela providência de Deus Supremo
quando julga que as empresas humanas são dignas de tais senhores. E claramente
acerca desta questão que a voz divina se faz ouvir pela voz da Sabedoria de
Deus:
Mas
não se julgue que tiranos foram reis perversos e déspotas, mas homens
poderosos, conforme o antigo significado. Daí o que diz Vergílio:
E
noutra passagem se diz claramente de Deus:
Por
causa da perversidade do povo é que ele faz reinar o homem hipócrita [vii].
Expliquei
suficientemente, tanto quanto me foi possível, quais foram as razões por que
Deus uno, verdadeiro e justo ajudou os Romanos, que eram bons à maneira da
cidade terrestre, a obterem a glória dum tão grande império. Talvez haja também
uma outra razão mais secreta — a dos méritos diversos do género humano, melhor
conhecidos de Deus do que de nós. De facto, entre as pessoas verdadeiramente
religiosas é ponto assente que sem a verdadeira piedade, isto é, sem o
verdadeiro culto do verdadeiro Deus, ninguém poderá possuir a verdadeira
virtude e que a virtude não é verdadeira quando se põe ao serviço da glória
humana — todavia os que não são cidadãos da Cidade Eterna, chamada pelas
Sagradas Escrituras a Cidade de Deus, são mais úteis à cidade da Terra, quando
possuem mesmo uma tal virtude, do que quando nem essa possuem.
Mas
aqueles que, dotados de verdadeira piedade, levam uma vida impoluta, se possuem
a ciência de governar os povos, — nada há de mais feliz para as empresas
humanas do que se por misericórdia divina detêm o poder. Mas tais homens, por
maiores que sejam as virtudes que possam ter nesta vida, atribuem-nas
unicamente à graça de Deus que as concedeu aos seus desejos, à sua fé, às suas.
orações — e ao mesmo tempo, compreendem quanto lhes falta para chegarem à
perfeição da justiça, tal como ela é na sociedade dos santos Anjos na qual se
esforçam por entrar. E, por muito que louve e apregoe a virtude que, privada da
verdadeira piedade, se põe ao serviço da glória humana, de forma nenhuma ela se
poderá comparar aos débeis começos dos santos, cuja esperança está firmada na
graça e na misericórdia do verdadeiro Deus.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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